Os mistérios de
O mais conhecido dos cineastas desconhecidos, Chris Marker (1921-2012), morreu na passada segunda-feira em Paris. O que poucos sabem é que, nos primeiros anos da sua carreira, em 1957, Chris Marker passou por Portugal. Esta é a história dessa viagem e das imagens através das quais ele desafiou a iconografia do Estado Novo
Muito antes de se ter tornado no aclamado realizador de La Jetée (1962) ou Sans Soleil (1982), Chris Marker começou por se destacar noutras áreas, nomeadamente como jornalista, poeta, ficcionista e crítico de literatura e de cinema em publicações de referência como os Cahiers du Cinéma ou a revista de esquerda Esprit. Os anos do pós-guerra (guerra essa onde Marker havia participado, lutando activamente na Resistência) testemunharam também o início do seu percurso fotográfico e cinematográfico. Tradicionalmente associado à Nouvelle Vague, a família artística de Marker é contudo mais perceptível no Groupe Rive Gauche - o colectivo de realizadores que, juntamente com Marker, integrava as figuras de Agnès Varda, Alain Resnais ou Jacques Demy, numa vocação mais afectiva do que artisticamente programática.
Nesses anos, e a par dos seus vários ofícios, Chris Marker lançou-se num peculiar projecto editorial que permaneceu relativamente desconhecido - obscurecido talvez pelo fulgor mediático da sua obra posterior. Entre 1954 e 1958, Marker trabalhou para as edições Seuil, dirigindo e editando uma série de livros de viagem pouco convencionais: a colecção Petite Planète, onde também participou, ocasionalmente, com fotografias e textos da sua autoria. Nestes pequenos volumes dedicados aos diferentes países do mundo, a intervenção de Marker fez-se sentir de imediato, não apenas na moderna e experimental montagem (foto)gráfica mas também na profunda heterodoxia dos conteúdos textuais.
As habituais referências à história e costumes de cada país ou povo estão presentes, mas estes livros distanciam-se claramente das descrições idílicas e enaltecedoras que geralmente povoam os livros de viagem. Eles surpreendem por realçarem narrativas menos óbvias, comentários imprevistos, críticas sociais e políticas. As chocantes fotografias de mortos ou de execuções públicas que integram, por exemplo, o volume sobre a China, dão bem conta de como os livros de viagem da Petite Planète frustram todas as expectativas deste género editorial. Particulares objectos híbridos, onde a reportagem fria se funde com a opinião subjectiva, onde os discursos verbais e textuais se equivalem, e onde a poesia e a política se tornam unas, estes livros possuem já muitos dos ingredientes do pequeno planeta de Chris Marker, sendo também premonitórios dos referenciais ensaios fotográficos, como Coréenes (1959) ou Le dépays (1982), que o artista viria a publicar mais tarde.
Em 1957, é lançado o 16º volume desta colecção, dedicado a Portugal. Na capa, uma jovem mulher, sorridente e tradicional, dá-nos as boas vindas (todas as capas da colecção são compostas de estereotipadas e acolhedoras figuras femininas). O autor do texto foi Franz Villier, e é ele o responsável pelo tom muitas vezes sarcástico e jocoso, incapaz de esconder uma certa superioridade (francesa?) face à cultura e aos hábitos portugueses. Por sua vez, a edição visual desenvolvida por Chris Marker é claramente mais interessante.
No volume sobre Portugal, Marker combinou imagens das mais diversas proveniências - desde gravuras antigas a fotografias de Cartier-Bresson ou a outras, oriundas de agências fotográficas - num arranjo final em que o todo é sem dúvida maior do que a soma das partes. Posicionando-se num quadrante político claramente distinto do que governava Portugal nesses anos, fervoroso anticolonialista e avesso a todas as formas de autoritarismo, Chris Marker assume a sua posição pessoal com o seu mais refinado trunfo: a Arte. É então visualmente, pelo rigoroso arranjo fotográfico, que Marker manifestará a sua visão peculiar.
Muitas das imagens seleccionadas são profundamente desconcertantes. Distanciam-se do elenco laudatório de monumentos e paisagens que dão normalmente corpo a um livro de viagens. Pela mão de Marker, a Torre de Belém ou o Mosteiro dos Jerónimos, locais maiores da celebração nacional, são estrategicamente representados sem qualquer tipo de grandeza. A Torre de Belém surge numa imagem escura e sem detalhe, completamente (e simbolicamente) rodeada de um lamaçal que tem um protagonismo desmesurado no plano da imagem. Os Jerónimos, por sua vez, aparecem também em segundo plano, numa fotografia em que um descuidado terreno, cheio de arbustos e vazio de interesse (ainda reminiscente da Exposição do Mundo Português, aí realizada anos antes?), ganha protagonismo e parece ser o elemento central da composição.
Conhecedor atento do eficaz plano iconográfico do regime (criado e perpetuado pelo SPN/SNI), Marker recusa replicar essas visões de Portugal, em que o país surgia como uma espécie de viagem ao passado, onde o tempo havia congelado as tradições mais antigas e autênticas que ainda persistiam vivas, numa Europa cada vez mais moderna e tecnológica. É deste modo que Marker trava uma verdadeira batalha contra as imagens reiterativas das narrativas identitárias portuguesas, quase sempre orientadas para o glorioso passado de feição marítima. Uma batalha de imagens à qual Marker riposta com outras imagens que recusavam favorecer uma realidade que não era afinal assim tão gloriosa. Não admira, por isso, que logo em Julho de 1957, o livro tenha sido oficialmente proibido pela censura em Portugal.
Se o mar é um elemento central da iconografia portuguesa, passada e presente, Marker arreda do seu livro qualquer imagem oceânica. A Nazaré, paragem obrigatória para todos os fotógrafos estrangeiros que passaram por Portugal nesses anos, de Boubat a Dieuzaide, é aqui representada por fotografias de um pescador de feição dura, roto e descalço, caminhando no asfalto sem qualquer conotação heróica. A magnífica imagem que abre o capítulo Os Pescadores é da autoria da sua amiga de sempre, Agnès Varda. Em vez da faina marítima, mostra um rapazinho que nos sorri enigmaticamente por detrás de uma máscara feita de uma cabaça, realçando o carácter de encenação das representações nacionais.
É também pela mão de Chris Marker que se publica neste livro, e pela primeira vez, a célebre fotografia que Varda havia tirado um ano antes em 1956, popularizada hoje, em publicações e postais, e conhecida como Sophia Loren au Portugal. No volume de Portugal, a imagem ainda não possui tal título e é esta a fotografia que abre precisamente o capítulo dedicado a Lisboa, intitulado A condessa dos pés descalços. Numa referência ao filme homónimo de Joseph L. Mankiewicz, com Bogart e Gardner, esta imagem oferece uma bela personificação da cidade de Lisboa, num forte jogo de contrastes simbólicos.
O livro sobre Portugal tem ainda outra importante particularidade. Para além da edição fotográfica a cargo de Marker, este é um dos poucos volumes onde encontramos fotografias da sua autoria (os outros dois são a China e a URSS). Chris Marker esteve portanto em Portugal em 1957, fez algumas fotografias e decidiu incluir nada menos do que 22 imagens suas neste volume.
Como viu então Marker no nosso país? Viu mais, viu mais além? Talvez sim. Mas acima de tudo, e como sempre, Marker viu diferente. O melhor testemunho deste seu olhar encontra-se numa sequência de seis imagens, completamente autónomas do texto, que configuram um pequeno ensaio visual, sob o título Petit cinéma des rues ou les Mystères de Lisbonne. Aludindo à literatura e designando por cinema um conjunto de fotografias, Marker confunde as especificidades mediáticas como ninguém. Recordem-se os casos do livro sobre a China, que inclui sequências fotográficas a que ele chama de curtas-metragens, ou o subtítulo (un photo-roman) que encontramos em La Jetée, obra cinematográfica composta maioritariamente por fotografias.
A montagem ensaística deste "pequeno cinema das ruas", traduz-se numa justaposição intrigante de imagens e cenas, aparentemente sem ligação entre si, que definem ainda assim uma narrativa alternativa. Uma ressonância surrealizante trespassa as diferentes fotografias e lança-nos na ambiguidade de um olhar subjectivo e numa multiplicidade de interpretações.
Tentando reconstituir a sua psico-geografia, vemos que Marker andou pelo centro e pela Baixa, onde encontrou luvas suspensas, e achou no Bar Palmeiras dos Anjos (as palmeiras ainda resistem na Almirante Reis) uma atracção mais interessante que qualquer outro monumento da capital. Às ruas movimentadas do Chiado, contrapôs a desolada imagem de uma enorme parede cega onde apenas se consegue ler, nos despojos de um cartaz rasgado, a oportuna legenda O Mundo do Silêncio, numa portentosa metáfora para um país silenciado a vários níveis.
Nos restantes dípticos articulou equilibradamente imagens de jovens e velhos, de homens e mulheres. A última imagem desta sequência foto-cinematográfica é uma das mais surpreendentes. Ao lado de uma figura feminina capturada numa suspensão indefinida, um rapazinho olha quase em espanto para um cenário onde uma poderosa figura escultórica luta desesperadamente para se erguer do peso desmesurado que lhe pende sobre os ombros, e do qual não parece conseguir libertar-se. Este quadro enigmático dissolve-se um pouco quando descobrimos que se trata afinal de um dos atlantes que estão na base do monumento ao Marquês de Pombal, projectado por Adães Bermudes. Estranheza em estado puro: foi essa a parcela que Marker extraiu do centro da Rotunda para publicar no livro sobre Portugal.
O arranjo das imagens foi feito de acordo com os princípios da montagem cinematográfica e o título deste ensaio torna-se assim por demais acertado. Sem legendas ou outros elementos que nos ajudem a descodificar o que vemos, este texto visual define uma construção pessoal que também pretende ser extraordinariamente criativa do ponto de vista da recepção.
Marker solicita assim aos seus espectadores aquilo que também exigia de si mesmo: um profundo investimento e envolvimento pessoal com aquilo que vemos, com o mundo. Para retratar um país, Portugal, Chris Marker montou, num livro, um objecto fílmico feito de fotografias, numa narrativa múltipla e alheia a leituras unívocas. Tal como os mistérios de Lisboa, a sua obra assegura-nos que os mistérios de Marker continuarão como sempre, imperscrutáveis.