Nada do que é humano era estranho a Carson McCullers
Reflexos num Olho Dourado, uma história perturbadora sobre homossexualidade reprimida, foi escandaloso na altura da publicação, no início dos anos 40, depois tornou-se objecto de culto e, finalmente, foi considerado uma obra-prima - que inclusivamente chegou ao cinema, pela mão de John Huston, com interpretações de Marlon Brando e Elizabeth Taylor. No quinto artigo desta série, lembramos a norte-americana Carson McCullers e as figuras que a ajudaram a chegar a uma literatura, onde, como na natureza, não existem aberrações
Reflexos num Olho Dourado é um livro que se lê de uma assentada. Começa: "Uma base militar em tempo de paz é um lugar entediante. Acontecem coisas, mas repetem-se vezes sem conta." Acaba: "Mesmo na morte, o corpo do soldado dava ainda a sensação de conforto morno, animal. O seu rosto sério permanecia inalterado e as mãos, bronzeadas pelo sol, jaziam, de palmas para cima, na alcatifa, como se estivesse a dormir." Entre o princípio e o fim, há um caminho para a escuridão, para o que está escondido dentro de cada um de nós. É um livro do qual apetece fazer segredo.
A norte-americana Carson McCullers (1917-1967) tinha escrito Reflexos num Olho Dourado de uma assentada - nuns meros dois meses, a duração de um fósforo, e com esse tipo de iluminação e intensidade frágil. Mas, entre o momento da escrita e o momento da edição, e depois da publicação, parecia ter passado uma vida e, aos 24 anos, Carson McCullers, a menina prodígio, nunca estava sozinha. Com essa idade, ela já tinha ido para Nova Iorque e já tinha voltado para casa, em Columbus, Georgia, Sul dos Estados Unidos, segregado e conservador. Já se tinha casado e separado. Tinha bebido e fumado, tinha perdido ainda mais a saúde debilitada desde a infância, tinha tido uma trombose. Tinha-se tornado um fenómeno com o sucesso de O Coração é um Caçador Solitário, o seu primeiro romance. E agora, uma desilusão com o segundo livro, que chocava leitores e até os críticos. Carson McCullers sentia-se cercada. Uma noite, receberam na casa de família um telefonema do Ku Klux Klan: "Sabíamos pelo primeiro livro que gosta de negros e sabemos por este que é lésbica. Não queremos pessoas que gostam de negros nem lésbicas nesta cidade." Depois de desligar o telefone, o pai de Carson McCullers, Lamar Smith, saiu para a rua com uma espingarda e passou a noite em vigília.
Dentro de casa, Carson McCullers não tinha medo. Tinha a escrita que, quando corria bem, lhe dava confiança e, de alguma maneira, não estava só. Algumas pessoas tinham ficado ligadas àquele livro e formavam uma espécie de escudo.
Reeves McCullers
Mais tarde, Reeves e Carson iriam lembrar-se do período passado em Fayetteville, na Carolina do Norte, como um dos mais felizes. Estavam casados há um ano. Reeves McCullers trabalhava numa agência da Retail Credit Corporation e o dinheiro que ganhava chegava para pagar as contas e para que Lula Carson Smith - o seu nome de baptismo - pudesse passar o tempo a escrever. Tinham combinado que seria assim durante aquele primeiro ano, depois trocariam: ela trabalharia, ele escreveria. À noite, liam e conversavam muito, entendiam-se.
Quando Carson Smith acabou de escrever o primeiro romance, adoptou o nome do marido para assinar O Caçador é um Coração Solitário. Mandou-o para o editor e antes ainda da sua publicação, em 1940, começou um conto com o título Army Post, inspirado numa história que Reeves lhe tinha contado de um soldado que tinha sido preso por voyeurismo na base militar de Fort Bragg, perto de Fayetteville.
Reeves tinha passado quatro anos numa outra base militar e conhecia bem aquele quotidiano. As recordações eram especialmente fortes para quem não tinha sido talhado para aquela vida, mas era Carson quem escrevia sobre personagens que pareciam não ter sido talhadas para aquela vida, talvez para nenhuma vida. Um dos protagonistas era o Capitão Penderton:
"Tinha um relacionamento algo curioso com os três fundamentos da existência: a própria vida, o sexo e a morte. Em termos sexuais, o capitão conseguia um equilíbrio delicado entre o elemento masculino e o elemento feminino, com as susceptibilidades de ambos os sexos e sem os poderes activos dos mesmos. (...) Dizia-se que tinha uma carreira brilhante à sua frente. Talvez ele não tivesse sentido essa falha básica se não fosse a mulher. Sofria imenso por causa dela, pois tinha a tendência infeliz de se apaixonar pelos amantes da esposa. (...)
No seu equilíbrio entre esses dois grandes instintos, a vida e a morte, a balança pendia demasiado para um dos lados: a morte. Por esse motivo, o capitão era um cobarde." (p. 15)
A história acabava mal para o Capitão Penderton.
McCullers guardou o manuscrito e levou-o na bagagem quando viajaram para Nova Iorque. Aqui, longe do Sul - aquele Sul imperdoável, onde ambos tinham nascido -, estava o futuro: brilhante, excitante, livre.
Reeves McCullers nunca chegou a publicar. Toda a gente se lembrava dele como um homem surpreendentemente bonito, inteligente, culto, agradável, daquele tipo de pessoas que não se esperava que acabasse só, a suicidar-se aos 40 anos num quarto de hotel em Paris.
George Davis
George Davis subiu a casa de Carson McCullers. Abriu as malas para as quais ela apontou, tirou pilhas de papéis e começou a ler. Encontrou uma história chamada Army Post. Havia um capitão e a sua mulher, o amante da mulher, a esposa deste à beira da histeria desde a morte de um bebé com deformações, e o seu empregado filipino que gostava de ballet, música clássica e pintura. Havia ainda um soldado que todas as noites observava a mulher do capitão e por quem o capitão se apaixonou. Contava-se ainda de um cavalo muito forte e belo, mas eventualmente domado, e de um pavão numa pintura:
"- Um pavão num tom verde pavoroso. Com um imenso olho dourado. E no olho vejo os reflexos de uma coisa pequenina e... Num esforço para encontrar a palavra certa, Anacleto estendeu a mão, com o polegar e o indicador unidos. (...)
- Pequenina e...
- Grotesca - concluiu ela." (p. 68).
No final, não podia deixar de ser, alguém morria. O texto era trágico, intenso, perturbador. Seria polémico e escandaloso, mas Davis - que tinha transformado a revista de moda Harper"s Bazaar numa das melhores publicações para literatura - tinha a reputação de ser um dos editores mais ousados de Nova Iorque. Davis gostava dessa reputação. Decidiu publicar o trabalho de McCullers em duas partes. Trabalharam juntos no manuscrito durante o Verão de 1940. Davis sugeriu mudar o título. Ficou Reflexos num Olho Dourado.
Quando saiu a primeira parte, em Outubro, já Carson McCullers tinha deixado Reeves e Manhattan, e vivia numa casa em Brooklyn, que Davis tinha alugado com o apoio de um mecenas. Davis e McCullers queriam fundar uma espécie de comuna criativa. Os primeiros a juntarem-se a eles foram os britânicos W. H. Auden e Benjamin Britten. Mais tarde, Gypsy Rose Lee, a artista do burlesco, e o casal de escritores Jane e Paul Bowles também viveram em Middagh Street. Chegavam então da Europa muitos refugiados e os intelectuais europeus passavam pela casa de Brooklyn Heights.
Annemarie Schwarzenbach
Como Carson McCullers, a suíça Annemarie Schwarzenbach era alta, arrapazada e vestia quase sempre calças e camisa. Mas Annemarie usava o cabelo muito curto e movia-se com uma elegância que talvez só se encontrasse em linhagens nobres europeias, era sofisticada e tinha um rosto, escreveu McCullers, que a iria perseguir para o resto da vida. Encontraram-se raras vezes, porque Schwarzenbach não quis alimentar a paixão de McCullers. A sua amizade desenvolveu-se por carta, quando Annemarie Schwarzenbach, depois de uma tentativa de suicídio e um período de hospitalização, regressou à Europa. De Lisboa, Schwarzenbach tomou o navio português Colonial para o Congo Belga e foi aí que recebeu uma encomenda. A dedicatória de Reflexos num Olho Dourado era para ela.
McCullers tinha conhecido Schwarzenbach através dos irmãos Mann, Klaus e Erika, filhos de Thomas Mann. Talvez Klaus Mann tivesse sido o único a escrever uma recensão a Reflexos num Olho Dourado de que McCullers tenha gostado.
Klaus Mann era um dos frequentadores da casa de Brooklyn, e escreveu sobre o livro na revista literária que tinha criado nos Estados Unidos, Decision. No mesmo número falava-se de Ida, de Gertrude Stein, e Klaus Mann imaginou um diálogo entre as duas escritoras: "Tu és uma poeta", diz Gertrude Stein a Carson McCullers. "Portanto, se te destruíres, destróis uma poeta. Se te destruíres, privas o século XX de um pouco de poesia."
Carson McCullers precisava de se destruir, assim como as suas personagens, para construir qualquer coisa. Era preciso ver o que era proibido, o que era até grotesco, e depois ser esse olho. McCullers esperava na sua escrita pequenas iluminações. Explicou num ensaio na revista Esquire que não bastava o trabalho. Reflexos num Olho Dourado - que John Huston iria adaptar ao cinema, em 1967, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor nos principais papéis - tinha sido o mais "iluminado" para ela, mas talvez o menos compreendido pelos leitores. As personagens não eram só estranhas - no início dos anos 40, pessoas com desejos considerados preversos eram "anormais." Mas, para McCullers, "nada do que era humano lhe era estranho", como tinha escrito o poeta Terêncio. Para a escritora, não existia natureza anormal. "Só a falta de vida é anormal", escreveu.