A história não é nova, já a vimos no Iraque, no Afeganistão, no Egipto e, há bem pouco tempo, no Mali, com direito a turbantes azul-turqueza e a grupos da Al-Qaeda. Vimos parte do património ser destruído e pilhado, e entre alertas e denúncias das entidades competentes e da comunidade internacional pouco se pôde fazer, pelo menos durante os períodos tensos dos conflitos.
Em todos estes casos a história mostrou-nos que, quando se trata de uma guerra, os dois lados são cegos. Ou como diz António Dias Farinha, professor catedrático de História e de Árabe da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por muito que as pessoas tenham consciência do património que as rodeia, "as bombas não conhecem a importância dos lugares onde explodem". E é exactamente por isso que o património da Síria, refém dos combates entre os rebeldes e as forças leais ao Presidente Bashar al-Assad há 18 meses, está a ser destruído todos os dias. Conta quem lá está que já nem se pode falar em risco de este património vir a desaparecer porque já começou, efectivamente, a ser dizimado. A UNESCO, braço das Nações Unidas para a Cultura e a Educação, lançou um alerta há um mês e apelou à protecção dos bens, mas até agora a Síria, que tem seis sítios classificados como Património da Humanidade, ainda não entrou para a lista dos bens em risco.
Há séculos um grande centro de trocas comerciais, por onde os portugueses também andaram, a Síria é hoje um dos países mais antigos do mundo e o único onde ainda se fala a língua de Jesus, o aramaico, explica Dias Farinha ao PÚBLICO. A sua história é anterior ao cristianismo e por ela passaram vários povos e várias influências, que se reflectem nos monumentos e no património. Com a intensificação dos combates, resta agora saber o que vai ficar de pé.
"Todo o património está ameaçado e já muito foi danificado. Os seis bens sírios classificados como Património da Humanidade foram todos atingidos e outros candidatos à UNESCO também", disse ao PÚBLICO por email Emma Cunliffe, investigadora no Departamento de Arqueologia da Universidade de Durham, no Reino Unido, e que em Maio apresentou o relatório Damage to the Soul: Syria"s Cultural Heritage in Conflict, que contém uma lista dos bens afectados. Desta lista, difícil de reunir devido ao acesso restrito à informação, constam não só mesquitas e igrejas, como complexos arqueológicos e museus. E até já está desactualizada. "Desde Maio já soube de mais destruições, como as da cidades antigas de Damasco e Alepo", acrescenta a investigadora, dizendo que também o castelo medieval Crac des Chevaliers terá sofrido danos.
Um amor que protege
"É muito triste que isto esteja a acontecer, é todo um conjunto de traços civilizacionais, monumentos e ligações únicas no mundo que podem estar a perder-se", diz Dias Farinha, que acredita que "será o amor das pessoas aos lugares e às suas próprias raízes a proteger o património". O professor não duvida que os locais de maior importância sejam preservados, mas acrescenta que, "como em todas as épocas e todos os lugares, existem ladrões que se aproveitam [da guerra]".
Foi o que aconteceu em Julho de 2011, quando uma estatueta aramaica desapareceu de um museu de Hama, cidade a norte de Damasco. Sobre o roubo desta peça, que integra já a lista dos bens mais procurados pela Interpol, pouco se sabe. Para denunciar este e outros casos, que desde então têm aumentado, e para mostrar a destruição do país, um grupo de arqueólogos sírios, franceses e espanhóis a trabalhar na Síria criou a página Le patrimoine archéologique syrien en danger no Facebook. Não apoiam nenhum dos lados do conflito e, por isso, responsabilizam o regime de Assad e os rebeldes. O seu objectivo é apenas um - criar uma base de dados de todo o património afectado para que se possa desenvolver um plano de recuperação.
"O que está a acontecer é muito grave", diz ao PÚBLICO o arqueólogo Rodrigo Martín, a trabalhar na Síria há 15 anos, explicando que não é possível saber ao certo o que realmente está a acontecer. "As fotografias e os vídeos são-nos enviados sobretudo por arqueólogos e pessoas conhecidas, mas apenas depois dos conflitos, ou seja, quando se pode voltar a circular nestas zonas. Não temos consciência do que acontece em tempo real", explica o arqueólogo. Adianta que, desde que a página foi criada no ano passado pelo sírio Ali Othman, já foram várias as ameaças que receberam. "Estamos numa ditadura", reconhece Martín, que já confiou na Direcção-Geral de Antiguidades e Museus da Síria e que hoje diz não poder continuar a fazê-lo, porque há muita corrupção. "Têm aparecido pessoas que não são arqueólogos com autorizações oficiais para escavar", exemplifica.
Para a arqueóloga libanesa Joanne Farchakh Bajjaly ainda é muito difícil fazer uma avaliação da situação, uma vez que "só existem evidências de destruição e oficialmente nada se sabe", diz ao telefone. "Quando se destrói, dificilmente dá para recuperar", sublinha Bajjaly, elogiando, apesar de tudo, o empenho das populações sírias na protecção. "Estão educados para a importância do património, sabem exactamente o que têm, o valor histórico e turístico."
Para a libanesa, é preciso agir antes que seja tarde de mais: "Um bem só entra para a lista do património em risco quando é emitido um relatório oficial e a UNESCO não conseguiu ainda entrar no país para medir os estragos e avaliar a situação."