A crise congelou campo de golfe de 15 milhões de euros em Santa Maria

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A escolha do local para o campo de golfe é considerada "um atentado ambiental a terrenos com os solos mais férteis da ilha" Foto: Rui Soares

Até onde o olhar alcança - e é muito -, tudo o que há para observar, aqui e ali, são vacas. Vistas de muito longe - de um dos miradouros da estrada que segue para o Pico Alto, por exemplo - mais parecem manchas castanhas espalhadas displicentemente na superfície verde pelo pincel de um artista nervoso.

Daniel Gonçalves, o nosso guia nesta viagem desde Vila do Porto, abre os braços num gesto simbólico para abranger a vastidão da terra da discórdia: são os 80 hectares, quase um milhão de metros quadrados, destinados pelo Governo Regional dos Açores à construção de um campo de golfe na ilha de Santa Maria.

Tudo começou a ganhar forma em 2007, quando a sociedade de capitais públicos Ilhas de Valor - criada dois anos antes pelo executivo açoriano para desenvolver projectos que visam o desenvolvimento das chamadas Ilhas da Coesão (Graciosa, S. Jorge e Flores, além de Santa Maria) -, deu início ao processo para construir um campo de 18 buracos na pequena ilha do grupo oriental. O investimento está estimado em 15 milhões de euros, em grande parte financiado pelos dinheiros comunitários, com o custo final a depender do que se gastar na expropriações das terrenos, todos privados.

O que levou o Governo a optar por um campo de golfe? "O golfe foi definido como um pilar do turismo a desenvolver na região", diz Lubélia Chaves, presidente do conselho de administração da Ilhas de Valor. Neste caso, espera-se que os dois campos da vizinha S. Miguel possam dinamizar o de Santa Maria.

"A ilha já está razoavelmente equipada ao nível do alojamento hoteleiro e eram necessárias actividades que se complementassem e dessem retorno", acrescenta a gestora. Nesta óptica, o golfe é o elo em falta numa cadeia que já inclui a marina, o porto de recreio, percursos pedestres e animação marítimo-turística.

Os defensores do projecto estão conscientes de que o esforço para trazer turistas pode ser inútil se não for resolvido o problema central dos transportes. "A frequência do transporte aéreo é das melhores da região", diz Lubélia Chaves. "Esta ilha é a mais bem servida, pois está ligada a S. Miguel. O problema é o custo e esse pode condicionar tudo."

Daniel Gonçalves, professor de Português a viver na ilha há 13 anos, e um dos rostos da contestação ao golfe, faz uma leitura mais dura. "Sem outra política de transportes, ninguém consegue cá chegar."

Vitória dos opositores

O projecto ficou concluído em Janeiro. A sua concretização só não começou ainda, como estava previsto, porque o Governo Regional decidiu suspender tudo. "O investimento não foi considerado o mais urgente e oportuno", explica Lubélia Chaves. A obra terá de ser concretizada num prazo máximo de dois anos. Tal decisão, fortemente condicionada pela difícil conjuntura económica, será tomada pelo Governo que sair das eleições regionais do Outono.

Este congelamento é, para já, uma vitória dos que se opõem à construção do campo de golfe. Daniel Gonçalves tomou conhecimento do projecto há três anos. Foi o primeiro subscritor de uma petição, depois assinada por 363 pessoas, contra o empreendimento, e que seria objecto de discussão pública na Assembleia Legislativa dos Açores em Fevereiro passado.

"É um erro estratégico", diz Gonçalves. Entre as razões adiantadas está a que respeita às "provas evidentes e suficientes de que o golfe não é um investimento rentável nos Açores". As dificuldades por que passam os dois campos de S. Miguel parecem dar -lhe razão. Os opositores consideram ainda que "investir no golfe não garante o sucesso de políticas de turismo sustentável", além de contrariar as medidas de contenção do investimento público. É também criticada a não realização de um estudo de impacto ambiental (entretanto efectuado), e outro estudo que garanta ao campo auto-suficiência de água numa ilha onde ela não é abundante.

A escolha do local é considerada um "atentado ambiental a um conjunto de terrenos com os solos mais férteis da ilha". No entanto, Daniel Gonçalves rejeita qualquer outra solução ao dizer que "a petição é contra o campo de golfe, qualquer que seja a localização".

Aida Amaral Santos, deputada regional do PSD por Santa Maria, é de opinião que "os Açores nunca serão destino de golfe, que parece uma alternativa obsoleta". Na sua opinião, "o dinheiro que já ali se gastou devia ter sido aplicado em programas sociais, de habitação para jovens, por exemplo". A posição de Mário Fortuna, presidente da Câmara de Comércio e Indústria de Ponta Delgada, vai no mesmo sentido, embora partindo de premissas distintas. "Os campos de golfe são peças fundamentais do futuro do turismo açoriano. Mas construir um campo de assinatura em Santa Maria é um disparate total. Os clientes vão ser os poucos golfistas de S. Miguel."

Consumo de água exigido pelo empreendimento é a incógnita

"Qualquer uso de água em campo de golfe irá fazer falta à comunidade envolvente", diz o especialista em vulcanologia Victor Hugo Forjaz, professor catedrático jubilado da Universidade dos Açores. Num sucinto parecer, enviado à Assembleia Legislativa dos Açores, lembra que, em termos geológicos, um campo de golfe "consome diariamente um apreciável caudal de água". Por isso, diz que se o projecto avançar "será fatal recorrer-se à dessalinização osmótica" (técnica para tornar potáveis águas salgadas ou salobras).

Na audição parlamentar sobre o assunto, o secretário regional do Ambiente e do Mar, Álamo Meneses, pronunciou-se também sobre o impacte ambiental do projecto, designadamente na gestão da água e da poluição por utilização de fertilizantes. "Os campos de golfe são tipicamente exigentes do ponto de vista da água, quer devido à intensidade da rega quer pela utilização de fertilizantes, mas a tecnologia tem evoluído muito no sentido da reciclagem da água." Isso levou-o a concluir que se essa tecnologia for utilizada, "a ilha terá capacidade para sustentar o campo de golfe".

Diogo Caetano, presidente da associação ecológica Amigos dos Açores, é mais prudente. No parecer enviado à assembleia reconhece não dispor de "provas evidentes de que o golfe possa um investimento rentável nos Açores e, em particular, na ilha de Santa Maria". A gestão das águas é uma das maiores preocupações da associação, que admite que "a realização de novos furos de captação e o sistema de utilização de águas pluviais preconizado no projecto consultado minimizará os potenciais impactes na água para abastecimento público".

No entanto, esta conclusão é condicionada pelo facto de ser desconhecido "o possível impacte, a médio prazo, das captações de água na produtividade das explorações existentes para abastecimento público, bem como a evolução da procura da água da ilha". Em declarações ao PÚBLICO, Diogo Caetano seria mais directo: "O golfe não parece ser a salvação do turismo nos Açores."

Carlos Rodrigues, presidente da Câmara de Vila do Porto, manifestou na audição uma grande preocupação com a questão da água: "Vão ser necessários 150 mil litros por dia quando não chover, pelo que vai depender muito da captação." O autarca disse ao PÚBLICO ser favorável à obra desde que esteja garantido que não haverá problemas de água a médio e longo prazo.

A posição do presidente da Junta de Freguesia de Almagreira, Antonino Melo, é diferente. Está contra a construção e reafirmou-o na audição. Um dos seus argumentos é que os terrenos em causa são os melhores da ilha, podendo ser usados para a agricultura, "quando acabar a época das vacas". Outro, porventura mais importante, é não saber se o empreendimento vai danificar os lençóis de água. Um deputado perguntou-lhe se achava que os terrenos em questão são essenciais para o abastecimento público de água e se o campo iria prejudicar os lençóis subterrâneos. Antonino Melo disse não saber e que o seu receio era que "a água chegue a um nível que seja salgada".

O Clube dos Amigos e Defensores do Património Cultural e Natural de Santa Maria, o Conselho de Ilha de Santa Maria e a Associação Agrícola de Santa Maria, por outro lado, são favoráveis ao projecto. A primeira sustenta que o campo "integra-se com o desenvolvimento sustentável" de Santa Maria. O Conselho de Ilha limita-se a dizer que "depois de salvaguardadas as questões de impacte ambiental, somos contra o teor e objecto da petição". A Associação Agrícola manifesta-se igualmente "favorável" ao empreendimento, que "pode constituir uma mais-valia na atracção de um determinado segmento de turistas".

"Seria melhor investir no turismo de natureza"

O campo de golfe de Santa Maria é um problema para Christian Solenthaler, um suíço que vive na ilha desde Maio de 2009: a casa que explora em regime de turismo rural está no limite das terras a expropriar. Além disso, não sabe o que pode acontecer aos cem metros quadrados que tem do outro lado da estrada, já no perímetro do campo. O empreendimento pode prejudicar o negócio? "Não sei. As pessoas vêm para cá por causa da natureza e não tive nenhum cliente que ache boa ideia [o campo de golfe]. Seria melhor investir no turismo natural."

A primeira vez que veio a Santa Maria com a mulher foi em 2000. "Sentimos logo o espírito da terra, uma coisa muito especial que não encontrámos em nenhum outro lugar." Dois anos mais tarde, compraram a casa, ainda sem condições para ser habitada, porque já tinham decidido viver na ilha. Em 2008 instalaram-se para ajudar a reconstruí-la, equipá-la com painéis solares e aquecimento no chão. Está contra o campo de golfe, que até lhe poderá valorizar a propriedade, porque acha que não tem sentido. "São precisas muitas pessoas para ser viável, mas os custos das viagens aumentaram muito. Além disso, necessita de muita água. Sem campo, no Verão, já deixo de ter água para os meus clientes por causa da praia Formosa."

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