De Zagreb ao interior, a Croácia tem alma líquida... e adrenalina

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Pontes suspensas, quedas de água, caminhadas, mergulhos furtivos e espeleologia - a Croácia ainda semi-desconhecida STIPE SURAC/CROATIAN NATIONAL TOURISM

Há um lado da Croácia que poucos turistas vêem. Não fica na costa, é sobretudo rural e está povoado de rio e lagos, montanhas e lendas. Uma natureza pródiga e uma história antiga que se oferecem agora aos desportos de aventura. Com mais ou menos adrenalina, percorremos região de Lika-Karlovac, um dos segredos croatas.

Há 20 anos, Dubravko Halovanic estava aqui. Porém, noutra vida que daria lugar a uma nova - arrancada a ferro e fogo. Pelo meio terminou um país, com uma guerra civil que se tornou numa guerra pela independência, e começou outro - o hoje, aqui, é o novo país, a Croácia, a encontrar-se com o passado para olhar o futuro.

Dubravko Halovanic passou pela resistência croata que se tornou no exército croata, onde terminou como brigadeiro. Agora é guia turístico. Não largou a farda e é nela que nos recebe no Homeland War Museum, algo como o museu da guerra da pátria como por aqui é conhecida a guerra que levou ao surgimento da Croácia como país independente. Para nós foi a Guerra dos Balcãs, o fim da Jugoslávia, o princípio de uma miríade de países. "Ainda não está bem claro o que aconteceu", admite Dubravko Halovanic, "foi caótico".

Este museu não é paragem habitual nos roteiros croatas, reconhece Halovanic, que até foi o seu impulsionador. E se começamos por aqui é porque o nosso circuito croata nos levou por terras que procuram descobrir um novo caminho, ainda na ressaca da Jugoslávia e da guerra, à espera da União Europeia. E o turismo é um dos rumos mais óbvios nesta Croácia dita "continental", toda ela (ainda) personagem secundária para a costa e as ilhas, os verdadeiros postais do país e retiros afamados de férias desde os tempos do Império Romano.

Seguimos de Zagreb para Oeste e para Sul, rasámos a Eslovénia e a Bósnia-Herzegovina (na Croácia raramente estamos a mais de 50 quilómetros de uma fronteira), sem nunca ultrapassar os Alpes Dináricos, essa barreira natural para lá da qual é o Adriático que espelha o céu. Do lado de cá, é um território eminentemente rural dotado de uma natureza pródiga, que foi encruzilhada de impérios e de lendas e agora quer tornar-se também uma meca de desportos (mais ou menos) radicais. Assim, à sombra de um castelo e sob a vigilância de um acampamento otomano pratica-se arco e flecha; as bruxas fazem zip line; em quad bike exploram-se parques; entre moinhos antigos faz-se canoagem e passamos em rafting por gargantas escuras; e, lentamente, sub-repticiamente, crescem grutas e desdobram-se lagos que fingem as Caraíbas no Verão para gelarem no Inverno.

Alma mediterrânea

Primeiro viajamos para a capital. Aterramos num final de dia de início de Junho, a temperatura já é de Verão e Zagreb porta-se à altura. É a Croácia continental com mentalidade mediterrânea que descobrimos nas esplanadas da rua Bogoviceva e zonas pedonais em redor, onde está o nosso hotel, a cem metros da praça Ban Josip Jelacic, que é um ponto de charneira entre as duas metades da cidade e a plataforma ideal para explorá-las. Do lado de lá temos a "cidade alta" (Gornji Grad) a mais antiga, herança medieval; nós ficamos na "cidade baixa" (Donji Grad), raiz essencialmente oitocentista, marcada pelos traços arquitectónicos dos Habsburgos.

É o último dia de um festival anual de Verão que atrai as multidões com que nos deparamos. A debandada vem cedo mas não é o fim da noite: reencontramo-la na rua Tkalciceva, a zona antiga de fachadas multicolores onde bares e restaurantes transbordam para as esplanadas, com a música à solta e burburinho surpreendentemente controlado - pelo meio vêem-se galerias de arte, lojas trendy, smartshops e uma série de esculturas vai pontuando a rua, destacando-se a de Marija Juric Zagorka, escritora e a primeira jornalista croata, e a Mulher à Janela ou "Mulher da noite", como lhe chamam os locais, numa alusão ao início do século XX, quando esta rua era o red light district da cidade.

Fora desta longa artéria pedonal, Zagreb vê-se quase espectral, sob luzes amarelas, quando se atravessa o mercado Dolac para desembocar defronte da catedral, e volta a encher-se na Praça Ban Josip Jelacic onde o eléctrico ainda chega e parte cheio - aqui é a versão moderna, esguia no seu azul redondo, a cor de Zagreb; vemo-lo, volumoso, como reminiscência da antiga Jugoslávia, ao cruzar, por exemplo, a Avenida Vukovar.

O dia amanhece quente e Zagreb desperta tarde. É feriado, Corpo de Deus, e voltamos ao famoso Dolac para o ver vestido de bancas que fintam o sol com os tradicionais guarda-sóis vermelhos com listas brancas. Qualquer semelhança com a praça que vimos na noite anterior é pura coincidência: da apatia nocturna à vivacidade diurna vai um abismo que se mede no arco-íris que a cobre, de frutas, legumes, vegetais e artesanato (muitos brinquedos típicos de madeira), e no bulício que se escuta - tantas vezes o croata nos vai soar como o português.

Não temos muito tempo para conhecer Zagreb mas damos o nosso melhor para descobrir esta cidade que foi sempre um baluarte contra invasões, dos mongóis aos otomanos, ou não estivesse numa encruzilhada entre o oriente e o ocidente. Primeiro, foi fundado o bispado de Kaptol (século XI), enquanto na colina adjacente se desenvolveu Gradec (cidade livre no século XIII), numa competição que acabou no século XVII com a unificação de ambas. Já no século XIX, a cidade alargou-se, ficando dividida entre "cidade alta" e a "cidade baixa", que continua a expandir-se.

Nós estamos calcorrear a cidade alta, que foi medieval e de madeira e ganhou rosto de pedra e trajes barrocos entre os séculos XVII e XVIII muito por culpa de incêndios. Um deles deu origem a um dos pontos de peregrinação turística incontornáveis - e, neste caso, peregrinação pode ser literal: Kamenita Vrata, "porta de pedra", é local histórico e religioso. É a única porta medieval sobrevivente em Zagreb e é também testemunho de um "milagre" que a converteu num dos templos da cidade. No seu altar, por trás de grades de ferro, uma pintura da Virgem Maria com o Menino Jesus foi encontrada intacta quando tudo o resto foi reduzido a cinzas num incêndio no século XVIII; nas suas paredes, enegrecidas pelas velas que aí se acendem, sobressaem ex-votos de mármore que a foram preenchendo.

Passado o portão entramos em Gradec, o coração cívico da cidade. Mas não deixamos o coração religioso sem visitar a catedral de Zagreb, ponto cardeal omnipresente e neogótico, agora em processo de restauro. A missa de Corpo de Deus enche-a de fiéis - um fenómeno recente, diz a guia: "depois do socialismo e da guerra, o país voltou à religião". No horizonte ergue-se a "montanha dos ursos", Medvednica, que no Inverno se veste de pistas de esqui.

Entrando, então, em Gradec pelo Portão de Pedra subimos em direcção à imagem mais conhecida de Zagreb em ruas que ainda hoje são iluminadas por candeeiros a gás. Aqui os edifícios ganham majestade e sobriedade pastel, a azáfama comercial desaparece e, na Praça de S. Marcos, a igreja paroquial de S. Marcos, com o telhado como painel de azulejos, com o brasão de Zagreb e o do reino tríplice da Croácia, Eslavónia e Dalmácia, é talvez o monumento mais fotografado e símbolo maior de Zagreb - ao lado, o parlamento croata e o antigo palácio do vice-rei.

Alguns museus estão concentrados nesta zona, em antigos palácios, entre eles o Museu da Cidade, o de Arte Naïf, considerado o mais antigo do mundo (1952) e o das "Relações Partidas", que será certamente o mais original - "yo quiero ser tu mundo", lê-se numa das primeira "obras".

Um tiro de canhão pontual

A margem da cidade alta, autêntica varanda sobre a Zagreb pós-oitocentos, chega-nos com Tom, o tocador de guitarra que é uma instituição local, abrigado do sol num dos pontos mais turísticos da cidade, a Torre Lotršcak. Estar lá por volta do meio-dia pode equivaler a um grande sobressalto: o canhão no topo é pontual e diário; subir a torre equivale a ter uma das vistas mais deslumbrantes da cidade, mas percorrer a Strossmayer Promenade que passa abaixo também proporciona panorâmicas inesperadas. Durante o Verão é também um dos spots noctívagos mais concorridos já que é aqui que acontece o Strossmarte, um festival de Verão que dura cem dias. Mesmo aqui ao lado, uma das curiosidades de Zagreb: o funicular mais curto do mundo - uma elevação de 65 metros apenas, percorrida em 50 segundos, a ligar as duas partes da cidade.

Mas é a pé que voltamos à omnipresente Praça Ban Josip Jelacic. Entre esta e a estação ferroviária, na cidade baixa (Donji Grad), uma sucessão de jardins e parques forma uma "ferradura" (Lenucijeva Potkova) que é um bom pretexto para conhecer esta zona feita de boulevards, a respirar 1800s e a recordar o império dos Habsburgos. Ao longo dela, museus e galerias de arte em edifícios na mesma traça de Viena - destaque para o Teatro Nacional, neo-barroco no seu amarelo-torrado, paradigma da arquitectura do império austro-húngaro, inaugurado pelo imperador Francisco José.

No lago como nas Caraíbas

Vemos esta parte já sobre rodas, a caminho do resto da Croácia, este país de 4,5 milhões de habitantes ("e outros tantos fora") em 46 mil quilómetros quadrados distribuídos por uma "forma bizarra" - "croissant" ou "dragão" são comparações comuns entre os croatas. O resto da Croácia na parte "do continente", o que equivale a dizer, que tem clima continental (verões de 35 graus e invernos que podem ir muitoabaixo de zero). Não vamos chegar à costa, "a zona mais bonita" (são os croatas que o dizem), que inclui 1245 ilhas ao largo e que fica depois dos Alpes Dináricos, a barreira natural que se estende da Itália até à Albânia e separa a Croácia continental e a litoral, que é climática mas é também cultural.

Na autoestrada para as praias da Dalmácia e da Ístria fazemos o que os visitantes normalmente não fazem: trocamos o mar e a areia pelos rios e verde da região de Lika-Karlovac. Isto significa atravessarmos aldeias, vilas e uma ou outra (pequena) cidade, em território eminentemente rural, marcado por natureza pujante - em muitas florestas ainda vivem ursos e a água é omnipresente, em cursos tranquilos ou (quase) indomáveis, tanto que por vezes pensamos que a Croácia continental tem uma alma líquida.

E pensamo-lo antes de chegarmos aos lagos Plitvicka. Afinal, já levamos muita Croácia nos olhos (e nas pernas, nos braços, mas a isso já iremos) quando aí chegamos - sem surpreendentemente termos andado muito longe de Zagreb: isto é o mais distante e esta é uma excursão de um dia sugerida em todos os guias da capital.

O nome oficial é Parque Nacional dos Lagos Plitvice primeiro, "a" maravilha natural croata, num país conhecido pelos seus parques nacionais (oito). Este é-o desde 1949 e Património Natural da Humanidade desde 1979. Estamos na Croácia, num vale entre montanhas, como poderíamos estar nas Caraíbas quando os nossos olhos mergulham nas várias declinações de azuis-turquesa e verdes-água dos 16 lagos do parque, que se dispõem em degraus unidos por um infindável número de quedas de água, cascatas e rápidos, entre floresta e vegetação tão densa quanto luxuriante, onde brotam nascentes e correm incontáveis ribeiros. Porém, só mesmo os olhos mergulham, uma vez que não é permitido tomar banho. Claro que há "sempre alguém que cai, sobretudo em dias de maior calor...", ironiza a guia, Helena Petrovic, há 33 anos ao serviço do parque.

Não podemos dizer que isso não nos tenha passado pela cabeça e essa é a maior tortura deste parque - não se poder desfrutá-lo mais do que a um museu. É probido apanhar flores, nadar, sair à noite (há três hotéis no parque, nós ficamos num deles), por exemplo, tudo para "proteger o ciclo da natureza", " para que possa sobreviver por si própria". O ecossistema mais delicado é o dos lagos, e como um laboratório bioquímico natural, com as condições ecológicas e hídricas ideais para que criar a travertina, uma pedra suave, porosa. É essa pedra que compõe o rendilhado de barreiras que constituem a tapeçaria destes lagos, em permanente mutação - aqui acelerada, que é o que torna os Lagos Plitvicka únicos. Por tudo isto, há guardas-florestais que patrulham toda a área; mas por tudo o que isto desenha vão-se escutando histórias de quem dribla a segurança e arrisca caminhadas na escuridão para nadar nos lagos.

Chegamos ao início da tarde e antes dos lagos somos recebidos por uma atmosfera que lembra um mundo perdido, no hotel que foi uma antiga estação termal nos tempos da Jugoslávia. A entrada principal é a número um, vista quase directa para os 70 metros de altura da maior queda de água da Croácia, onde amanhã encontraremos um batalhão de estrangeiros equipados para caminhadas. Agora, estamos na entrada dois, junto dos hotéis, e esperamos o autocarro que nos vai levar à nossa casa de partida - há autocarros eléctricos e um ferry num dos lagos para complementar as caminhadas; e quem gosta mesmo pouco de andar a pé tem um comboio panorâmico. Um grupo de chineses assalta o painel informativo, o carro dos gelados (sladolad) não tem mãos a medir. Nós subimos o autocarro-lagarta, herança de outros tempos, que trepa com dificuldade por entre curvas e contracurvas até nos deixar no nosso caminho - o trilho E, versão alargada (são dez as opções).

A partir daí somos nós, a natureza e os outros visitantes, enquanto vamos usando passadiços, cruzando longas pontes rentes à água e percorrendo caminhos de terra, sempre com água a acompanhar-nos (não só os lagos, que ocasionalmente perdemos de vista, mas os riachos que surgem pela floresta como veias palpitantes e indisciplinadas). Há água que não se cala, pássaros em cantoria desenfreada e num canavial escutamos a música insistente dos sapos. Entretanto, avançamos entre fetos enormes, musgos espessos, nenúfares desmesurados e em prados de flores amarelas e lilases as borboletas não param de exibir-se. Ocasionalmente há bancos e ocasionalmente há quem saia dos trilhos; transitamos da tranquilidade de grandes lagos para o nervosismo de quedas de água constantes; passamos do calor ao fresco como quem vai do oito ao 80 - e só com esforço podemos imaginar tudo isto gelado e silencioso, como o Inverno é descrito por Helena.

Vamos pelo "trilho ideal", diz Helena, para quem quer estar perto dos lagos, porque o Parque Nacional dos Lagos Plitvicka é muito mais do que eles que na verdade correspondem a menos de três por cento dos seus 300 km2. Sobe dos 380 aos 1280 metros, passa por aldeias, prados, florestas - incluindo uma virgem - proporcionando um caleidoscópio de experiências que pode incluir encontros mais ou menos imediatos com alguma da fauna que povoa o local, como lobos, ursos, linces. Os responsáveis querem desviar grande parte do milhão de visitantes anuais da zona dos lagos acenando com actividades fora da sua órbita como o ciclismo, o remo ou o esqui, para lá das caminhadas.

Natureza líquida

Nós, que não perdemos os lagos de vista, deixamos o parque seguindo o curso do rio que os alimenta (e onde eles acabam por despenhar-se), o Korana. Vamos na direcção da sua nascente até à cidade de Slunj. Chegamos numa tarde em que se ultimam os preparativos para um festival de reggae e ska a acontecer nessa noite: há bancas montadas vendendo carne assada na brasa, artesanato, CD, passam bicicletas de montanha e, à beira-rio, tendas cobrem o relvado. Mas é a à entrada da cidade, em Rastoke, que nos detemos num cenário bucólico que nos transporta a outros tempos, alimentados pela força dos dois rios que se cruzam aqui, o Korana e o Slunjcica (que nasce a oito quilómetros).

Por esta altura já não nos surpreendemos: este cruzamento é tudo menos vulgar e faz-se entre uma série de de quedas de água e cascatas, ao pé de nós ou no fundo de abismos dos quais temos vista privilegiada - eis o "pequeno Plitvicka", com a vantagem de se poder mergulhar literalmente. Se fôssemos viciados em adrenalina podíamos, aliás, juntar-nos aos grupos que fazem rafting, saltando por vezes alturas extremas ou baixando rápidos sucessivos passando rente ao moinhos de pedra - porém, essa é matéria que deve ser deixada para profissionais (anualmente realiza-se aqui a prova europeia Rast Raft). Nós contentamo-nos em deambular por Rastoke, observando o turbilhão de águas, verdes e azuis, que parecem vir de todo o lado e que alimentaram a criação deste pequeno povoado que agora é só para turista ver, à laia de parque de lazer temático: Rastoke era uma aldeia de moinhos de água e o que vemos é isso mesmo, como se estivéssemos no século XVIII, num cenário verde ao extremo, que recuperou sem mácula aparente das feridas da Guerra da Independência da Croácia, quando foi destruída pelos sérvios. Entre os espaços museológicos há restaurante, café e grandes espaços relvados com recantos tranquilos.

Contudo o cenário muda: é o rio Gacka que se nos apresenta pela frente langoroso, cortando caminho entre campos verdes pintalgados de amarelo e cravados de moinhos - ao longe, montanhas, mais perto, o campanário de uma igreja cujos sinos ribombam. As nossas canoas já estão no rio e o passeio faz-se sem sobressaltos nestas água gentis com uma tranquilidade que permite pousar os remos e tirar fotos.

Algo que nas água do rio Mrežnica só podemos fazer em momentos de paragem. Afinal, aqui há momentos de revoltas aquáticas que enfrentamos em rafts amarelas e equipados com fatos isotérmicos - parecem-nos desnecessários sob o sol forte, vão-nos parecer pouco dentro de água. Sim, é verdade que viramos numa das cascatas, mas noutras ocasiões os mergulhos são mesmo obrigatórios para vencer os desníveis do percurso. Mas entre a adrenalina de uns troços vive-se a calmaria de outros que permite até ir às margens colher flores ou perscrutar as fragas onde, entre vegetação, se ocultam pequenas grutas que foram refúgio em tempos de guerra. Quando atracamos é numa ilhota ligada à margem por pequenas pontes e quando pensamos que tinha terminada a experiência temos um almoço pantagruélico à espera, à boa maneira croata. O assador está a trabalhar horas extraordinárias e entre as iguarias na brasa, ainda temos espaço para provar o prato mais famoso de Lika: batatas assadas com cordeiro cozinhdos sob as cinzas numa panela de ferro.

Mundos subterrâneos

Florestas densas, rios e lagos, montanhas, grutas e castelos - toda a região parece um cenário de conto de fadas, mas apenas Ogulin fez disso o seu cartaz. A pequena vila na encruzilhada de três parques nacionais assume-se como a "pátria dos contos de fadas": uma vez ao ano, um festival recorda-o; durante o resto do tempo a rota com esse nome faz com que esse legado, que nasceu da combinação das lendas da região com a obra de Ivana Brlic-Mažuranic, conhecida escritora de livros infantis ("o Tolkien croata") que aqui nasceu e aqui bebeu a inspiração, não seja esquecido. Chegamos cedo, apanhamos os ensaios de uma das peças de teatro, o palco ao lado do castelo cheio de árvores a fingir e personagens de outros séculos; já a rota, que cruza tradições e recantos mais belos da região com os contos de Ivana, fazemo-la sem disciplina.

No centro da cidade, vemos passar uma estranha viatura, como uma carruagem de comboio antiga movida a pedais: duas filas paralelas de gente a pedalar no que é "o turismo activo para a gente daqui", brinca Ankica Puskaric, directora do turismo local; e na ponte principal, sobre o "abismo de Dula", paredes rochosas por onde o rio Dobra desaparece para surgir muitos quilómetros adiante, faz-se rappel e zip line com máscaras de bruxas. Afinal, as bruxas são um dos elementos mais destacados do folclore local: diz-se que em noites de tempestade elas se reúnem no Klek, montanha de 1182 metros com forma de gigante deitado que foi o berço do montanhismo croata e é parque botânico, em barulhentos encontros com duendes e fadas à mistura. Porém as histórias contadas aqui de geração em geração metem também dragões e muitas divindades aquáticas, ou não estivessem a vila e arredores povoados de lagos (até um artificial, onde a canoagem tem pista olímpica e se nada do fim de Junho a meados de Agosto), lagoas e rios. Há uma certa ironia quando passamos a fonte Cesarovac, no Parque Rei Tosmilav, cujas águas são, dizem as lendas, fonte de juventude eterna para as mulheres - e vemos uma série de velhotas sentadas nos bancos. Mas o que importa é o lema: "viver como num conto de fadas".

Em terra "encantada" há mundos subterrâneos e a região de Lika-Karlovac é um paraíso para espeleólogos. Nas redondezas do Lago Plitvicka estão as grutas de Baraceva, que foram o berço do turismo espeleológico croata, em 1892. Uma está aberta ao público e nós, de capacete na cabeça, transitamos entre estalactites e estalagmites enormes (por vezes unidas em colunas) que preenchem as salas que se sucedem. No Parque de Grutas de Grabovac (um quarto dos sítios espelológicos protegidos da Croácia), a experiência que temos na gruta Samograd é distinta: esta é grandiosa, uma catedral de várias naves e ornamentos tão caprichosos que parece que somos seguidos por figuras do Velho Testamento, entre espirais e colunas - há água a correr em troços e a acústica é tão boa que se realizam aqui concertos.

Da guerra ao futuro

Não assistimos a qualquer concerto e até acabamos por não ir ao festival de Rastoke, mas temos a nossa dose de música. Uma parte em versão discoteca de província, que é igual a tantas outras discotecas de província em febre de sábado à noite, discos pedidos incluídos, mas aqui com insistência no género turbofolk; a outra parte em versão festa-de-empresa-em-hotel, em Slunj, para onde somos convidados depois de conhecermos o chefe, Tihomir Morvej, nome húngaro e desprezo pela música bósnia. "É só "ohohohohoh"", imita enquanto se ouve uma sevdalinke, onde pressentimos o espírito do fado. Apressa-se porém a sublinhar nada ter contra bósnios ou muçulmanos. "Sempre tive amigos muçulmanos", diz, "e num fim-de-semana estávamos todos a tomar copos e no outro eles foram combater do outro lado". Combateu cinco anos na guerra.

Não é assunto fácil com estranhos, mas tão pouco é tabu, a guerra dos anos 1990. Aliás, ela ainda se pressente um pouco por todo lado, nas fachadas com marcas de estilhaços, nas casas e edifícios destruídos, nas campas, tantas vezes solitárias, à beira das estradas. Na verdade, este território que percorremos foi durante séculos parte da Fronteira Militar da Croácia, uma espécie de zona tampão onde o império austríaco combatia os avanços do império otomano. Um bom exemplo é a cidade de Karlovac, que "sempre foi uma área militar" e é "uma das poucas cidades no mundo que sabe exactamente quando [13 de Julho de 1579] e porque foi fundada", há-de dizer-nos Dubravko Halovanic - ele próprio seguiu o "negócio" da cidade e foi soldado profissional até 1986.

Foi nesse dia do século XVI que começou a construção da fortaleza, cuja herança mais perene é a forma da estrela que continua a moldar a cidade. Tentamos descortiná-la desde o Castelo Dubovac, num colina próxima, onde muitas batalhas se travaram entre os croatas e os exércitos otomanos. Hoje em dia, o castelo é palco de reconstituições históricas graças ao voluntarismo de uma associação cultural da cidade e por isso podemos ser surpreendidos com combates de espada entre os soldados rivais. No castelo, sentamo-nos em mesas rústicas para comer um goulash e tomar hypocras, vinho de receita medieval e sabor entranhado a especiarias; nas tendas, cruzamos as pernas para um chá acompanhado de turkish delights e shisha. Entre um e outra, um alvo espera que pratiquemos as artes da guerra armados de arco e flechas.

A cidade dos quatro rios (Kupa, Korana, Mrežnica e Dobra) continua a exibir a malha urbana renascentista, pese embora a destruição do século XX, que veio em três vagas: as I e II guerras mundiais e, sobretudo, a "Guerra da Pátria", esta última ainda bastante visível nos edifícios da cidade, alguns ainda esventrados, muitos mais de fachadas perfuradas. Não chegou, no entanto, a ser tomada, graças em parte aos esforços de contenção dos militares em Turanj, no local que hoje é museu da guerra mas sempre foi quartel-militar- e entre 1991 e 1995 estava a 600 metros da linha da frente.

Tal como Turanj, também Karlovac tenta ultrapassar a última das suas investidas militares, da qual ainda não recuperou totalmente, nem a nível demográfico nem de emprego - neste caso, uma pequena ironia: depois de muitos anos com a cerveja como principal indústria (aqui se produz a "Karlovacko") agora ?? a das armas (HS Produkt) o maior empregador. "É uma região a reinventar-se, a esquecer o passado e a recomeçar do zero", afirma Damjan Beusan, o nosso guia. "Por isso o turismo é muito importante." Por enquanto a aposta é no turismo activo, em breve querem afirmar-se no turismo cultural e de arquitectura. Não são, na verdade, partes que se excluem mutuamente e nós somos prova disso - por terras de Karlovac e Lika puxamos pela adrenalina sem nunca perder de vista a história destas paragens. É a Croácia ao encontro do futuro.

A Fugas viajou a convite do Turismo da Croácia

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