Vieira de Mello só ficou em Timor por não ter escolha, mas lá mudou a sua vida
Sérgio Vieira de Mello chegou a Timor-Leste dias depois de o país ter sido destruído após o referendo de 1999. Começou por só querer ficar uns meses, mas acabou por ficar dois anos e meio. Transformou o país e, pelo caminho, também a si próprio. Foi morto em Bagdad faz hoje nove anos
É difícil escrever sobre o Sérgio Vieira de Mello sem cair num detestável tom hagiográfico ou na deselegante recusa em reconhecer o seu talento.
Muito do que se tem dito sobre este homem cai num destes dois campos. Há os que o comparam a algo entre James Bond e Bobby Kennedy e há os que vêem no seu estilo algo forçado - talvez até intrigante - e que sentem que ele atendia aos interesses de pessoas que não o mereciam.
Pondo as minhas cartas em cima da mesa, nunca conheci ninguém com o carisma puro que o Sérgio tinha; poucas pessoas têm uma sensibilidade política tão grande. Ele era brilhante. Mas tinha defeitos - como a vaidade. Preocupava-se demasiado com o que os outros pensavam dele e ofendia-se com facilidade. Penso também que, no final da sua vida, lamentava profundamente o modo como tinha gerido a sua vida pessoal (o facto de não saber que estava no final da sua vida torna esta consciência mais dramática).
O seu trabalho em Timor-Leste esteve longe de ser perfeito. Tenho dúvidas de que o Sérgio tenha feito tudo o que era possível em relação à responsabilização pelos crimes graves cometidos no território; ou que tenha enfrentado com a firmeza necessária a necessidade de uma reforma do sector de segurança. As consequências do que ficou por resolver continuaram a ensombrar Timor ao longo destes dez anos de independência (menos justo ainda, na verdade totalmente incorrecto, há quem pense que ele quis satisfazer a vontade dos EUA de modo a garantir o regresso da ONU ao Iraque).
Mas, para mim, estas falhas demonstram, de certo modo, o seu brilho, revelando o contraste que permitia mostrar as suas qualidades, tornando-o ao mesmo tempo absolutamente humano.
Num mundo sem líderes, a sua ausência, hoje, evidencia as suas incríveis qualidades. Ao ver o último filme sobre a sua vida - e a sua morte - fiquei impressionado pela força que o ouvir a sua voz e ver as suas imagens, tantos anos depois de ter visto o Sérgio pela última vez, transmitem. Mesmo agora - em filme e nove anos depois de ele ter sido morto -, a sua força de atracção é fenomenal. O Sérgio sabia que tinha este carisma e usava-o, de forma cirúrgica, tanto profissional como pessoalmente. Isto era uma das coisas que, provavelmente, irritava algumas pessoas. Mas era também parte fundamental do que ele era: isso surgia de forma natural. O seu poder estava aqui.
É possível que Timor e o seu caminho para a independência tenham tido mais impacto no Sérgio do que o Sérgio, que durante 30 meses foi administrador da meia ilha, teve em Timor. É assim que deve ser - o que não significa que Sérgio não tenha tido um profundo impacto no país que foi, efectivamente, cenário do seu último grande trabalho para as Nações Unidas antes de ter sido morto no Iraque, pouco mais de um ano depois da independência de Timor.
Timor, creio, foi uma experiência seminal para o Sérgio, essencialmente em dois aspectos. Apurou o leitmotif do seu trabalho: a sua capacidade de ter empatia. Pensei nisto de novo ao ler a recente biografia de Montaigne, filósofo francês do século XVI (How to Live: A Life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer, Chatto & Windus, 2010), na qual a autora, Sarah Bakewell, descreve a história de quando Montaigne conheceu um grupo de indígenas: os Tupinambá, por coincidência do Brasil, o país do Sérgio. Montaigne ficou muito impressionado com o facto de eles falarem dos humanos como metades uns dos outros e observou que "é uma e a mesma natureza que faz o seu caminho". Como todos os pensamentos profundos, o que esta afirmação tem de inteligente é resultar do que é absolutamente evidente.
Penso que o Sérgio se identificava muito com as ideias de Montaigne. Numa das suas últimas entrevistas, em Bagdad, falou sobre como - independentemente da motivação por detrás da intervenção americana no Iraque - ele podia compreender muito bem porque é que as pessoas eram contra a presença de tropas estrangeiras no seu país: ele sentiria o mesmo desconforto visceral se fosse forçado a testemunhar o mesmo no Rio de Janeiro, a sua cidade.
Não penso que seja um segredo que o Sérgio foi para Timor à espera de ficar apenas alguns meses. Não tinha vontade de ficar mais do que isso. Ele tinha, isso é verdade, vontade de ficar no seu posto anterior, como administrador no Kosovo, e ficou muito magoado quando o posto permanente foi entregue a um europeu. Mas acabou por ficar em Timor dois anos e meio. Porquê?
Em parte, a resposta está nas motivações iniciais: o desejo de alguma emoção (o pós-Kosovo, o peso da sede e o Inverno de Nova Iorque não seriam suficientes para isso), mas também um certo sentido de solidariedade lusófona que um brasileiro sente em relação a um timorense. Além disso, tinha conhecido muitos exilados timorenses quando trabalhara para o ACNUR em Moçambique. Mas nenhuma destas razões explica o que acabou por ser um compromisso tão longo.
Timor era, de certo modo, o lugar para estar em 1999 e em 2000: era a maior missão da ONU até então, única na dimensão de autoridade dada aos peacekeepers, tanto militares como civis, e que Sergio chefiava; e era uma excelente boa história para os jornalistas. O que poderia ser menos complicado e mais unificador do que ajudar um povo corajoso a concretizar a sua muito desejada e sofrida independência?
Por outro lado, era difícil imaginar uma missão num lugar mais remoto, raramente havia ameaças de segurança, e os desafios eram a longo prazo. Isto, para alguns, significava que chamava menos a atenção.
Ou seja, o Sérgio ficou, inicialmente, porque não tinha escolha: não foi nomeado para nenhum outro posto de topo da ONU (quando já se falava do seu nome para Alto- Comissário para os Refugiados); e o secretário-geral Kofi Annan (e Richard Holbrooke, então embaixador dos EUA na ONU) pensava que ele era indispensável em Timor. Com o tempo, porém, ficou porque queria ver o trabalho feito, porque o desejo de Timor ser independente se tinha entranhado na sua pele. Ele queria ser parte do projecto.
É fácil, agora, ver esta evolução: de transitório funcionário da ONU a principal defensor e porta-voz dos interesses timorenses. Vale a pena ver alguns aspectos, porque o que o Sérgio fez foi incrível se pensarmos como a ONU pode ser um mundo onde a mudança acontece a um ritmo glaciar.
O grande feito do Sérgio em Timor foi reconhecer que o modelo colonial de uma administração externa desenhado pelo documento que fundou a UNTAET (a Resolução do Conselho de Segurança 1272) não iria funcionar. E que só com um governo com (e pelos) timorenses seria viável.
O ponto de partida era o de que os timorenses - colonizados, mesmo infantilizados - durante séculos, sem capacidades técnicas e com o país arrasado na sequência da consulta popular, seria administrado pela ONU durante muitos anos para no fim, um minuto antes da meia-noite do dia da independência, entregar as chaves do Estado. Os que defendiam esta opção argumentavam que não havia, então, timorenses legitimamente eleitos a quem dar poder e autoridade. Além disso, o modelo internacional e tecnocrático no qual a missão tinha sido feita fora a base de missões anteriores no Kosovo (como os militares, a ONU tem tendência a planear com base em campanhas anteriores).
Isto era (talvez mais claramente perceptível uma vez feito) uma ideia totalmente absurda, mas foi a linha essencial do plano concebido pelo Secretariado da ONU e pelos Estados-membros mais preocupados com Timor. Tudo isto se passou no início da indústria hoje conhecida como post-conflict peacebuilding ou nation building ou fragile states - e algum tempo antes de light footprints, local capacity e national ownership se terem tornado na nova ortodoxia.
Os timorenses, claro, tinham uma ideia diferente. Não estavam particularmente inclinados em trocar uma forma de ocupação por outra (mesmo que mais benigna) autoridade externa. Os primeiros meses de Sérgio em Timor foram marcados pela sua crescente compreensão do desafio essencial que enfrentava: como começar e depois gerir o seu próprio regicídio. Os mecanismos iniciais de consulta aos timorenses foram ridicularizados, e com razão, por serem mais formais do que substantivos.
A resposta foi desenvolver um sistema de partilha de poder durante a administração transitória da ONU no qual a autoridade fosse progressivamente transferida para os timorenses.
A ideia era a de que, um minuto após a meia-noite do primeiro dia de independência, houvesse não uma transferência total de autoridade, mas a continuação da nova regra que se teria tornado realidade ao longo dos meses anteriores: um governo dos timorenses pelos timorenses.
O principal feito de Sérgio, para mim, foi acreditar neste novo entendimento, defendê-lo e pô-lo em prática com mais convicção do que qualquer outra pessoa. E daí o desenvolvimento de estruturas executivas que tinham em simultâneo funcionários da ONU e líderes timorenses, com estes últimos - algo revolucionário no labirinto burocrático da ONU, e que eu saiba único na História - a terem autoridade sobre funcionários internacionais da ONU. E daí, também, as discussões com a sede em Nova Iorque sobre se a nascente administração timorense podia cobrar impostos às empresas de construção e outros fornecedores da ONU e assim beneficiar de uma nova linha de receitas muito lucrativa.
Sérgio perdeu essa batalha mas a energia que dedicou à luta e a tensão que se gerou com Nova Iorque fez passar uma poderosa mensagem: os interesses de Sérgio e os interesses dos timorenses eram um e um só.
Sérgio compreendeu, mais cedo e melhor do que muitos outros, que o seu principal papel era agir no interesse dos timorenses. De certo modo, isto não deveria ser uma surpresa. Se a Resolução 1272 do Conselho de Segurança definia um governo para Timor, como poderia esse governo fazer qualquer outra coisa que não defender os interesses timorenses? Ou seja, legalmente, a UNTAET tinha de ser parcial e, coisa rara numa organização multilateral, defendia e representava, explicitamente, uma única parte.
Isto exigiu que Sérgio pusesse de lado o que, quase que por defeito, existe nos funcionários internacionais: a neutralidade (muitas vezes, e erradamente, vista como sinónimo de imparcialidade). Quando se aperceberam de que o Sérgio estava a interpretar a Resolução 1272 de forma bastante rigorosa, muitos ficaram chocados - talvez tanto quanto em relação à questão do Timor Gap [em que a ONU optou por não esperar pela independência para reclamar para Timor os direitos e receitas petrolíferas].
A invasão e ocupação americanas do Iraque foi um terrível golpe na ONU e na sua relevância. Sérgio, nessa altura em Genebra como Alto-Comissário para os Direitos Humanos, sentiu-o de forma particular. Ele manteve-se, até ao fim, um quase idealista naïve no modo como acreditava na importância vital de ser a ONU a gerir os problemas do Mundo (muitas vezes fiquei surpreendido pelo conflito que havia no Sérgio entre o arquipragmático e o utópico).
A sua morte foi em parte resultado de um ataque à ONU e à percepção de que apoiava os EUA e a ocupação do Iraque. Mas foi também um assassinato premeditado: Osama Bin Laden e a Al-Qaeda tinham já mencionado Sérgio no 11 de Setembro de 2001, acusando-o numa carta de Ano Novo de ter um papel no que eles viam como um desmembramento da Indonésia, país muçulmano. Sérgio pagou um preço por essa ignorância histórica e, como outros já disseram, há algo terrivelmente cruel no facto de ter morrido por uma organização que serviu com tanta paixão durante tanto tempo num acto que, pela sua própria natureza, atingiu a organização no seu centro mais profundo. No preciso momento em que a ONU precisava de um homem com os talentos do Sérgio, ele não estava lá para dar resposta. Mas se ele morreu por uma razão estúpida, penso que ele próprio aceitaria que, em parte, fosse por causa de Timor - cenário de uma missão da qual ele tinha um grande orgulho, durante a qual renasceu e onde descobriu um país pelo qual se apaixonou.
Assistente Especial de Sérgio Vieira de Mello nas missões da ONU em Timor (UNTAET) e no Iraque (UNAMI). Actual Conselheiro Político do Crisis Group em Bruxelas