O herói relutante que não voltou a ver o regresso do homem à Lua
Era zeloso da sua intimidade. Pouco aparecia em público e não gostava de dar entrevistas. Mas, nas últimas raras ocasiões em que o fez, criticou Barack Obama por ter cancelado o programa que pretendia pôr o homem de novo na Lua, em 2020
Aos 16 anos, já sabia pilotar aviões, ainda antes de ter a carta de condução, uma paixão que o levaria a dar o grande passo de 400 mil quilómetros de distância, tantos quantos separam em média a Terra da Lua. Mas esse pequeno passo para o homem e salto gigante para a humanidade, a célebre frase que Neil Armstrong proferiu enquanto descia as escadas do módulo lunar até à superfície da Lua, a 21 de Julho de 1969, não lhe subiu à cabeça.
Gostava pouco da fama e assim se manteve até à morte, aos 82 anos, neste sábado, devido a complicações de uma cirurgia ao coração. Neil Armstrong preferia a discrição, característica pessoal que aplicou a outros dos seus feitos, muito antes de ter pisado a Lua pela primeira vez e, com ele, todos nós também.
"Tem uma história fenomenal como piloto de testes", refere Tiago Hormigo, engenheiro aeroespacial português e sócio-fundador da empresa Spin.Works. "E também como piloto do X-15, um veículo de testes lançado da asa de um bombardeiro B-52, que servia para testar a reacção humana a voos de alta velocidade e alta altitude. Armstrong foi dos poucos pilotos que voou nesse veículo", conta Tiago Hormigo.
É possível apontar um início para a sua paixão: aos seis anos, o pai levou-o a dar um passeio de avião que o marcou. A Guerra da Coreia interrompeu-lhe, em 1949, a licenciatura de engenharia aeroespacial, na Universidade de Purdue, mas ele seguiu a sua paixão pelos aviões e tornou-se piloto militar (fez 78 voos de combate).
Em 1952, retomou a engenharia aeroespacial. O sonho que o levaria ainda mais longe estava assim a ganhar forma e não tardaria a enveredar por uma carreira que ligaria os aviões ao espaço - e, por fim, à Lua ("para mim, a atracção de ser astronauta não era tanto a Lua, mas voar num meio completamente novo", disse ao seu biógrafo James R. Hansen, no livro First Man: The Life of Neil Armstrong, de 2006).
Tornou-se piloto de testes logo desde a criação do National Advisory Comittee for Aeronautics, a entidade que daria depois lugar à NASA. Foi aí que testou os X-15 e, quando a NASA nasceu, Armstrong continuou a mostrar a fibra de que era feito, o que levou a que fosse escolhido como comandante da Apolo 11, a missão que o pôs a ele, e logo a seguir Edwin Buzz Aldrin, na Lua.
Tiago Hormigo conta outro episódio, relacionado com a missão Gemini 8, que Armstrong comandou em 1966: "A Gemini 8 tinha como objectivo a acoplagem com outro veículo em órbita da Terra. Mas houve um problema com um dos foguetes do veículo onde Armstrong e outro astronauta estavam. Começou a disparar descontroladamente, estava sempre ligado e a nave começou a rodar cada vez mais depressa. Andavam às cambalhotas, estavam quase a perder os sentidos", conta.
"Tiveram de pôr de parte o manual de instruções e tomar a decisão de desacoplar o veículo onde estavam do outro, mas a situação ainda ficou pior. Tiveram de mudar para controlo manual e, a partir daí, restabeleceram o controlo do veículo. Foi ele que tomou essa decisão." Ao testarem os diferentes foguetes da nave, que a controlavam, perceberam que um deles estava sempre ligado.
"Foi uma situação anormal, da qual se saíram bem, e foi logo reconhecido que Armstrong manteve a frieza", remata Tiago Hormigo, que relata ainda um acidente do astronauta norte-americano quando simulava a alunagem em treinos. Conseguiu ejectar-se antes de o módulo lunar embater no chão e, nesse mesmo dia, sem grandes alaridos, já estava a trabalhar no gabinete, sem contar aos outros ao seu lado o que lhe tinha acontecido.
Eis-nos então chegados àquele momento histórico a que assistiram pela televisão 700 milhões de pessoas em todo o mundo.
Michael Collins ficou a bordo do módulo Columbia, em órbita da Lua, enquanto Neil Armstrong e Buzz Aldrin iam a caminho da superfície lunar no Eagle. Mais uma vez, as capacidades e sangue frio de Armstrong iriam ser postos à prova.
A 1800 metros da Lua, uma luz amarela de perigo acendeu-se. "É um 1202", disse Armstrong. Do controlo da missão na Terra, em Houston, um técnico sossegou-os, dizendo que o computador de bordo estava a fazer demasiadas tarefas. Mas os alarmes sucediam-se.
"Tínhamos o coração na garganta", recordou Buzz Aldrin. "Na fase final da descida, vimos uma grande cratera no sítio onde devíamos aterrar. Decidimos que não íamos alunar ali e descemos mais, para ver melhor o terreno. Isto levantou uma nuvem de poeira, que nos impedia de saber a nossa altitude e velocidade".
Era o momento do tudo ou nada.Ou abortavam a missão, ou arriscavam uma alunagem ou, se isso corresse mal, estatelavam-se na Lua. Armstrong tomou os comandos do Eagle e, quando restavam 30 segundos de combustível, aterrou suavemente no Mar da Tranquilidade, evitando pedregulhos e crateras, que danificariam o módulo e impediriam o regresso dos dois homens à Terra.
Não queria ser monumento
Finalmente, o comandante da Apolo 11 pôde dizer a primeira de várias frases que ficaram na história: "Houston, aqui Base da Tranquilidade. O Eagle aterrou." De Houston responderam-lhe: "Roger, Tranquilidade. Já estávamos a ficar roxos. Agora já voltámos a respirar. Muito obrigado."
Armstrong desceu as escadas e disse a outra frase ainda mais famosa - que hoje, devido à má qualidade do som, continua envolta na polémica se ele terá pronunciado um pequeno passo para "o homem" ou "um homem". Seja como for, Buzz Aldrin seguiu-lhe os passos, com outra frase que ficou na memória: "Lindo, Lindo. É uma desolação magnífica", não sem antes ter dito algo bem mais prosaico: "Agora vou fechar parcialmente a escotilha; quero ter a certeza de que não ficamos trancados do lado de fora." A isto, Armstrong respondeu: "Ora aí está uma boa ideia!"
Outra frase ainda, lida por Armstrong numa placa que lá deixaram: "Aqui, homens do planeta Terra assentaram os pés pela primeira vez na Lua, Julho de 1969 d.C. Viemos em paz por toda a humanidade."
Mal chegaram ao solo, Buzz Aldrin relata o que se passou, no livro The Mammoth Book of Space Exploration and Disasters, de Richard Russell Lawrence: "Uma das primeiras coisas que o Neil fez foi apanhar amostras do solo lunar, para o caso de termos de acabar o passeio mais cedo."
Deixaram ainda lá aparelhos sísmicos, que funcionaram durante 21 dias: além dos próprios passos dos astronautas, que mais pareciam cangurus aos saltos, e de sismos, detectaram impactos de meteoritos e permitiram conhecer melhor o interior da Lua. Também lá ficou um reflector laser, que ainda envia feixes para a Terra e tem permitido aperfeiçoar o conhecimento sobre a órbita da Lua. Nas cerca de duas horas e meia em que estiveram na Lua, tiraram fotografias, puseram um colector de vento solar em alumínio a recolher as partículas emitidas pelo Sol, que depois trouxeram para análise, e recolheram rochas (nas seis missões Apolo que puseram 12 homens na Lua, entre 1969 e 1972, recolheram-se 350 quilos).
Há ainda a peripécia da bandeira (cosida por uma portuguesa a trabalhar nos EUA), que quase não conseguiam espetar no chão. Podem ter ido em nome da humanidade, mas a bandeira era a dos Estados Unidos. Afinal, estava-se em plena guerra fria e os EUA e a União Soviética defrontavam-se também na corrida ao espaço.
Quando voltaram à Terra, Armstrong manteve-se na NASA, como um dos administradores, até 1971, altura em que saiu para dar aulas de engenharia aeroespacial na Universidade Cincinnati durante oito anos. Assumiu depois a presidência de várias empresas, mas evitou sempre as luzes da ribalta - por contraponto com Buzz Aldrin, que não só gosta dessa exposição como é público que lutou com problemas com o álcool e depressão.
"Não quero ser um monumento", disse para justificar o seu carácter reservado, segundo a BBC online, acrescentando que é feliz a "viver na obscuridade". O seu biógrafo James Hansen não deixa de lado este aspecto: "Toda a gente tem grande respeito por Neil não ter tirado proveito da sua fama, ao contrário de outros astronautas." Sobre isto, Janet Armstrong, a primeira mulher do astronauta (casou ainda em 1999, com Carol Knight), respondeu a Hansen: "Sim, mas veja o que ele fez a si próprio. Sente-se culpado por ter recebido todos os louros por um esforço de milhares de pessoas."
A família (deixa dois filhos e dez netos) chamou-lhe um herói relutante. "Neil Armstrong era um herói americano relutante, sempre acreditou que só estava a fazer o seu trabalho", disse a família no comunicado sobre a sua morte. "Sempre foi muito zeloso da intimidade."
Das poucas intervenções públicas que fez nos últimos tempos foi para criticar as opções do Presidente dos EUA sobre o espaço: Barack Obama cancelou, em 2010, o programa que pretendia voltar a pôr homens na Lua, em 2020. "Neste momento, os EUA não têm nada programado para ir à da Lua, nem com humanos, nem sequer missões robóticas", explica Tiago Hormigo.
As missões a Marte, ainda que com indefinições e centradas em sondas e robôs, estão agora mais nos objectivos da NASA do que a Lua. O primeiro homem que pisou o solo lunar partiu sem ver o regresso da humanidade à Lua.