"A voz áspera da ternura"

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Chavela Vargas foi redescoberta na década de 90 REUTERS/Marcos Brindicci

Chavela Vargas1919-2012 Morreu com "o México no coração". Voz maior da música mexicana, Chavela Vargas era amiga de Frida Khalo e "alma gémea" de Almodóvar. Despediu-se do mundo "tranquila" esta mulher que quebrou todos os tabus e falava com montanhas e poetas mortos

Chavela Vargas dissera, ainda não há muito tempo: "Não me preocupa a morte. Pode ser belíssima, por que não? Mas a questão é viver como eu vivi: 93 anos, aqui na terra." No domingo, a lendária cantora mexicana morreu, com esses mesmos 93 anos, pacificamente, num hospital de Cuernavaca, México.

Contou a sua amiga e biógrafa Maria Cortina, que a última frase que disse, pedindo às enfermeiras que lhe retirassem a máscara de oxigénio, foi: "Parto com o México no coração." Morreu assim a mulher que cantava - as palavras são do realizador espanhol Pedro Almodóvar - com "a voz áspera da ternura".

E, no entanto, não foi no México que nasceu, em Abril de 1919 com o nome de Isabel Vargas Lizano, e sim na Costa Rica. Mas ainda adolescente - e depois de uma infância pouco feliz - partiu para o México que adoptou como seu. Na juventude chegou a cantar nas ruas, mas só iniciaria uma carreira profissional muito mais tarde, já depois dos trinta.

Foi no México que se dedicou a quebrar todos os tabus. Cantava rancheras, canções tradicionais mexicanas que têm habitualmente intérpretes masculinos, com a sua voz quebrada e vestida de homem. Usava pistola, bebia tequila e fumava muito. Cantava em "pequenos antros", descreve Almodóvar - "o que teria dado para conhecer El Alacrán, onde se estreou com a bailarina exótica Tongolede!".

Nunca escondeu a sua homossexualidade, embora só tivesse falado dela abertamente aos 81 anos, quando publicou a sua autobiografia, intitulada Y si quieres saber de mi passado (a frase vem do poema Um mundo raro, de José Alfredo Jiménez: Y si quieren saber de mi passado/es preciso decir outra mentira./Les diré que llegué de um mundo raro/ que no sé del dolor,/que triunfe en el amor y que nunca he llorado). Acreditava nos xamãs, falava com os mortos - entre os quais com o seu grande amigo, o poeta espanhol Federico García Lorca - e com a montanha de Chalchi, junto à sua casa em Tepoztlán.

Mas sobretudo cantou. Gravou o primeiro álbum, Noche de Bohemia, em 1961, e depois desse, outros 80, com rancheras, boleros, corridos. O ensaísta mexicano Carlos Monsivais disse dela que "sabia expressar a desolação das rancheras com a nudez radical do blues".

Com Frida e Diego

Na Cidade do México boémia dos anos 50, Chavela tornou-se uma figura incontornável. E amiga de outras figuras incontornáveis, os pintores Frida Khalo e Diego Rivera. O El País conta que Chavela "aborrecia-se" quando lhe faziam perguntas sobre Frida, por quem terá estado apaixonada, mas gostava de recordar o que vivera com ela e com Rivera: "Convidaram-me para uma festa em casa deles. E fiquei. Convidaram-me a ficar a viver com eles e aprendi todos os segredos da pintura de Frida e Diego. Segredos muito interessantes, que não revelarei nunca. E éramos felizes todos. Vivíamos um dia de cada vez, sem um centavo, por vezes sem ter o que comer, mas mortos de riso." Em 2002 apareceu no filme Frida, cantando La Llorona. Costumava contar também como, nesses tempos, conheceu "o velho peludo do [Leon] Trotski", exilado no México, onde acabaria por ser assassinado.

Em 1976, o excesso de tequila - ela calculava ter bebido uns 40 mil litros - começou a afectá-la, e afastou-se dos palcos. Durou 15 anos esse intervalo, mas Chavela conseguiu reerguer-se, deixou de fumar e de beber, e voltou. A partir dos anos 90 houve uma redescoberta da sua figura e da sua voz. Foi por essa altura que Almodóvar a encontrou, como contava ontem no El País, num texto a que deu o título Adeus, vulcão!: "Durante vinte anos procurei-a nos seus cenários habituais, até que a encontrei nos diminutos bastidores da Sala Caracol, em Madrid. E tenho passado os últimos 20 anos a despedir-me dela, até esta enorme despedida, sob o sol abrasador do Agosto madrileno." Foram para Chavela "os anos da apoteose espanhola". E ele, Almodóvar, a quem ela chamava "alma gémea", levou-a para os seus filmes - Kika (1992), A flor do meu segredo (1995), Carne trémula (1997).

Dizer adeus à montanha

Em 2007 recebeu um Grammy Latino pela sua carreira. E a cantora espanhola Concha Buika recebeu outro pelo álbum com o qual presta homenagem à mulher que, disse, a ensinou "a transformar a solidão num monumento". Também Almodóvar diz que ela "fez do abandono e da desolação uma catedral na qual cabíamos todos e da qual se saía reconciliado com os próprios erros, e disposto a continuar a cometê-los, a tentar de novo".

O último álbum de Chavela, La Luna Grande, foi uma homenagem ao seu grande amigo Lorca. Cantou-o num derradeiro espectáculo na Cidade do México e ainda conseguiu realizar o desejo de o apresentar em Espanha em Julho passado. Mas na altura um "cansaço terrível" obrigou ao seu internamento. Chavela sabia que ia morrer em breve, e queria despedir-se do mundo no México. Conseguiu ainda regressar para se despedir da sua montanha de Chalchi, antes de voltar a ser internada, com insuficiência cardíaca e respiratória.

Agora é a vez de o México se despedir dela. Os mariachis da Praça Garibaldi prestaram-lhe homenagem, conta a agência Efe, e o corpo ficou em câmara ardente. Para hoje, o Governo mexicano organizou uma cerimónia no Palácio de Belas Artes. A biógrafa Maria Cortina - que escreveu com ela o livro Dos vidas necesito. Las verdades de Chavela - anunciou que será cremada e que as cinzas serão levadas para Tepoztlán. Tinha pedido que se despedissem dela com uma das suas canções eternas, La Llorona: "Tápame com tu rebozo, Llorona, porque me muero de frio."

Regressamos ainda ao texto de Almodóvar para o ouvir contar como ela lhe disse "estou tranquila". "Também me disse "uma noite irei parar", e a palavra "parar" caiu com peso e ao mesmo tempo leve, definitiva e ao mesmo tempo casual. "Pouco a pouco", continuou, "sozinha, e vou gostar disso". Foi o que ela disse."

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