António Victorino d"Almeida e Moledo

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Manuel Roberto

Se há sítio em Portugal onde o maestro se sente em casa é em Moledo. Todas as suas férias foram e são aqui: da casa dos avós em Caminha à casa alugada na praia; das férias com o burro às férias com os cães. Com a música sempre a intrometer-se.

há um momento, saímos da igreja de Moledo, e parece que pára de chover. Falso alívio, porque a chuva cai, miúda, a molhar tolos. "Isto não é nada, é só para desfazer a nuvem", afirma António Victorino d"Almeida. "Vê?", aponta para o céu, "o sol está a espreitar. Não vai chover". A verdade é que batemos à porta do maestro com a chuva como companhia de quase uma hora de viagem. Estamos em Moledo que é, sempre foi, sinónimo de férias para ele. "As minhas férias foram sempre aqui", reflecte, "só em anos em que não houve férias é que não vim". Vem desde que nasceu, literalmente. Agora, com 72 anos, confessa, rindo, que ainda diz sempre: "Um dia hei-de vir para aqui".

Enquanto esse dia não chega, continua na casa onde o encontramos, na "parte da aldeia". Ele está à janela de onde já não vê o mar porque a torre do centro cultural lhe tira a vista - aluga há muitos anos o primeiro andar da vivenda branca, igual a tantas outras de tantas aldeias portuguesas. Sempre que pode entra por outros meses estivais, mas é Agosto o mês sagrado. Não que seja só lazer - também aí inspiração lhe chega (compôs, por exemplo, a banda sonora de Capitães de Abril); e organiza, com a Câmara Municipal de Caminha, ciclos de concertos pelas aldeias do concelho. Acontecem há nove anos, às segundas-feiras, embora este ano, a seu contra-gosto, sejam quase todos em Vila Praia de Âncora ("só há dinheiro para ter o piano aí") - "quase" porque conseguiu marcar um concerto numa aldeia. "Nestas aldeias quase não se acredita... Porque dez minutos antes não há uma única pessoa. E de repente, parece uma cena bíblica, começa a encher, a encher, a encher...".

Também já fez um concerto na igreja de Moledo, com Liszt, Chopin... Porém, se estamos aqui é por um hábito mais solitário, o de vir tocar órgão. Este ano ainda não veio, porque chegou apenas um dia antes, no meio do corrupio de concertos que este Verão o leva pelo país com quatro orquestras. Mas, entre idas e vindas, espera ainda vir tocar órgão, que está no coro desta igreja pequenina com retábulos dourados. "É bonita", considera, e o rosto ilumina-se-lhe com o bater das horas - e "tem sinos a sério".

Não caminhámos pelas ruelas estreitas de empedrado desirmanado até aqui, mas esse é o passeio a pé de Victorino d"Almeida. "Não diria diário, mas devia ser", diz, entre risos. Esta é a parte mais antiga de Moledo, mais rural - a "aldeia" em oposição à "praia". "Tenho mais ligação com esta parte do que propriamente com a praia. Eu não sou muito de ir à praia...". De fazer praia, porque ir até ao paredão, sempre a caminhar ("detesto automóveis"), também faz parte do seu dia-a-dia - que inclui a noite. "Hoje está bom", considera olhando a praia deserta, excepto por um grupo de jovens. "Eles sabem o que fazem. O mar não está frio. As pessoas é que se assustam com o cinzento" - a confirmação vem dos próprios, que se aproximam para dar os parabéns ao maestro.

Também a esplanada preferida do maestro (Bar Mergulho) se assustou, está fechada. Há outras ali no largo, abertas. "Pois, mas não vou às outras. Têm música. Eu tenho horror à musica à beira-mar. Não há música como a do mar." Ele ali está, no areal, o mar imenso por detrás, com o Forte da Ínsua a sobressair e o Monte de Santa Tecla escondido pelas nuvens.

Espanha a 40 metros

De Moledo a Esteiró são poucos minutos de carro. Esta praia fica na foz do rio Minho, uma língua de terra que abraça o rio e tem um restaurante "fantástico". "Antes vinha muito mais aqui", conta. "É uma paisagem de que gosto. De uma riqueza, de um colorido... E hoje até está cinzento...", reflecte enquanto o olhar se perde na baía plácida, onde descansam barcos, com a Galiza do outro lado e a marginal de Caminha deste.

Quando a língua de areia se acaba, o rio estreita e estamos a 40 metros de Espanha. Victorino d"Almeida recorda um episódio ali, quando tinha 18, 19 anos, e estava com amigos a fazer praia. Viram um golfinho e um dos rapazes lançou-se à água para tocar no animal, "enorme". Desistiu a três metros dele porque "ele não fugia, não se mexia, devia estar doente". "Nessa tarde", recorda, "deu à costa um tubarão! E ele queria fazer-lhe festinhas!".

Esteiró é quase uma península, com arvoredo intenso onde se esconde um parque de campismo e se desenha uma grande clareira com um campo de futebol agora murado e com bancada. "Isto não existia", surpreende-se. Também aqui as memórias brotam de um Verão que ficou famoso - e nem sequer pelo burro bebé que trouxe de Lisboa. Antes pelo grupo de amigos que veio de avioneta passar férias com ele. Aterraram aqui, "aí à décima tentativa".

O regresso a Lisboa foi com um burro já feito, três meses depois, porque eram assim as férias nesse tempo. Quando ainda ficava em Caminha, em casa dos avós paternos (começou a ficar em Moledo há 35 anos). Nenhum era de Caminha, mas o avô, funcionário das Finanças, foi para aqui destacado. Gostaram tanto que se foram deixando estar, mesmo depois da reforma, e o avô foi um grande impulsionador do teatro em Caminha. Fez muitas revistas (encenava, escrevia, coreografava, musicava) e Victorino d"Almeida agora faz parte de um movimento que luta pela reconstrução do teatro de Caminha. "Está fechado para obras, espero que reabra."

Mais tarde, não passamos pelo teatro, nem sequer pela casa (que era alugada) dos avós na nossa incursão por Caminha. Agora seguimos para Vilar de Mouros, incontornável nesta geografia. "É a única aldeia onde não fiz nenhum concerto de Verão." Tem uma relação dúplice com Vilar de Mouros. É a aldeia de toda a sua infância, uma das mais bonitas do país, e porque um médico local, "um sonhador", António Barge, "ainda antes do 25 de Abril", o convidou, juntamente com Natália Correia e David Mourão Ferreira, a organizar um festival de música internacional. Foi em 1971 e foi um "festival ecuménico": vieram a Orquestra Sinfónica, José Afonso, Amália Rodrigues, Elton John e Manfred Man. "Dez anos depois [1982]", prossegue, "quiseram fazer a mesma coisa mas isto foi tomado de assalto". O maestro ainda trouxe os U2 (e, hoje, num encontro improvável, Luís Alves, que veio para o encontro comemorativo dos 30 anos do início do festival, agradece-lhe esses nove dias) mas depois foi a "bandalheira completa". "Acabou o Festival de Vilar de Mouros. Ou melhor, começou uma coisa que abusivamente lhe utilizou o nome", considera. "O que não perdoei, nunca perdoo. Por isso tenho uma relação de amor-ódio com Vilar de Mouros." E há mais. "Um dia chego aqui para mostrar a aldeia e a aldeia que vou ver não existe." Tinham, explica, arrasado parte do casario.

Nessas ruas passeou muitas vezes com a família; lembra-se das filhas mais velhas, Maria e Inês, a andar de bicicleta por lá. Hoje, atravessamos a ponte românica e lá está, à direita, o campo de futebol, abandonado, onde se realizaram os primeiros festivais; do outro lado, o " baldio", que é o terreno onde se realizou os últimos anos do festival e "é o lugar de uma aldeia", assinala com tristeza. Percorremos o caminho ao longo rio Coura, tapado por vegetação e com mesas e bancos de pedra até ao Bar Azenhas. A azenha propriamente dita fica do outro lado do rio, arruinada na sua pedra escura ("o primeiro grande golpe em Vilar de Mouros foi terem-lhe tirado a roda e o telhado"); do lado de cá o maestro é visita assídua. Cumprimenta a matriarca, a "senhora Rosa" e pergunta pelas bifanas. Amélia, a filha, trá-la-à à esplanada (seguir-se-á outra: "são um vício, estas bifanas"), onde Victorino d"Almeida olha o rio, que aqui faz uma pequena queda de água, onde tantas vezes tomou banho. "Uma coisa muito bonita que eu também fazia antes aqui é subir e descer o rio de barco."

A Caminha, Victorino d"Almeida vai quase todos os dias, nem que seja para comprar A Bola. Fá-lo na tabacaria Atenas, que fica no "terreiro", como é conhecida a Praça Conselheiro Silva Torres, que é o centro social da vila, cheia de esplanadas e edifícios antigos. "Gosto imenso e a remodelação preservou-lhe o espírito." Aponta a Torre de Relógio que descobriram ser desprovida de alicerces e o seu sino, num campanário sui generis de ferro: "Durante muitos anos fui acordado por aquele sino. Mais tarde, ouvia o sino e sabia que eram horas de ir para casa." Às 23h, quando já tinha 13 e 14 anos e ia até à esplanada. A casa dos avós fica ali perto e nela rodou no Verão passado alguns interiores da longa-metragem, O Tempo e as Bruxas.

Depois da farmácia, paragem na pastelaria Riviera para levar uns croissants para casa, onde o espera Sybil, a mulher, e os seus cães, companhia de todas as férias. Antes de nos despedirmos de Caminha, passagem "obrigatória" pela Avenida Entre-Pontes, "muito bonita", à sombra de plátanos e ladeada de casas e do rio Coura, onde se erguem as duas pontes - a ferroviária é de Eiffel. Já estamos na marginal do rio Minho e a feira semanal está a ser desmontada; espreitam troços da muralha, aponta o maestro. À porta da sua casa percebemos que tinha razão: a chuva parou e até faz calor neste fim de dia. Por algum motivo diz que em Moledo se sente em casa (em Portugal, pelo menos, já que a sua cidade é e sempre será Viena).

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