"Tínhamos obrigação de ser felizes. Porque é que não somos?"
Oslo, 31 de Agosto é a história de um homem que se pergunta, aos 34 anos, se ainda é possível recomeçar do zero. O realizador Joachim Trier não quis fazer o retrato de uma geração, nem de um país que de repente se tornou notícia; antes lançar um olhar sobre a solidão daqueles que sonhavam com uma vida diferente. Oslo é na Noruega. 31 de Agosto é em qualquer parte do mundo - hoje, precisamente.
Há uns anos largos que Anders e Thomas não se vêem. Aproveitando estar em Oslo para uma entrevista de emprego, Anders vai visitar Thomas a sua casa. Uma vida perfeitamente normal, a de Thomas: família, emprego, rotina. "Sei que a minha vida não é nada de especial," diz ele, "mas é porreira, cá vou andando". Anders, que transporta consigo uma enorme sensação de culpa, de desperdício de um talento, responde-lhe: "Se a minha vida não for fantástica, então não serve para nada."
"Admiro essa atitude [de Anders]", diz ao telefone, a partir de Oslo, o realizador norueguês Joachim Trier. "Mas ao mesmo tempo é uma perspectiva muito perigosa para se ter para com a vida. Não sei se ele alguma vez criou alguma coisa em que acreditasse realmente, se alguma vez terá estado à altura do seu ideal."
Anders é o herói (à falta de melhor palavra) do filme de Trier que chegou ontem às nossas salas, Oslo, 31 de Agosto. A entrevista de emprego é o primeiro (ou o último) passo na tentativa de regresso a uma vida normal deste trintão em plena crise de identidade que diz, às tantas: "Tenho 34 anos e não tenho nada de meu. Como posso recomeçar do zero?"
É uma pergunta que, hoje talvez mais do que ontem, faz todo o sentido no mundo em que vivemos e em que tudo está a mudar (talvez) demasiado depressa. As questões do privilégio e da realização pessoal, do lugar que esperamos ter na sociedade e daquele que realmente nos está acessível, do equilíbrio entre o individual e o social, do intervalo entre as ambições e a realidade, são centrais em Oslo, 31 de Agosto, que, desde a sua apresentação na secção paralela Un Certain Regard, em Cannes 2011, tem acumulado reacções apaixonadas.
"É uma grande ambição para um filmezinho que se fez de Verão na Noruega", diz Trier com um sorriso na voz, do outro lado da linha. "Não sei o que esperar das reacções dos outros. Sei de onde o filme vem, no que me diz respeito; talvez de uma certa melancolia, das perguntas que me levanto sobre a minha própria vida e a das pessoas ao meu redor. Ninguém faz hoje em dia - pelo menos na Noruega - estes filmes, que abordam de chofre temas existencialistas", explica o realizador. Continua: "Na minha vida pessoal, muitas conversas que ficaram na minha cabeça tiveram lugar em momentos muito duros da vida de amigos ou familiares. São as coisas que nunca se mostram nos filmes: o sentimento de não saber porque é que estamos perdidos, apesar de termos vidas confortáveis ou de virmos de famílias privilegiadas."
É esse o âmago da questão: "Nos meus filmes, tenho falado sempre da "dupla vergonha" de fracassar, ao não se conseguir fazer aquilo para que se tem talento no contexto de uma vida privilegiada num dos países mais ricos do mundo, e de não ter razões de queixa. Fracassar na Noruega é uma dupla vergonha: com o mundo como está, nós tínhamos obrigação de ser felizes. Porque é que não somos?"
Em perda
Essa sensação de uma vida em perda é o motor de Oslo, 31 de Agosto: Anders, percebemo-lo rapidamente, é um drogado em recuperação, é por isso que ele e Thomas não se vêem desde que ele entrou para uma clínica de reabilitação, a entrevista de emprego é um ponto de partida para uma possível reinserção. Mas, ao longo das 24 horas em que o filme se passa (terminando, precisamente, no 31 de Agosto que lhe dá título), o seu (re)encontro com amigos e familiares, o que Anders lê nos rostos daqueles que significaram algo para ele, fá-lo questionar essa reinserção. O passado não ficou lá atrás. Nesse caso, haverá um futuro?Trier concorda que Anders tem medo de recomeçar do zero. "Faço parte de... chame-lhe uma classe, um ambiente, uma comunidade, que cresceu a sentir que a subcultura, ou que uma abordagem remota, marginal, era mais verdadeira do que o mainstream. Havia uma sensação de termos de procurar o nosso próprio caminho, de criar a nossa própria identidade. Éramos livres, tínhamos muito escolhas. Mas, ao mesmo tempo, vi isso devastar uma série de pessoas que conheço. Essa liberdade enorme para nos criarmos a nós próprios e à nossa cultura pessoal criava uma espécie de crise de identidade pós-moderna, quando subitamente tivemos de criar uma família e ser convencionais, sobretudo tendo pais que eram pessoas do Maio de 1968, os rebeldes originais. Isso implica compromissos. E sobreviver a esse tipo de compromissos implica auto-ironia, capacidade de rir de si próprio."
Trier admite, no entanto, que Oslo, 31 de Agosto não procura ser nenhum tipo de "retrato geracional". "Tentei falar de uma experiência mais generalizada, e há qualquer coisa nesta personagem que não é apenas norueguesa, que talvez seja mais universalmente humana; uma integridade resultante da ambição, uma integridade quase auto-destrutiva".
E o questionamento existencial que o filme assume sem pruridos tem sido apanágio da tradição cultural ocidental, como o realizador avança. "Não sou académico, atenção, é só uma observação pessoal: há alturas diferentes em culturas diferentes nas quais a posição privilegiada dos criadores levou a histórias muito existenciais. Os retratos que Henry James escreveu das classes elevadas inglesas e americanas no final do século XIX; os livros de F. Scott Fitzgerald nos anos 1920; os romancistas europeus, sobretudo franceses e italianos, do pós-Segunda Guerra Mundial; gente como Alberto Moravia, que falava da nova classe média italiana em expansão e do seu tédio..."
E, já agora, dizemos nós, Pierre Drieu de la Rochelle, controverso escritor francês da primeira metade do século XX, cuja novela Le Feu Follet, publicada em 1931, Trier actualiza livremente em Oslo, 31 de Agosto - "uma história muito simples, uma espécie de desabafo impulsivo". Foi, no entanto, através da admirável adaptação cinematográfica de Louis Malle em 1963 - Fogo Fátuo, com uma performance extraordinária de Maurice Ronet no papel principal - que Trier descobriu o livro. "Embora eu seja um cinéfilo atento a essa época do cinema francês, o filme passou-me ao lado e só o vi quando já era trintão. Fiquei de algum modo fascinado pela capacidade que a história tem de falar sobre a solidão."
O que nos leva, finalmente, ao cinema, depois de uma longa conversa à volta da literatura ("Quase me sinto envergonhado por continuar a ancorar os meus filmes em referências literárias. Tenho medo de ser considerado pretensioso... Admiro escritores, mas nunca tive a ambição de ser um"). Trier faz a ponte entre essa tradição literária "existencialista" e o cinema do pós-Segunda Guerra Mundial. "Os filmes de Michelangelo Antonioni, de quem sou muito fã, ressoam muito nos noruegueses contemporâneos. As pessoas podem achar que pouca gente quer hoje ver um filme de arte e ensaio italiano, mas conheço muita gente que se deixa comover por A Noite ou O Eclipse, porque descrevem uma vida de escolha e de privilégio material, com uma grande sede de significado. A vida é assim: as relações são complicadas, as escolhas são complicadas, as pessoas sentem-se tremendamente perdidas."
O cinema e a cidade
Oslo, 31 de Agosto é apenas a segunda longa-metragem de Joachim Trier, depois de Reprise (2006), que acompanhava a amizade de dois aspirantes a escritores com percursos diferentes: um vê o seu manuscrito publicado e acaba vítima do sucesso, o outro não cumpre a sua ambição mas acaba por ter uma vida "normal" e "feliz". Um pouco como Thomas e Anders no novo filme - e as semelhanças, embora involuntárias, fazem sentido: "São personagens diferentes mas ao mesmo tempo sim, são pessoas em profundas crises de identidade, que desejam ardentemente criar algo de artisticamente importante e que nunca sentiram que o tenham cumprido. Existe de facto uma sensação de insatisfação, de incapacidade de lidar com as suas próprias ambições." As semelhanças não acabam aí: Anders é interpretado pelo mesmo actor que interpretava Philip, o escritor vítima do sucesso, em Reprise, Anders Danielson Lie, "homem da renascença" que é escritor, músico e actor - mas apenas em part-time, porque neste momento está a terminar o seu estágio de medicina.Mas a opção por adaptar Le Feu Follet à Oslo contemporânea a seguir a Reprise passa por outra razão: a sua construção temporal. "Queria explorar como decorre um dia na vida, como momentos aparentemente pouco importantes podem ter tanta importância" diz Trier, referindo-se ao percurso de rally-paper de Anders pela capital norueguesa, retomando o contacto com a família e os amigos. "Há algo de interessante na possibilidade de documentar uma cidade para mais tarde recordar. Apetecia-me explorar a memória e a identidade, e se tivesse feito apenas o estudo psicológico de uma personagem teria falhado esse contexto mais alargado de memória e de experiência, de uma vida numa cidade. Há algo nesta personagem que exige esse contexto; o modo como, num ambiente urbano, estamos tão perto uns dos outros mas ao mesmo tempo perdemos facilmente o contacto." Isso gera uma das mais extraordinárias cenas do filme, com Anders sozinho, isolado, no meio de um café cheio de gente que conversa: "Há algo de perverso em estarmos sentados num café ao lado de pessoas que estão a viver grandes dramas - e não fazermos ideia desses dramas."
Daí que Oslo seja, também ela, uma personagem do filme. "O cinema tem a qualidade quase táctil de permitir observar ambientes, luz, espaço, e de desenhar um sentimento ou um contexto. O filme é muito falador na primeira metade, mas nos últimos 30 minutos torna-se muito mais silencioso, explora as emoções, o espaço nocturno. É muito musical, sinto que estou em parte a tentar contar uma história e em parte a explorar a cidade."
Essa musicalidade vem da cinefilia assumida de Joachim Trier, da sua vontade de ser ao mesmo tempo ambicioso e popular. "Não gosto de escolher entre filmes baseados nas interpretações dos actores e filmes apoiados numa mise en scène muito formal", admite. "Adoro Andrei Tarkovski e Stanley Kubrick, que sempre tentaram fazer coisas com uma ambição incrível, abordando os grandes temas de um modo formal. Por outro lado, adoro Woody Allen, que é talvez o cineasta que mais me ensinou sobre a vida, o lado contemplativo de Alain Resnais ou Chris Marker, os filmes dramáticos de Sidney Lumet... Mas o cinema é também arte popular, e há algo sensual no cinema que é preciso manter na cultura contemporânea."
Se reconheceram as grandes influências de Joachim Trier, também perceberam que são todas do passado, dos "anos de ouro" do cinema de autor na década de 1970. A ironia - e a armadilha - não escapam ao cineasta. "É verdade, mas acho que se faz grande cinema hoje. O Jacques Audiard, a Claire Denis, o Arnaud Desplechin, o Paul Thomas Anderson... Precisamos de não nos deixar apanhar numa espécie de nostalgia estética. Não quero ser apenas um cinéfilo nostálgico. O cinema pode ser muita coisa boa e diferente e tenho esperança para o futuro. Acho que temos de ser optimistas."
O que, com um filme do calibre de Oslo, 31 de Agosto, não há-de ser nada difícil.
Ver crítica de filmes pág. 35 e segs.