O fabricante de sonhos
Uma luxuosa edição recorda o fotógrafo americano que imortalizou as estrelas da época áurea de Hollywood. Imagens meticulosamente encenadas que são janelas para outro mundo
É fácil perceber porque é que a revista Esquire definiu desta maneira as fotografias tiradas pelo americano George Hurrell (1904-1992): "Um retrato de Hurrell está para a fotografia promocional normal como um Rolls-Royce para um patim." Num branco e preto deslumbrantemente dramático, os retratos de Hurrell capturavam na perfeição toda a essência intangível do glamour da época áurea de Hollywood, a perfeição quase apolínea dos rostos, o carisma de uma época em que os actores e as actrizes eram autênticos deuses. Ainda hoje, quase um século depois de terem sido feitas, transportam consigo todo o espírito do auge do star-system.
Quando o cinema tinha uma vertente arregalada de escape e sonho, em plena década de 1930, na ressaca da Grande Depressão, George Hurrell era um dos maiores fabricantes desse sonho.
As suas fotografias, agora recuperadas e restauradas numa luxuosa edição com o título Hurrell: The Kobal Collection (edição Reel Art Press), parecem instantâneos presos em âmbar da Hollywood de entre-Guerras, fragmentos de uma época perdida. Um pouco, aliás, à imagem do próprio trabalho de Hurrell, que "passou de moda" depois da Segunda Guerra Mundial e só anos mais tarde começou a ser apreciado enquanto fotografia artística, mais do que imagens de promoção.
Verdade seja dita, o próprio fotógrafo começou a tirar estes retratos como um hobby lateral àquilo que via como a sua carreira principal de pintor paisagista, formado em Belas Artes em Chicago. Hurrell seguiu o velho conselho de "go West, young man", e foi tentar a sorte na Califórnia, aumentando o seu rendimento de pintor com as fotografias que ia tirando a amigos e conhecidos. O hobby passou a trabalho a tempo inteiro graças ao retrato que tirou a uma herdeira aviadora de Pasadena, Florence Barnes. Ramón Novarro, amigo de Florence e uma das grandes vedetas do cinema mudo, gostou do que viu e contratou Hurrell para o fotografar. Através de Novarro, veio a actriz Norma Shearer, que procurava uma imagem mais madura e sedutora e que mostrou, por sua vez, a sessão ao marido, Irving Thalberg, chefe de produção da MGM. Os estúdios contrataram imediatamente Hurrell para trabalhar como fotógrafo do departamento de relações públicas.
A passagem do fotógrafo pela MGM foi breve - por 1932 Hurrell já tinha o seu próprio estúdio em Los Angeles - mas granjeou-lhe uma clientela fixa e fiel. A sua agenda consistia no "who"s who" da Meca do cinema: Judy Garland, Katharine Hepburn, Joan Crawford, Jean Harlow, Carole Lombard, Marlene Dietrich, Errol Flynn, James Cagney, Humphrey Bogart, até mesmo Greta Garbo (um dos poucos casos em que a sessão não correu a contento). Foi até Hurrell quem celebrizou o penteado "em cascata" de Veronica Lake.
Esculpir um rosto
Dizia que trabalhava "com as sombras para definir o rosto em vez de o inundar de luz". Sempre num ambiente controlado, usava uma fonte de luz pendurada numa perche para literalmente esculpir os traços e as expressões e fazia questão de retocar os negativos à mão.
Com a Segunda Guerra, Hurrell serviu no departamento fotográfico da Força Aérea e, quando regressou, o mundo tinha mudado. O encanto do glamour clássico já não se adequava aos novos tempos, pedia-se algo menos produzido, mais naturalista. A Columbia ainda o foi buscar para ajudar a criar a imagem de Rita Hayworth, mas Hurrell acabaria por se dedicar à fotografia de moda, regressando pontualmente ao retrato.
Nos anos 1970, o seu trabalho começou a ser reavaliado, em grande parte devido ao interesse do coleccionador e cinéfilo John Kobal, que acumulou uma impressionante série de originais do fotógrafo, e cuja colecção fornece a base do livro agora editado (ver mais em www.reelartpress.com). As suas fotografias, raramente disponíveis no mercado, atingem hoje somas exorbitantes e algumas estão expostas em museus.
Hurrell continuou a fotografar até morrer, em 1992. Sharon Stone, os Queen, Brooke Shields ou Paul e Linda McCartney foram alguns dos nomes que posaram para a sua câmara nos últimos anos, e o teledisco de Vogue, de Madonna, homenageia abertamente as suas imagens. Mas são as fotos que tirou nos anos 1930 e 1940, em plena época de ouro de Hollywood, que são a sua marca registada: as imagens que nos habituámos a identificar com a clareza do preto e branco e o mistério de uma estrela que, através de uma fotografia meticulosamente encenada, abria uma janela para outro mundo.