Torne-se perito

"Quando se prova o sabor de Paris, nunca mais ficamos contentes com Portugal"

Foto
As receitas para as festas de Agosto são angariadas durante um ano inteiro, entre residentes, emigrantes e patrocínios de empresas locais; as diferentes aldeias competem entre si para ver quem garante o melhor cabeça de cartaz FOTOS: Adelaide Carneiro

Aldeias que enchem em Agosto Angueira, em Vimioso, é uma aldeia de velhos, condenada à extinção. Enquanto isso não acontece, continua a celebrar a chegada dos que, há décadas, fugiram da fome. Hoje são menos os que sonham regressar

"Ai que coisa mais bonita que este homem é!", suspira a mulher, o marido ao lado, braços cruzados no peito, visivelmente menos arrebatado por Roberto Leal que, no palco, trauteia a saudade da terra: Vivi sem muitos cuidados/corri atrás de gados/ (...) Ai se eu disser que não sinto saudades/Eu minto p"ra poder viver. Cai o lusco-fusco das nove da noite, mas a presença de Leal em palco é ainda um ensaio. O concerto a sério há-de ser daqui a mais de uma hora. Aí sim, hão-de ganhar vida os vários caminhos que desaguam neste largo de Angueira, uma das aldeias de Vimioso, no Nordeste Transmontano, que todos os Agostos se enchem de emigrantes.

Quem tivesse cá estado na desertificação do Inverno, não reconheceria a aldeia. Dois palcos nestas escassas centenas de metros em terra batida, uma placa a empurrar para Espanha, um pavilhão onde se abastece de cerveja, tremoços, vinhos e bifanas esta multidão. A interpretação do que aqui se vê dava um tratado sociológico. Velhotas de meias pretas apesar do calor, saias pregueadas, cabelos presos com uma travessa na nuca. Crianças enfeitadas com laçarotes acetinados que, em velocidade de corrida, espalham os viens ici, salut e au revoir do costume. Raparigas que bamboleiam uma indiferença estudada sobre saltos agulha revestidos a rosa choque. Homens de boné e camisa apertada até ao pescoço - há-de ficar mais aberta à medida que o álcool começar a desembaraçar a postura, já lá chegaremos. Por agora, o que se adivinha é uma funda, fundíssima, tristeza nestes olhares tisnados e arrevesados de emigrações e separações à força, e note-se que, nos anos 60 e 70, e mesmo 80, os telefones por estas bandas conheciam-se apenas de ouvir dizer.

Mas hoje o dia é de festa e, enquanto não começa o concerto a sério, os altifalantes enchem a atmosfera das batidas de Michael Jackson, ABBA, Emanuel. A questão é que nem o eclectismo da banda sonora rasga a tristeza mansa que por aqui se adivinha. Está no olhar dos que nunca saíram. Está no olhar dos que arriscaram a sorte lá fora, sobretudo em França, e agora se sentem de lugar nenhum. "Em França, somos portugueses; aqui, somos emigrantes", tinha-nos contado Veríssimo do Nascimento. Haveremos de o ver ao começo da noite, cadeira desdobrável debaixo do braço, a procurar lugar de frente para o palco principal. Agora está junto à mesa dos tremoços, corpo para enfrentar uns quantos e os mais que venham e o olhar de repente indefeso quando o PÚBLICO lhe pergunta se se sente mais francês ou português. "Sou português, bem certo, mesmo quando estou em França, mas aqui, infelizmente, sinto-me estrangeiro porque não me chamam português, chamam-me emigrante".

Um silêncio de vários minutos. E depois: "É uma injúria que me dão".

Chapéu branco de palha, anel de ouro nos dedos e cordão ao pescoço, emigrou com passaporte falso em 1966, assim que terminou o serviço militar. "No início, trabalhei no bâtiment [construção civil] e depois numa fundição, durante 23 anos, até à reforma". Tem lá casa com terreno à volta, três filhos e seis netos que não querem ouvir falar de Portugal. "Cheguei lá com isto", prossegue, abrindo as mãos vazias. "Aqui tenho a casa que era dos meus pais e mais nada. Aos meus netos, ainda ensaiamos de lhes ensinar o português, mas é difficile, sem a minha família não posso voltar para cá de vez".

Roberto Leal conhece este ir e voltar. Nasceu numa aldeia a poucos quilómetros desta (Vale da Porca, Macedo de Cavaleiros), correu atrás de gado, viveu a fome e a miséria que castigavam o interior do país nos anos 50, emigrou para o Brasil, fez-se cantor. Ao longo dos seus 18 milhões de discos vendidos, entremeou as cantigas de amores brejeiros com o seu papel de embaixador do Portugal destas aldeias rurais e atrasadas. E é no que delas resta que passa agora os seus queridos meses de Agosto. Ouçamos Roberto - aliás, António Joaquim Fernandes, que foi o nome com que foi baptizado - a partir do camarim: "Um dos meus maiores sucessos é A minha aldeia... e porquê? Porque, para os emigrantes, é um encontro com as origens. Eu gosto de fazer este concerto aqui porque foi numa aldeia como esta que eu imaginei tudo. Aquilo que eu achava que era pobreza acabou por se tornar a minha maior riqueza".

Depois de milhares de concertos por esse país fora, Roberto conhece o travo amargo de muitos destes regressos à aldeia. "Estas festas são a vingança dos emigrantes sobre a terra. São o suprir da dor de terem sido empurrados para fora. Por isso é que o emigrante sente aquela necessidade de se mostrar num carro vermelho e fazer uma casinha grande. Não é, como muitos pensam, para humilhar os que cá estão: é porque a maior parte nem sapatos tinha quando saiu, então agora vingam-se da terra, mas é uma vingança boa que cabe em lágrimas, num folar e num bom copo de vinho".

Ao balcão do café da junta de freguesia, Guilherme Augusto Alves parece ser dos que conseguiram fazer as pazes com Portugal. "Regressei de França com alguns 50 anos, agora tenho 69, mas a minha reforma é de lá. Estava lá bem com a minha mulher, tinha motorizada e não se pode dizer que dormisse numa barraca, tínhamos apartamento, mas houve uma altura em que, se não tínhamos vindo, eu teria morrido. De repente, perdi o apetite, não conseguia engolir nada. Seria bruxedo...".

Não se leia mal o seu boné com o emblema de Portugal. Guilherme garante nada ter contra os franceses. "Au contraire. Não sou como alguns que dizem "Que se lixe la France e mais quem lá está". A mim, a França deu-me o ser, nem admito que digam mal dela. Agora, foi aqui que nasci e, quando regressei, voltei à lavoura e, graças a ela, garanto-lhe que se muitos apanhassem o que tenho em casa julgavam-se ricos, está a perceber?".

De volta ao recinto, José Martins faz uma festa dentro da festa para exibir a neta. "Olhem para ela, não parece a Miss Vimioso!?", interpela, apontando a adolescente loura, esguia e ocupada em escapulir-se das atenções que o avô reivindica para ela. Já sentado, José Martins cerra o sobrolho para contar que se fez adulto em França, que o protegeu do serviço militar e da fome.

- Foram 27 anos a ganhar bom dinheiro. E maldita a hora em que voltei a esta terra de ciganos e romenos.

- Porquê?

- Quando se prova o sabor de Paris, nunca mais ficamos contentes com Portugal. Mas eu tinha a ideia fixa de trabalhar por minha conta e lá não dava. E depois quando vínhamos de férias toda a gente abria o coração, mas era ilusão porque, quando voltámos de vez, sentimos a inveja.

Conta que se fez dono de um café mas que a mulher se aborreceu de uma clientela que, "à noite, era só de drogados e borrachos". Quando desistiu do negócio e alugou o espaço, ficaram a dever-lhe a renda e ainda o ameaçaram com um tiro. Mais tarde, ensaiou o latifúndio:

- Cheguei a agrupar alguns hectares mas, quando perceberam o que queria fazer, cortaram-me as vazas e aumentaram os preços. Tudo por inveja.

Michael Jackson a espalhar Billie Jean pelos altifalantes e este homem a mastigar amargura: "Vou para França outra vez e nunca mais quero saber de Portugal. Se fosse hoje, nunca teria voltado", garante, acrescentando que muitos dos emigrantes que como ele regressaram a Angueira arrependeram-se entretanto.

- Poucochinhos progrediram. Mais de 90 por cento dos que voltaram estão arrependidos. Conheço pessoas que estiveram em Paris e para o fim compraram casa em Hendeye para ficarem mais perto de Portugal mas com as condições da France.

Também por isso é que este cenário desaparecerá em poucos anos. Em 1960, seriam para cima de 600 habitantes, agora pouco passam dos 100. Nem é preciso ir aos Censos. Vítor Pires, que aqui resiste há três noites sem dormir, porque foi ele o mordomo das festas, lembra-se de quando andou a distribuir os impressos do INE. "São 119 habitantes, mais de 60 com 80 e mais anos. Casais com menos de 40 anos, há dois. Casas, se não estou em erro, são 53, mas, mesmo agora, se der uma volta por aí, encontra a maior parte vazia. Algumas até foram recuperadas pelos emigrantes, mas agora são muito menos os que voltam, porque os filhos já não querem sair de França. Mesmo nas férias, alguns vêm uns dias e depois vão para o Algarve".

Pudera. "Aqui o rio seca todos os anos. Havia um minimercado que fechou. O café também fechou, só abre por altura das festas". Fazer compras aqui só aos vendedores ambulantes. "O padeiro passa duas vezes por semana, o do peixe uma e o da fruta também uma". De resto, "indústria não há, da agricultura não se vive, a tendência é para morrer a aldeia".

Para não morrer ele próprio, Vítor, que insistiu em ficar até aos 41 anos, prepara-se agora para arriscar Paris. "É onde está a maior parte do pessoal desta terra. Eu tinha uma empresazinha de aluguer de máquinas industriais, mas já não ganho dinheiro nenhum. Ao que me dizem, a situação lá sempre está um bocadinho melhor".

Não muito longe dali, é como se António Esteves Branco e Vítor conversassem. "Compreendo bem os que vão para lá agora. E os franceses continuam a precisar de gente que trabalhe", comenta este emigrante. Pólo com uma dessas etiquetas de marca, café na mão, goza a reforma entre Angueira e a Île-de-France. Lá tem a mulher, o filho, os franceses de quem se fez amigo. Aqui, alguns primos e a casa que era dos pais. Descontados dois anos (num nasceu-lhe o filho, no outro adoeceu-lhe a mulher), anda neste cá e lá desde 1971. "Dantes fazia-se 14 ou 15 horas de caminho sem parar. Agora páro para dormir. O cansaço é outro e já não se justifica tanto sacrifício". Agora está bem aqui, o pior é nos outros meses em que cá chega desejoso de descarregar saudades e a aldeia a responder-lhe com silêncio. "Tirando Agosto, a aldeia está morta, não se encontra ninguém". Faltam-lhe assim os argumentos para convencer a mulher a regressar de vez. O filho vem a Portugal, mas só em férias, e, mesmo assim, fora da aldeia: "Este ano varreu Portugal de ponta a ponta".

As filhas de Adelaide Rodrigues nem isso. "Ainda hoje telefonei para a mais velha, que está lá em França, e disse-lhe que chorei muito de manhã, na igreja, por não os ver cá todos. Mas ela respondeu-me: "Mãe, não chores, que nós temos-te no pensamento. Sabes que não podemos ir para aí, porque na aldeia não se vive". E tem razão, a mim é que não me largava esta ideia de vir acabar na terra onde nasci. Tenho os meus pais enterrados no cemitério desta terra e quero ir para o pé deles". Não fosse esta ideia fixa que a levou a abandonar filhas, netos, casa e 47 anos de vida em França, Adelaide não estaria como está sentada nesta escarpa que oferece visão panorâmica sobre a festa toda. Ao lado, duas amigas de infância.

- Lembras-te, Corina, de quando andávamos garotas no meio das cerejeiras? - interpela Adelaide.

- Ai mulher, cala-te lá. Vamos é ouvir o Leal - responde Corina da Conceição, também ex-emigrante, mas em Pamplona, Espanha.

- É uma alegria estar na aldeia durante estes dias. E então com um artista como este... - não se arrepende Adelaide.

- Tu estás com o gosto perdido - interrompe Corina. - O melhor é o Emanuel. É mais jeitoso. Ou até o Malhoa. Olha, vai estar em Carção daqui a uns dias.

- Desde que não seja o Quim Barreiros, como há uns anos. Esse é muito simplório.

- É um porco! - torna Corina.

- O Roberto Leal pode estar velho, mas gosto do cantar dele, pronto. Fala ao coração. Também gosto daquela que contou a vida toda, Linda qualquer coisa, já não me acordo o nome. Estás a ver, ó Corina, como é aquela do Roberto Leal: Só quem lá viveu entende, quanto dói na gente deixar Portugal... E riem-se todas, batendo palmas.

Só por isso já teriam valido a pena os 25 mil euros que custou esta festa e que demoraram um ano a juntar.

Sugerir correcção