Intimidade: nova forma de ser político

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1971-1974 (Estou em Moçambique), de Andreia Sobreira (2011): fotos da guerra colonial sobre as quais se constrói um diário

Os Estados Gerais do Documentário, na aldeia francesa de Lussas, mostra um amplo ciclo, este fim-de-semana, dedicado ao documentário português. Uma rota sobre os gestos e as intenções de um cinema que olha para nós em estado puro.

Fundado em 1979, os Estados Gerais do Documentário (États Généraux du Film Documentaire) é, hoje, uma das plataformas mais importantes do documentário na Europa. Montado numa aldeia do Sul de França (Lussas), propõe um encontro directo entre espectadores, filmes e realizadores, proporcionando não apenas uma experiência de visionamento de filmes sobre o nosso presente, mas também uma reflexão crítica entre quem fez os filmes e quem os vê. Foi o evento que inspirou a criação do Doc"s Kingdom, festival-encontro realizado em Serpa e cuja última edição decorreu em 2010. Este ano, a atenção vai para Portugal: quase 30 filmes, entre o ano da revolução de Abril e os mais recentes (incidência nos últimos cinco anos), que lançam propostas sobre as características e a evolução do documentário, uma plataforma que constitui, hoje, uma das principais formas de filmar em Portugal.

O director artístico Christophe Postic diz ao Ípsilon que a selecção é feita por "filmes que vemos regularmente e que costumam estar presentes nas secções competitivas de festivais internacionais." O ciclo foi assim desenvolvido com a programadora portuguesa Inês Sapeta Dias (Panorama - Mostra do Documentário Português), que optou por estabelecer uma rota que guiasse os espectadores pelo presente. Mas a presença de obras mais antigas - Jaime (António Reis, 1974), Trás-os-Montes (António Reis e Margarida Cordeiro, 1976), O Movimento das Coisas (Manuela Serra, 1985) - ajudam-nos também a ver os filmes mais recentes.

Aproximação ao quotidiano

Em Portugal, o período pós-revolucionário foi efervescente na produção de documentários que optavam por uma militância política, pedindo uma intervenção sobre a sociedade e os seus modos de vida. Mas as obras de Reis, Cordeiro e Serra anunciaram uma viragem no olhar do documentário português, hoje prolongado no trabalho de realizadores recentes. "Julgo que viram mais na maneira do António Reis olhar para as coisas do que no cinema em si", explica Sapeta Dias. "Há uma parecença na maneira de estar e em relação ao que está à volta." Ou seja, uma proximidade ao quotidiano e às formas simples de vida, não sem explorar as possibilidades de expressão, ou de poesia. Para a programadora, "um filme paradigmático é O Movimento das Coisas, que começou a ser feito durante o PREC e foi terminado dez anos depois." Nesse filme, o retrato de uma aldeia remota, Lanheses, serve mais para mostrar que, no simples movimento das pessoas e do seu trabalho, vive mais uma experiência de cinema do que um manifesto político explícito. "É mais uma tentativa de ver do que de explicar, [enquanto que] o cinema pós-Abril é uma tentativa de mudar o rumo das coisas que estavam a acontecer. Nestes filmes, há uma tentativa de estar com aquilo que se está a filmar."

A compreensão pelo que está próximo, hoje, reflecte-se por uma presença constante da paisagem e da natureza para entender a vida: na forma como esses são os principais critérios para uma família mudar-se do Japão para o interior português (Para Além das Montanhas, Aya Koretzky, 2011), ou como um jardim público funciona como epicentro de trabalho ou de lazer para os habitantes de uma cidade (Jardim, João Vladimiro, 2008), ou no simples movimento de formas naturais de vida (Paisagem, Renata Sancho, 2001). Para Inês Sapeta Dias, um filme como A Natureza das Coisas (Luís Miguel Correia, 2003), sobre o trabalho do escultor Carlos Nogueira, que filma tanto as obras em si como o espaço onde estas intervêm, também "tem essa força - não é o retrato de um artista mas quer perceber a obra dele e acompanhá-la com os materiais do cinema, e isso está muito presente nos filmes todos."

Do mesmo modo, o entendimento pelas opções e os modos de vida passa por um questionamento das gerações precedentes sobre as suas escolhas e a sua intimidade emocional. Para Christophe Postic, "a questão da transmissão está muito presente em jovens cineastas que questionam os seus pais imigrantes" - o exemplo mais forte é Entrevista com Almiro Vilar da Costa de Sérgio da Costa, de 2009. "Do mesmo modo, A Casa Que Eu Quero [Raquel Marques e Joana Frazão, 2009] é um filme com um princípio muito simples [imigrantes portugueses guiam-nos pelas casas que construíram, hoje, nas suas terras de origem], mas de repente surge uma faceta da imigração portuguesa com uma força muito grande: um fora-de-campo que invade o filme de forma apaixonante apesar da proposta inicial ser ténue" - um pouco como Ruínas (2009) de Manuel Mozos que convoca as memórias de vida de espaços abandonados em Portugal.

Uma nova forma de ser político

O elemento político do documentário português actual deslocou-se, portanto, mais para uma tentativa de entendimento do que de intervenção. Para Inês Sapeta Dias, "Susana de Sousa Dias tem trabalhado sobre isso [48, 2009], mas também há pessoas novas, como em 1971-1974 (Estou em Moçambique) [Andreia Sobreira, 2011]". Neste último, apresentam-se fotografias da guerra colonial, em Moçambique, sobre as quais se constrói um diário, em discurso directo, sobre objectos usados, locais percorridos ou acções cometidas (de guerra como pessoais). Um passado político que se revela, agora, na sua intimidade - o sinal de um país (e dos seus cineastas) que aprende a viver consigo mesmo.

Mas é Le Passeur (2008), de Filipa César, que surge como paradigmático do percurso deste ciclo: quatro opositores à ditadura de Salazar reúnem-se, décadas depois, na região fronteiriça onde ajudavam a fugir opositores ao regime. É um filme onde a memória dos eventos, a reflexão crítica, os rostos dos indivíduos e a natureza que recebeu os seus passos ocupam lugares de igual destaque numa realização marcada por uma experimentação formal e sonora que propõe caminhos para se entender a história íntima de um país. Inês Sapeta Dias: "temos filmes na programação a que não sei se poderemos chamar de documentários. "Se calhar, tal como no gesto fundamental do documentário, é o interesse nas coisas que estão à nossa volta." Algo que, segundo o director artístico dos Estados Gerais do Documentário, se revelou também numa "grande diversidade de propostas". "Há objectos que estariam mais do lado de um cinema experimental, na sua sensibilidade e sensação [VHS - Video Home System, Salomé Lamas, 2012], outros impregnados pela arte contemporânea [Le Passeur] e filmes que têm um valor mais próximo do cinema directo."

Sobressai o gesto de um conjunto de autores que partem das coisas concretas e da intimidade de quem os rodeia para sugerir, em fora-de-campo, uma leitura política. "É urgente as pessoas olharem umas para as outras e para o que está mais perto em vez do que está mais longe. Estamo-nos a esquecer de cuidarmo-nos uns dos outros. É um gesto importante, e estes filmes, cada um à sua maneira, sugerem outras maneiras de pensar e de olhar para as coisas."

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