Gabriela, sempre Gabriela...
No ano em que se comemora o centenário de Jorge Amado, a TV Globo volta a fazer uma adaptação do romance Gabriela, Cravo e Canela, que irá estrear-se na SIC no final de Setembro. Juliana Paes interpreta a personagem que em 1975 foi imortalizada por Sónia Braga. Estivemos um dia na rodagem, no Rio de Janeiro
Vamos rodar. Atenção, não pode haver falação porque está valendo o som do piano. Atenção! Gravando!", ouve-se a voz do realizador Mauro Mendonça Filho a ecoar num dos cenários da nova versão da telenovela Gabriela, uma sala de cinema construída no Projac, o centro de produção da Rede Globo no Rio de Janeiro. Na fila da frente da plateia, cheia de figurantes vestidos à anos 1920, a assistirem à versão muda do filme A Quimera do Ouro, de Charles Chaplin, está Gabriela (a actriz Juliana Paes) e Nacib Achcar Saad (o actor Humberto Martins), personagens do romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.
Quando no ecrã surge um comboio, Gabriela assusta-se e levanta-se da cadeira. Seu Nacib tem de ir atrás dela, acalmá-la.
"Não se encostem à parede castanha porque está [pintado de] fresco", avisam. Lá mais atrás, Mundinho entra no cinema e senta-se ao lado de Gerusa. "Risada, risada, risada. Quero mesmo ouvir gargalhadas", pede o realizador. "Em algum momento, você vai detalhar eu deitando o sapato fora? Ele não vai tentar botar o sapato para mim?", quer saber a actriz que interpreta o papel de Sónia Braga na versão de 1975. "A Sónia Braga é um mito e não poderíamos escalar uma pessoa que não fosse um mito sexual de hoje. Juliana Paes é um símbolo sexual. Até se poderia achar uma novidade que se tornasse um mito, mas a Juliana é muito sensual, é uma actriz com um público enorme e está se defendendo lindamente. Ela tinha a tarefa mais difícil: a de carregar esse mito", conta à Revista 2 Mauro Mendonça Filho, também realizador de um outro remake da TV Globo, O Astro, que passa actualmente na SIC.
Juliana Paes não era nascida na época em que Sónia Braga interpretou Gabriela, por isso o que conhece da novela desse tempo é através de pesquisas na Internet. "Talvez a minha Gabriela seja um pouco menos lânguida, um pouco mais espoleta, um pouco mais marota", diz à Revista 2 a actriz que teve de deixar crescer o cabelo com o encaracolado natural, fez extensões para que ficasse mais longo e durante a rodagem não arranja as unhas nem as sobrancelhas e tem de se bronzear. "São transformações que eu já sabia que ia ter de fazer. Isso é a parte mais fácil, essa entrega física", conta. Teve aulas para aprender o sotaque baiano, que "é muito desenhado, tem uma melodia diferente", também passou uns tempos no Sertão para sentir a paisagem, a temperatura, porque, afirma, "acima de tudo a Gabriela é uma retirante - uma pessoa que sai do Sertão, da seca, da caatinga, e vem tentar uma vida no litoral". Como essa passagem só existe num primeiro momento do livro, "as pessoas tendem a esquecer, mas está muito dentro do que eu quis propor como nova personagem". Gabriela "só é desse jeito porque viveu miséria, passou aperto. Por isso lida bem com essa coisa de não precisar de roupa, não querer dinheiro, nem casar, vive de bem com o que tem".
Jorge Amado "é um autor que todo o mundo gostaria de fazer e eu não sou diferente", diz a actriz, que está de volta ao trabalho, um ano depois de ter tido o primeiro filho. "A Gabriela é uma mulher que mistura simplicidade e sabedoria. É ingénua porque não conhece ainda os códigos éticos vigentes na época na cidade. Sem esses valores embutidos dentro dela, não entende por que não pode tirar o sapato, por que é que mulher tem de usar chapéu... Mas tem a sabedoria de uma mulher livre. Então essa dualidade instiga muito o actor a querer fazer. É um personagem maravilhoso e desafiador, por ser Jorge Amado e por ser uma mulher com muitas nuances."
Por se tratar de um remake, o desafio ainda é maior. "Já existe uma ideia do que foi feito, gostou-se muito do que foi feito e há uma ideia do que é certo e do que é errado. Não é certo se for igual e é errado se ficar diferente. Eu estou me propondo a fazer coisas que são iguais sim, mas outras não."
A composição das personagens nesta nova versão de Gabriela, com adaptação do argumentista Walcyr Carrasco (autor, entre outras, de Chica da Silva e Alma Gémea), foi feita a partir do romance. "Nacib é menos árabe [do que na versão anterior], Jorge Amado no livro diz que ele é um "brasileiro das arábias". Ele é bem mais baiano, foi uma opção. Tem que se ir na génese, que é o livro, na criação do autor", diz Mauro Mendonça Filho, para quem tanto faz que esta novela esteja ou não parecida com a versão dos anos 1970. O importante é que nela esteja a essência das personagens de Amado com a contribuição dos actores.
Com a leitura do livro, Humberto Martins, o actor que interpreta Nacib, o árabe dono do bar Vesúvio, percebeu que a personagem tinha chegado do Líbano ao Brasil com quatro anos de idade. O principal cuidado que teve na caracterização dele foi justamente com o sotaque. Procurou trabalhar e deixar o tom grave porque "ele é um pretenso dono de roça de cacau - é o que ele quer ser, está no livro, ele quer dinheiro para comprar uma roça e consegue." Como é referido no romance como sendo um grande bonachão, optou pela composição de "um cara" mais lento. "Indo na região consegui entender que o sol quente, o barulho do vento nos coqueirais que soa no ouvido, a comida preparada com azeite de dendé - que deixa uma digestão mais difícil e dá uma certa moleza o dia inteiro - essas características reais que também estão no livro, eu inseri para fazer esse Nacib", conta.
O actor assistiu à primeira versão da TV Globo, mas ficou-lhe pouca coisa, tinha 15 anos. "É com muita honra que abraço esse papel que foi feito pelo Armando Bógus, que foi um grande amigo meu, fizemos juntos Pedra sobre Pedra, a última novela que ele fez antes de morrer. Queria colocar algo dele no personagem, como homenagem, e consegui. Achei alguns trejeitos dele - como a mão para trás e uns pulinhos que ele dava - para homenageá-lo. Gostaria de fazer idêntico mas não cabia no ritmo da obra nem à superprodução que hoje se criou", confessa Humberto Martins.
Também "António Fagundes trouxe um coronel Ramiro diferente, Mateus Solano está fazendo um Mundinho Falcão diferente do de José Wilker, que agora é o Coronel Jesuíno Mendonça. Vai-se deixando as diferenças surgirem, mas se as semelhanças vierem não tem problema...", explica o realizador Mauro Mendonça Filho, poucos dias antes da filmagem de uma das cenas mais icónicas da novela protagonizada por Sónia Braga: a subida de Gabriela a um telhado para ir soltar um papagaio de papel.
"É incrível como essa cena da subida ao telhado de Gabriela está na cabeça das pessoas. Vamos fazer uma homenagem. Os ícones não se mudam: transformam-se com o tempo, agrega-se um pouco mais de tecnologia. Faz-se praticamente como se fosse igual. Você não muda o paletó de James Bond nem a música dele. Você muda o actor, e a tecnologia para fazer o filme é mais avançada, mas a pistolinha 22 é a mesma. O charme de James Bond e o smoking é o mesmo", explica o realizador, que tinha dez anos quando a outra Gabriela passou na televisão pela primeira vez. "Eu lembro que quando garoto via escondido por causa das cenas de sexo e das coisas políticas. As cenas que mais me marcaram eram românticas. Tinha uma coisa incrível do Walter Avancini [realizador da adaptação de 1975]: a câmara não mexia até ao capítulo 30. Era câmara fixa, só se mexia quando Mundinho Falcão chegava e aí a cidade se mexia junto. Era legal, difícil." Aproveitaram essa ideia neste remake? "Não, mas na primeira cena de amor de Gabriela e Nacib, eles se deitam e a câmara não se mexe, eles estão se deitando entrando e saindo do quadro. Fi-lo em homenagem ao Avancini, talvez o melhor director de televisão da história. Obviamente que temos de dialogar com o público jovem que lida com a velocidade e não dá para ficar preso ao passado. Tenta-se homenagear, aqui e ali, mas tentando ter uma visão actual."
Mário Monteiro, que fez toda a cenografia da outra versão, é também o cenógrafo desta. Agora teve a oportunidade de fazer "direito", porque nos anos 1970 não tinha recursos financeiros nem a tecnologia. "Ilhéus era uma cidade com 30 mil habitantes com uma pujança forte naquela época. A gente está investindo um pouco mais, arquitectonicamente é bem mais próximo do que era na primeira versão de Gabriela", explica o realizador. "Temos uma praia aqui, no Projac. Se você for na cidade cenográfica, vai ver que tem uma rua com um grande paredão com chroma key", onde são rodadas as cenas das praias de Ilhéus.
Enquanto no estúdio Mauro Mendonça Filho grava a cena da ida de Nacib e Gabriela ao cinema, na cidade cenográfica, ali ao lado, no espaço ao ar livre do Projac, estão a ser filmadas duas das cenas de exteriores desta novela. Ali foi reconstituída a cidade de Ilhéus, dos anos 1920. Além da fonte onde Gabriela se banha, quando chega à cidade cheia de pó depois da travessia do Sertão, é lá que fica a fachada do cinema da cidade. Também ali são reconstituídas a igreja, a prefeitura, as casas dos coronéis, do dentista de Sinhazinha e de Mundinho Falcão e o bar Vesúvio de Nacib, o "moço bonito" que contrata Gabriela para cozinhar.
Quase todos os cenários são de fachada, os interiores são reconstituídos nos estúdios, às vezes montados à noite, de um dia para o outro. Na cidade cenográfica fica também o Bataclã, o bordel de Maria Machadão, e é lá que estão a filmar uma das cenas. Às críticas que alguns têm feito à recriação do Bataclã na novela, Mauro responde que o Moulin Rouge do filme premiado nos Óscares também "não era daquele jeito". Como é que era um bordel de 1920? "Há poucos registos históricos, não quis investir no realismo, fizemos uma coisa bem mais lúdica. Quisemos imaginar o que seria um bordel no Sul da Bahia em 1925. Quem sabe qual é a realidade disso? Nós investimos na fantasia. Trouxemos uma cantora, Ivete Sangalo, para interpretar a dona do bordel e ser uma grande farra."
Esta adaptação para a televisão brasileira é a terceira. A primeira foi feita pela TV Tupi, no início dos anos 1960, e a que ficou na memória foi a da TV Globo de 1975. Jorge Amado, que não costumava ver nem dizer em público o que pensava das adaptações dos seus livros, declarou várias vezes que Sónia Braga recriara a personagem de uma forma perfeita.
A jornalista brasileira Josélia Aguiar está a escrever a biografia de Jorge Amado que sairá no Brasil até ao final do ano pelo selo Três Estrelas, do grupo Folha de S. Paulo. Quando assistiu aos primeiros episódios desta nova adaptação de Gabriela, ficou preocupada. "Nos primeiros capítulos exageraram nas cenas sensuais com a actriz principal, mostrando closes exagerados do seu corpo, me pareceu que havia pouca subtileza e muita gratuidade. Essa foi apenas a impressão dos primeiros capítulos. É interessante lembrar que, no romance, Gabriela é uma personagem que aparece lá pelo meio. Voltei a assistir nas últimas semanas e noto que a minissérie, ainda bem, manteve algo da complexidade da trama, com questões como patriarcalismo, hipocrisia, opressão", conta a biógrafa à Revista 2.
A actriz Juliana Paes lembra que a obra do escritor brasileiro é "permeada por pitadas de sensualidade" e como esta telenovela passa no Brasil às 23h, podem ser mais fiéis ao que ele escreveu. "Ao prestar homenagem ao livro é bom que não se mutile a obra escondendo partes da trama. As doses de pimenta, de sensualidade e de sexualidade presentes teriam de ser colocadas na novela de alguma maneira. Só enriquece a trama, deixa-a mais completa. Seria muito ruim não assistir a essa parte, era como se faltasse alguma coisa."
Mauro Mendonça Filho acrescenta que Jorge Amado sempre foi um autor adulto. "O Brasil vive uma hipocrisia sexual absurda, de falso liberado, todo o mundo anda com biquínis desse tamanhinho [e faz um gesto com as mãos] e é liberado mas vai-se ver de perto... O sexo faz parte da vida de qualquer cidadão. Por que é que a intimidade é tabu? Gabriela tem essa sexualidade, ela foi desflorada pelo tio no Sertão, não tem muito entendimento sobre o que é certo e o que é errado, o que é proibido e não proibido. Está a fim de transar e vai transar. Se se mostrar isso com muitos pudores vai ficar muito descaracterizado."
O realizador lembra que a versão de 1975 foi exibida em tempo de censura no Brasil e era muito fácil ligar os coronéis do livro e da novela aos militares no poder. O inimigo era fácil de identificar. Mauro diz que tentou fazer esta nova versão "em cima desses caudilhos que ainda tem na política brasileira. Estão no Congresso e são populares. A composição visual do coronel Ramiro Bastos interpretado pelo António Fagundes remete para alguns políticos que existem no Nordeste e que são grandes coronéis", explica. Nos nossos dias, no Brasil, "o uso da força é diferente, mas o clientelismo, o compadrio, a falta de plano político, os interesses pessoais são a realidade. Embora hoje não seja tão fácil identificar onde esse poder está, é mais diluído. Mas o poder corrompe e tentamos dizer que ainda se faz esse tipo de política no Brasil. É um pouco mais subtil, em 1975 era bem óbvio".
O romance Gabriela foi publicado no Brasil, em 1958, escrito já depois de Jorge Amado se ter afastado do Partido Comunista Brasileiro e ter regressado à Bahia. "É um livro em que introduz algo que se tornará cada vez mais presente em sua obra: o humor. Inaugura-se com Gabriela aquela que é, na minha opinião, sua fase esplendor como romancista, quando alcança a maturidade de vida e de literatura", diz Josélia Aguiar do romance que foi best-seller no Brasil, como até aí nunca outro livro havia conseguido ser, com centenas de milhares de livros vendidos, filas em várias capitais para sessões de autógrafos.
"O interessante é que Gabriela é também um marco na trajectória do autor nos EUA - pela primeira vez um brasileiro fica na lista dos mais vendidos do New York Times, por várias semanas, edição em hardcover e de bolso - e na União Soviética -, para horror dos camaradas, que viam no livro um desvio completo das directrizes do realismo soviético, mas não podiam fazer nada."
Também é por causa de Gabriela, diz Josélia Aguiar, "um livro que na aparência parece menos político", que Jorge Amado começa a ser publicado em Portugal. "Até então só existiam edições piratas, contrabandeadas, vendidas por baixo do pano, pois ele era proibido. Gabriela, que pode ser lido como um libelo pela liberdade, libertou seu autor."
Para João Ubaldo Ribeiro, não é possível entender o Brasil sem ler Jorge Amado, de quem foi muito amigo. Na última Festa Literária Internacional de Paraty, o autor de Viva o Povo Brasileiro participou numa sessão dedicada ao centenário do autor baiano ao lado do argumentista desta novela, Walcyr Carrasco. "Considero Jorge Amado um dos maiores escritores do século passado, no mundo, e é responsável pelo que eu chamo a descoberta do Brasil, o aflorar de uma maneira de narrar e de falar brasileira e de um conjunto de personagens brasileiros. Posso arriscar dizer que antes de Jorge Amado, o negro não existia como personagem protagonista na literatura brasileira."
Para Walcyr Carrasco, só se pode adaptar para a televisão um autor que se ama porque senão não se faz bem. Ao adaptar Gabriela para uma mininovela de 77 capítulos, teve de ver "como Jorge Amado vê o mundo, como ele expõe as relações entre personagens, e como discute as alterações de comportamento e de moral de uma época. A narrativa televisiva não é o tempo do romance. Algumas histórias são maiores. No primeiro capítulo do livro, Sinhazinha morre, na novela ela dura [no papel interpretado por Maitê Proença], porque eu vou contar essa relação inteira. De certa forma eu traio mas sou fiel à narrativa dele, factual, ponto por ponto". Apesar disso pegou, por exemplo, numa outra personagem de Jorge Amado do livro Jubiabá e trouxe para esta novela, porque quis mostrar um outro lado da prostituição. "A Doroteia não existe na Gabriela original, mas representa as mulheres moralistas que surgem ao longo de toda a literatura de Jorge Amado e assim por diante. Tentei trazer o universo dele para a televisão. Traio porque não sigo a ordem dos acontecimentos mas eles estão lá."
"Você acha que Jorge Amado aceitaria?", pergunta a João Ubaldo Ribeiro, o moderador da conversa, o escritor e jornalista da TV Globo Edney Silvestre. "Dificilmente ele falaria sobre o assunto, a não ser protocolarmente entrevistado pela Globo ou qualquer coisa assim. E em privado talvez ele fizesse alguma consideração. Mas ele sempre me deu este conselho: "Não se meta com esse povo de televisão." Por mais que se diga que é a mesma história, não é. São duas linguagens e universos diferentes. Filme é filme. Livro é livro."