Uma piada sobre Proust pode ser proustiana
Bonsai, um livro de Alejandro Zambra, deu um filme sobre livros de Cristián Jiménez - e também sobre a memória e aquilo que fazemos com ela.
Bonsai é a segunda longa-metragem de Cristián Jiménez, cineasta chileno nascido em 1975, e a primeira estreada comercialmente em Portugal (país que, através da Ukbar Filmes, aparece como co-produtor). Banhado em literatura, atafulhado de livros, é um conto de despedida da adolescência, construído num equilíbrio pouco menos que perfeito entre gravidade e ironia. Ou apenas uma "paródia proustiana", com adolescentes a debaterem-se, na curta escala da sua existência, com as armadilhas da memória. É Cristián Jiménez quem menciona a "paródia", durante a conversa por email que se lê a seguir, discutindo vários aspectos do seu filme mas também o lugar e a relação da nova geração de cineastas chilenos com a história do cinema do seu país.
Bonsai tem origem num romance de Alejandro Zambra. O que é que lhe deu vontade de o passar ao cinema?
Li o livro em 2006. Achei-o óptimo, mas não vi nele, imediatamente, um filme. Uns anos mais tarde voltei a lê-lo. O que então me pareceu especial, nessa segunda leitura, foi o aspecto geracional do livro. Alejandro e eu nascemos no mesmo ano [1975], e temos em comum algumas experiências do tempo da universidade. Comecei então a pensar que se algum dia alguém ia adaptar Bonsai ao cinema, mais valia ser eu.
A estrutura narrativa do filme reproduz a do livro? E o que é que trouxe para o filme que não estivesse no livro?
Há muitas mudanças na intriga, mas também na estrutura. O livro é mais linear e o ponto de vista não é estritamente o de Júlio [o protagonista]. Também transpus a acção para Valdívia, a minha cidade natal, no período em que as personagens estão na universidade. Dessa maneira, Júlio não está em casa enquanto escreve o falso romance de Gazmuri [o escritor fictício que é outra das personagens]. A contribuição mais pessoal que trouxe à adaptação foi dar a Júlio a minha própria avó. Essa personagem não existe no livro e quando a escrevi inspirei-me exactamente na mesma mulher que acabou por interpretá-la, numa estreia tardia no cinema. Com todas estas diferenças, Alejandro e eu concordamos que o livro e o filme dialogam um com o outro. Há uma grande afinidade espiritual.
Uma das coisas mais atraentes do filme é o modo como as personagens se relacionam com a literatura e com os livros - "livros a sério", objectos.
A relação material com os livros foi algo que percebi como muito importante enquanto escrevia. Muita gente me dizia: "isto é sobre livros", "não é suficientemente fílmico". Mas um dia pensei: para esta gente os livros são coisas, sentem-se seguros com um livro na mão da mesma maneira que um cowboy se sente mais seguro com um revólver à cintura. Mesmo que depois nunca cheguem a ler aqueles livros. A partir daí muitas coisas se me tornaram claras. Queria que os livros fossem um objecto quotidiano, algo que até pode servir para fornecer o papel para embrulhar um charro, ou para caminhar com as costas direitas.
Há nessa relação um lust for life que tem qualquer coisa de reminiscente de certas personagens da nouvelle vague, em filmes de Godard, Rohmer, etc. São referências importantes para si? E se não, quais são as "inspirações" de Bonsai?
Adoro Duas ou Três Coisas sobre Ela. Julgo que foi o primeiro filme de Godard que vi. Rohmer não é bem a minha chávena de chá, mas vi-o quando tinha a idade de Júlio e Emília [a protagonista feminina], portanto acredito que alguma coisa tenha ficado. Mas [enquanto preparava Bonsai] andava a ver muita coisa de Taiwan, porque também estava a escrever outro filme, com uma intriga familiar. Edward Yang, os primeiros Ang Lee. Acho que, de alguma maneira, tudo isso saltou para o caldeirão.
Apesar de tudo, há no filme uma ambiguidade deliciosa. Os livros "salvam", mas também podem "perder". Também envenenam. Esta tensão existe no filme de forma muito discreta, muito irónica, mas está lá. Concorda?
Para mim é importante que os livros não salvem realmente as personagens, mas sejam capazes de providenciar algum abrigo. Talvez temporário, talvez imaginário, mas em todo o caso um abrigo. Essa ideia de que os livros se podem tornar um peso ou algo que nos condena é realmente uma boa ideia. É por isso que Júlio, quando no fim se quer mudar, se livra de todos os seus livros. A paisagem do seu quarto e da sua vida muda drasticamente.
Toda esta conversa e, no entanto, hesito em dizer que Bonsai é "um filme sobre livros". Mais depressa diria que é um filme sobre a perda, sobre a nostalgia de algo que neste caso é corporizado pelo mítico "primeiro amor"...
Nem tanto assim. Penso que a perda do primeiro amor também é uma expressão do problema principal. Que é, possivelmente, a tensão entre os factos da nossa vida e a história da nossa vida. Esse buraco entre a narrativa e o facto é fascinante. Torna-se muito óbvio quando pensamos em memórias. Mas as memórias são a principal ferramenta que temos para compreender o mundo, incluindo nós próprios e os nossos sentimentos. E há sempre a grande questão: como é que, depois disto tudo, continuamos a ser a mesma pessoa? Ou não continuamos.
O que nos aproxima de Proust. É a grande sombra sobre o filme, obviamente. Qual é a sua relação com Proust? De que adaptações cinematográficas de Proust gosta?
Gosto muito da adaptação de Raul Ruiz [Le Temps Retrouvé, de 1999]. Não me considero nenhum perito em Proust, nem li todos os sete volumes [de Em Busca do Tempo Perdido], mas é algo que me toca. Passo muito tempo em França, e quando Bonsai se estreou parecia que não havia mais nada para discutir além de Proust. Era assustador. Mas tem piada, porque sempre pensei que o livro, e ainda mais o filme, faziam um bocadinho uma paródia a Proust. As personagens nem o chegam a ler... Mas muita gente em França rebatia esta ideia, defendendo que há um equilíbrio entre o trivial e os grandes temas no próprio Proust. Como se uma piada sobre Proust também pudesse ser uma coisa proustiana. Isso foi uma descoberta para mim.
Sempre houve muitos cineastas sul-americanos a trabalharem consistentemente uma relação com a literatura. O chileno Ruiz, o argentino Edgardo Cozarinsky, para dar só dois exemplos do Sul da América do Sul. Dá para reconhecer aqui alguma espécie de "tradição", é um ar que se respira?
Bom, conheço a história do cinema chileno muito bem, não penso que isso constitua propriamente uma tradição. Antes, isso sim, como que ondas, ou mini-ondas, que vão e vêm. A mais forte, sem dúvida nenhuma, foi a que apareceu no final dos anos 60, com Ruiz, [Miguel] Littin, Hélvio Soto, [Patrício] Kaulen, [Patrício] Guzmán, e alguns subprodutos como Cristián Sánchez e Ignacio Aguero. Posso dizer que todos eles me interessam muito, mas Ruiz é possivelmente o que me dá mais pistas sobre o que significa ser um cineasta. Talvez porque ele fosse o menos politicamente empenhado de todos. Ou o menos militante - penso que é mais justo dizer assim. Entre eles e nós [os cineastas da geração de Jiménez] há uma espécie de buraco, criado pela ditadura, mas também vejo algumas ligações. Só que a nova geração chilena é mais individualista. Falamos uns com os outros, e há "túneis" que podem ligar os filmes que fazemos, mas não estamos minimamente próximos de constituirmos o corpo, o movimento, que todos aqueles tipos formavam, e onde o cinema era secundário, ou meramente instrumental, na sua agenda política. Pelo menos eles assim o diziam.
Ver crítica filmes págs. 35 e segs.