Um pouco mais de rigor, sff
A experiência universal todos os dias nos confirma a velha parêmia de que a pressa é inimiga da perfeição. Pudera eu acrescentar que é mãe do tumulto, da incongruência, da irreflexão e do êrro.
Rui Barbosa, Obras Completas, volume XXIX, tomo II, 1902, p. 71
1. No blogue Causa Nossa, em rubrica a que poderíamos chamar Um pouco mais/menos de..., sff, Vital Moreira debruça-se, numa óptica crítica, sobre notícias de órgãos de comunicação social e aspectos da vida pública, tendo em conta determinados parâmetros: decoro, consistência, seriedade, verdade, cuidado, decência, coerência, pudor, objectividade, rigor, etc. No Causa Nossa, em 21/7/2008 e a propósito de notícia sobre a "promulgação" do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) pelo Presidente da República, Vital Moreira esclarecia que "os tratados internacionais são ratificados pelo PR (e não "promulgados") depois de aprovados pela AR (e não "ratificados")". Rematava Vital Moreira: "Custará assim tanto aos media ter um consultor ou revisor jurídico, para não incorrerem em tantos erros?" Pergunta pertinente. Mas já lá vamos.
2. Há cerca de quatro anos, segundo a Lusa, Carlos Reis invocou os nomes de Vital Moreira e Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo que estes eram "a favor das alterações ortográficas". Não sei se Carlos Reis terá lido o excelente artigo de José de Faria Costa e Francisco Ferreira de Almeida, professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (UC), no Diário de Notícias de 13/2/2012. Se não leu, aconselho vivamente a leitura, pois é um texto que merece toda a atenção.
Afirmam José de Faria Costa e Francisco Ferreira de Almeida que a alteração parcial da redacção do AO90, através do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, fez "letra morta" do n.º 4 do art. 24.º da Convenção de Viena sobre os Tratados, de 23/5/1969, "que considera obrigatórias, desde a adopção do texto, as cláusulas relativas às modalidades da entrada em vigor" e, bem mais grave, que tal alteração "consubstanciou justamente um acto (concertado!) que malogrou, sem apelo nem agravo, o objecto e a finalidade do tratado". Vale a pena ler a robusta e consistente argumentação jurídica e ter bem presente o cristalino "em vigor, mas como?" dos Autores.
Enquanto, neste preciso momento e depois de ter lido o parágrafo anterior, um decisor político se prepara para estudar cuidadosamente o parecer de Faria Costa e Ferreira de Almeida, vejamos aquilo que actualmente consta da legislação portuguesa em matéria de entrada em vigor do AO90 e que, aviso de antemão, desrespeita a doutrina acima mencionada, ou seja, a legislação poderá correr o risco de se tornar obsoleta a breve trecho: no Aviso n.º 255/2010 do Ministério dos Negócios Estrangeiros (DR, 17/9/2010) e na Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 (DR, 25/1/2011), lê-se que o AO90 entrou em vigor em Portugal em 13 de Maio de 2009.
Em 9/2/2012, na qualidade de deputado ao Parlamento Europeu e ao abrigo do Artigo 117.º do respectivo Regimento, Vital Moreira fez uma pergunta com pedido de resposta escrita à Comissão Europeia. Nessa pergunta (actualizada em 27/2/2012), segundo o deputado ao Parlamento Europeu (e professor associado da Faculdade de Direito da UC), o AO90 entrou em vigor em "janeiro [sic] de 2009". À pergunta de Faria Costa e Ferreira de Almeida "em vigor, mas como?", acrescento outra: em Janeiro, porquê, professor Vital Moreira?
3. Em vídeo da UCV (televisão web da UC), de 4/1/2011, Ana Teresa Peixinho, professora da Faculdade de Letras da UC, declarou que as pessoas iriam "começar a ver a escrita de outra forma". Ao deparar-me, na página da Internet da Faculdade de Direito da UC, com o "contato [sic] oficial" de dois membros do corpo docente, comecei "a ver a escrita de outra forma", de uma forma que não é nem português europeu, nem criação AO90, mas português do Brasil.
Recomendo a Ana Teresa Peixinho que tenha este contato em mente, antes de repetir que "o período de seis anos de transição é um período extremamente longo, demasiadamente longo; isto poderia ter sido tudo feito de uma forma muito mais rápida, muito mais célere e muito mais prática". Imagine-se se tivesse sido. Metade do período de transição já lá vai e o caos anda por aí. Sim, por aí. A óptima notícia é esta: a suspensão do AO90 devolverá intactos os contactos perdidos.