Estratégia para contornar a crise, desejo de proximidade do público ou declaração de independência, há cada vez mais autores portugueses a recorrer a financiadores anónimos para produzir uma obra cultural, seja um livro, um filme ou um disco.
O “crowdfunding”, um modelo de angariação de verbas no qual pessoas anónimas doam dinheiro pela Internet para um determinado projecto, já existe há mais de um ano em Portugal, mas, nos últimos meses, têm surgido cada vez mais pedidos de apoio através desse método.
As razões para invocar esta opção são muito diferentes, mas surgem de uma necessidade de diversificação de fontes de financiamento quando os métodos habituais de apoio falharam ou não respondem da mesma forma, como contaram vários artistas à agência Lusa.
Os cortes nos apoios estatais à produção cultural ou as quebras de vendas registadas no mercado discográfico são sinais de mudanças que levaram os agentes do sector a procurar outras soluções. “Acho que o ‘crowdfunding’ é uma boa ideia. E as pessoas acabam por ficar mais próximas dos projectos que estão a apoiar, porque investiram neles e ajudaram a pôr cá fora”, disse à Lusa o ilustrador Rui Pedro Lourenço.
Apoiar e receber algo em troca
Mafalda Brito e Rui Pedro Lourenço, de Leiria, criaram a editora Livros Barca do Inferno e pretendem lançar um livro ilustrado, a adaptação da letra “O homem da gaita”, de Zeca Afonso. Para avançar com a edição do livro, marcada para Setembro, recorreram ao “crowdfunding”.
Precisam de 1200 euros e já conseguiram cerca de 500 euros. “Se não conseguirmos, teremos que nos desenvencilhar, porque o livro vai para a frente”, disse o ilustrador. Habitualmente, quem apresenta um projecto para “crodwfunding” oferece sempre algo em troca e, consoante a generosidade, pode ser considerado co-produtor ou receber um exemplar da obra apoiada.
O escritor Miguel-Manso e o irmão, o realizador João Manso, vão fazer um filme, intitulado “Bibliografia”, e precisam de 6.000 euros, para um projecto com um orçamento de 15.000 euros. “Queríamos fazer o filme agora, por isso nem tentámos o ICA”, explicou Miguel-Manso à Lusa, dias depois de ter lançado o apelo, tendo já reunido cerca de 1.900 euros.
Uma forma de independência
“Bibliografia” é um documentário-performance, no qual Miguel-Manso, o escritor Vasco Gato, o programador Natxo Checa e o músico Tiago Sousa irão construir uma jangada e navegar nos rios Zêzere e Tejo, desde Vila de Rei até Lisboa. Durante a viagem irão recuperar textos de literatura de viagem dos séculos XVI e XVII.
Conseguiram apoio da RTP2 e pedem agora ajuda pela Internet, embora Miguel-Manso não se sinta muito confortável nesse papel angariador: “É desconfortável, porque gosto de mostrar as coisas quando já está tudo feito”.
A rodagem arrancará em Setembro e, até lá, esperam angariar o dinheiro que precisam. Samuel Velho, músico de 28 anos, parte em desvantagem no “crowdfunding”, porque ninguém o conhece, mas o sentido de independência falou mais alto para editar o primeiro álbum, “Fractais”, ainda este ano. Está perto de conseguir os 2.000 euros que precisa para gravar o disco e quer provar que “é possível fazer música sem uma editora e, dessa forma, é possível controlar o processo”, disse à Lusa.
Para o músico, este sistema de financiamento é também uma forma de dizer às editoras que o consumidor quer estar mais próximo do artista que gosta. Em duas das plataformas de “crowdfunding” em Portugal, a PPL e a Massivemov, é possível ver os projectos que tiveram sucesso e os que fracassaram, por não atingir determinado montante.
O músico Mazgani, por exemplo, tinha um pedido de 5.000 euros para custear a edição do terceiro álbum. Conseguiu 5.031 euros e o disco deverá sairá no Outono. Ana Free, Sofia Ribeiro, Kumpania Algazarra, Capitão Capitão, Primitive Reason e o compositor Luís Tinoco foram outros músicos e grupos que conseguiram financiamento para edição discográfica a partir de contribuintes anónimos.
No cinema, além de “Bibliografia”, outros projectos apelam à participação colectiva, como os documentários “O sentido da vida”, de Miguel Gonçalves Mendes, e “Cantam as filhas da Rosa”, de Tiago Pereira.