Pelos caminhos de Dickens, aliás David Copperfield
Londres vive um ano de grandes eventos, entre eles o bicentenário do nascimento do notável escritor. Viagem por alguns dos lugares do livro preferido de Charles Dickens, de Camden Town a Covent Garden, de Portsmouth a Canterbury.
Esta confissão é hoje tão verdadeira que não posso acrescentar senão uma confidência ao leitor. De todos os meus livros este é o de que eu mais gosto. Facilmente se admitirá que tenha por qualquer produto da minha imaginação uma ternura paternal e que ninguém, mais do que eu, possa amar esta progenitura. Mas, como acontece a muitos pais, guardo no fundo do coração um filho preferido: chama-se David Copperfield. Final do prefácio da 2.ª edição (1869)
O resplendor ténue das primeiras horas da manhã desenhou manchas no chão frio do dormitório onde se acotovelavam uma dúzia de camas quando, ainda a viver o pesadelo daquela orgia ébria em que se transformara o quarto até altas horas da madrugada, com gemidos e pedidos de socorro pelo meio, dei um salto do alto do beliche e perscrutei a janela entreaberta onde deixara a minha toalha imaculadamente branca.
Alguém a roubara.
Precisava de tomar um duche com a mesma urgência com que necessitava de um café, para me despertar e esquecer, o mais rápido possível, da noite em que fui escravo dos excessos de jovens. Já na casa de banho, limpei-me ao lençol que decidira não utilizar na véspera.
A porta do átrio do hostel abre-se para umas escadas em granito e para uma manhã bonita. No solo despido está uma rapariga que, inconsciente, recebe chapadas na cara de duas amigas que ostentam no rosto as marcas indeléveis de alguém que está em dívida com o sono. O cheiro a álcool enche a atmosfera e um indigente que erra sem aparente destinolevanta o rosto para se certificar de que acaba de passar por um local de descanso e não por uma destilaria.
Eu olhava aquele território de perdição com um impulso sentimental quando me lembrei de que me esquecera do meu guia da cidade. A jovem recuperava lentamente mas as pálpebras oscilavam para baixo e para cima como persianas de uma casa pouco habituada à luz. Subi o elevador, percorri o corredor e penetrei naquele quarto que exalava um cheiro pestilento por todos os poros. Cravei os olhos no beiral da janela agora fechada, o último lugar onde colocara o livro.
Alguém o roubara.
Abandonei o hostel debaixo de uma nuvem de desencanto, como um espectro do passado.
Na realidade, previa que o casaco ia tomar o mesmo caminho e que teria de chegar a Dover em ceroulas e camisa. E ainda era estar com sorte!
O pai na prisão
Charles Dickens nasceu em Landport, na Ilha Portsea, em Portsmouth, no dia 7 de Fevereiro de 1812, há 200 anos - e sete após Nelson ter derrotado Napoleão na Batalha de Trafalgar, a mais importante das guerras napoleónicas. O pai, John Dickens, escriturário nos serviços portuários naquela cidade do sul de Inglaterra, teve uma vida de nómada durante um decénio, mudando-se sucessivamente de porto em porto, uma instabilidade que também encontrava eco no seu carácter de "jovial oportunista sem qualquer senso do dinheiro", conforme o descreveu Charles Dickens, o segundo dos seis filhos que sobreviveram.Uma vez em Londres, a família instalou-se em Camden Town, na época um subúrbio rodeado de campos.
Das janelas do meu quarto via Londres estirar-se ao longe, qual uma imensa toalha de névoa em que cintilavam, aqui e ali, algumas luzes.
Turistas estão sentados em vespas que cumprem o papel de bancos de bar, comendo, bebendo e fitando preguiçosamente as águas dóceis do Regent"s Canal, aqui e acolá rasgadas por pequenas embarcações. Encostado ao cais está um barco que serve de cabeleireiro e, para o outro lado, à sombra de ramos frondosos, os jovens boémios, sentados na relva, abanam-se parcimoniosamente ao som da música, indiferentes aos transeuntes que cruzam a bonita ponte. As ruas são percorridas por um frémito de vida que se estende ao mercado de Camden; das varandas, mulheres e homens tatuados assemelham-se a crentes assistindo a uma procissão; das fachadas das casas, pintadas de cores alegres, algumas térreas, outras apenas com um piso, pendem sapatos desportivos de tamanho gigante. Com uma identidade muito forte e, em algumas áreas, uma atmosfera de aldeia, Camden Town é hoje um dos lugares imperdíveis de Londres, tão distinto dos tempos de David Copperfield.
Talvez em consequência dos conselhos que me dera a senhora Crupp, veio-me à ideia, no dia seguinte, ir visitar Tommy Traddles, que habitava numa travessa perto da Escola de Medicina Veterinária, em Camden Town. Como me disse um dos escreventes da banca em que eu trabalhava, ali viviam sobretudo estudantes que compravam burros vivos para fazerem depois exames anatómicos nos quadrúpedes.
John Dickens costumava levar o filho pela mão às tabernas, para cantar e dançar, vivendo num mundo de fantasia. Charles limpava-lhe as botas todas as noites e, a pouco e pouco, à medida que a fortuna se ia esfumando, o pai deixou de ser pai para se tornar apenas progenitor.
Conheço agora suficientemente a vida para ser capaz de me admirar demasiado seja do que for; mas surpreendo-me, ainda hoje, da facilidade com que fui abandonado em idade tão tenra. Acho extraordinário que ninguém intercedesse em favor de uma criança tão dotada, possuidora de grandes faculdades de observação, de espírito vivo, ardente, delicado e muito sensível de alma e corpo. Mas ninguém esboçou um gesto e eu, aos dez anos, tornei-me servente da casa Murdstone & Grinby.
Esta e outras experiências, este e outros episódios da sua infância e adolescência infelizes, são retratados em David Copperfield, a sua obra mais autobiográfica. Só anos mais tarde, quando entrevistado por um jornalista sobre o livro em questão, se deu (ou fingiu dar-se) conta da troca de iniciais nos respectivos nomes: C.D. para D.C. No prefácio da primeira edição, Charles Dickens dificilmente poderia ser mais elucidativo sobre as semelhanças entre o que foi a sua vida e a que marcou a existência do pobre David Copperfield:
Talvez para o leitor haja pouco interesse em saber com que desgosto se descansa a pena depois de dois anos de um trabalho de ficção; ou o que sente o autor ao lançar algo de si mesmo neste mundo sombrio quando a multidão de criaturas nascidas do seu cérebro o abandona para sempre.
Humilhado aos 12 anos
Durante dois anos, Charles Dickens trabalhou num armazém, dez horas por dia, embalando graxa para calçado e sofrendo as mais variadas humilhações. Desde muito jovem um apaixonado pela leitura, viu-se obrigado, na idade de todos os sonhos, a abandonar a escola.Compreendi muito bem que se desembaraçavam de mim, mas não me recordo se estava assustado ou contente (...) Imagine-se a minha saída nesse dia: levava o meu chapelinho branco muito usado, com uma fita de crepe pelo luto da minha mãe, casaco preto e calças de belbutina grossa, que a senhora Murdstone devia considerar uma armadura perfeita para me proteger as pernas nessa luta com a vida que eu ia iniciar. E eis-me assim equipado, com tudo o que possuo metido numa mala pequena, sentado, pobre criança, só no mundo (como diria a senhora Gummidge) na mala posta que me leva com o senhor Quinion a Yarmouth, onde tomaremos a diligência para Londres.
Oito dias depois de o pequeno Charles Dickens completar 12 anos, o pai foi preso por uma dívida a um padeiro, um total de 40 libras que, nos dias que correm, seriam qualquer coisa como três mil (cerca de 3600 euros). A criança errava como um vagabundo pelas ruas da cidade, saboreando, na sua solidão, as coisas simples da vida. Com frequência, caminhava entre Bayham Street e a Catedral de São Paulo para depositar os olhos no nevoeiro e no fumo sobre as cúpulas, cujo tamanho apenas é superado pela de São Pedro, em Roma, e que foi construída entre 1675 e 1710, após o chamado Grande Incêndio.
O armazém onde a criança conseguira emprego ficava situado em Hungerford Stairs, à beira-rio, num espaço hoje parcialmente ocupado pela estação de Charing Cross e não em Blackfriars, como em David Copperfield, no qual a sua missão consistia em examinar garrafas vazias à luz, separar as rachadas, lavar as outras ou colar letreiros, adaptar rolhas aos gargalos e colocar cápsulas nas rolhas das cheias.
Casa velha, arruinada, com um embarcadouro privativo, dava para a água quando a maré subia e para o lodo quando esta baixava. Os ratos corriam por toda a parte.
A Londres do escritor
Charles Dickens, embora sentisse na pele a dureza, o horror e a crueldade, estaria longe de imaginar que esse haveria de ser o ponto de partida para, mais tarde, com a pena na mão, deslizando suavemente sobre o papel, iniciar uma cruzada pela defesa de melhores condições de trabalho e reformas sócio-económicas no país.
Os sinos da Catedral de São Paulo fazem-se ouvir, como se entoassem lamentações, e agitam aquela atmosfera repleta de vozes e de olhares que agora se erguem para o relógio. Prisioneiro do meu tempo, caminho sempre, como Charles Dickens gostava de o fazer, cruzando os vários pontos da cidade que vive um ano ímpar - o Jubileu da Rainha, os Jogos Olímpicos e a comemoração do bicentenário do nascimento do grande escritor. Sob um sol radioso, a meio de uma manhã gloriosa, enfio-me pela Ludgate Hill antes de me embrenhar no bulício da Fleet Street, naquele tumulto de gente, cujo eco flutua no ar.
Quando eu tinha dinheiro suficiente, tomava uma xícara de café e uma fatia de pão com manteiga; caso contrário, contemplava uma loja de caça na Fleet Street.
Homens vestindo fatos e mulheres com saias reduzidascaminham apressadamente ao longo da Strand, composta, à hora a que aqui me encontro, com um verdadeiro formigueiro humano. Descanso um pouco na Somerset House, contemplando as flores artificiais que cobrem a relva e, uma vez mais, mergulho na Strand, descrita, no século XIX, por Benjamin Disraeli, político e escritor britânico com raízes portuguesas, como uma das melhores ruas da Europa. Hoje, não obstante manter alguns edifícios interessantes, muitos deles abrigando hotéis, perdeu grande parte do seu charme. Mas no número 216, encimando a porta, continua a imagem dos dois mercadores chineses, símbolo da Twinings, a casa que vende chá ininterruptamente desde 1787, o que faz dela a loja mais antiga de Londres.
Segui os conselhos da senhora Crupp e fui eu próprio fazer a encomenda na casa de pasto. Um pouco mais tarde, passeando pela Strand, descobri na montra de uma salsicharia um bloco estriado como mármore e com o letreiro "Para sopa falsa de tartaruga".
Perco-me por ruas estreitas, admiro a distinção da arquitectura, as suas casas em tijolo, a melancolia da Floral e da Neal Street, e deixo-me envolver pelo néon dos cartazes que anunciam peças de teatro. Charles Dickens gostaria de ter sido actor, um cómico, e costumava vaguear por esta zona da cidade, por vezes a caminho de Covent Garden, onde me volto a sentar para admirar um espectáculo de rua antes de penetrar no interior do edifício que abrigou, até 1974, o famoso mercado de legumes, frutas e flores, imortalizado no filme My Fair Lady (1964).
Terminados que foram estes preparativos, fui comprar fruta ao mercado de Covent Garden e encontrei num retalhista da vizinhança uma quantidade razoável de vinho.
A margem sul do Tamisa
O sol vai subindo no céu e tremula pelo meio das árvores na praça de onde avisto a Temple Church. Caminho agora próximo do Tamisa, ouvindo o marulhar das águas douradas pelo disco que lança os seus raios e deixando que o olhar resvale para a Tate Modern, o Shakespeare"s Globe e as pontes que cruzam o rio. Utilizo a Ponte de Londres para chegar à margem sul.
Atravessámos a Ponte de Londres (creio que o meu companheiro assim a nomeou, mas eu já ia cheio de sono) e chegámos finalmente à casa da infeliz criatura.
Na época em que John Dickens esteve preso, a lei permitia que a família se lhe juntasse na cela e, não raras vezes, Charles Dickens lhes fez companhia, nos poucos tempos livres que lhe restavam ou ali pernoitando. Num banco de um jardim, tendo como companhia, a poucos metros, dois mendigos com as suas roupas esfarrapadas e os cabelos desgrenhados, fito o muro do que foi em tempos a Prisão Marshalsea, onde o escritor absorveu muitas das histórias que mais tarde o tornaram mundialmente famoso. Em David Copperfield, cabe a Mr. Micawber representar o papel de John Dickens.
Embora tivéssemos cerca de um quarto de hora de avanço, ele já se encontrava no ponto indicado. Estava de braços cruzados, diante da muralha, considerando com expressão sentimental os espigões do topo, como se fossem raminhos de árvores entrelaçados que houvessem sombreado a sua juventude.
Com a morte da mãe, John Dickens recebeu uma herança significativa e conseguiu, desta forma, pagar as suas dívidas. Mas nem ele nem a mulher, a despeito de gozarem de maior saúde financeira, optaram por libertar o pequeno Charles do humilhante emprego que ocupava a maior parte do seu tempo, um tempo que deveria ser de brincadeira e de entretenimento, como o destas crianças que agora, num baloiço, no jardim Little Dorrit, vão andando para cá e para lá, tendo como fundo, recortando-se contra o céu azul, a torre da Catedral de Southwark, frequentemente visitada por Charles Dickens. Por esta zona me quedo, na manhã seguinte, vagabundeando pelo mercado de Borough, sentindo as suas fragâncias, observando as pessoas vivendo as suas vidas; saio para a Borough High Street, iluminada pelo sol, e faço uma pausa no George Inn, onde, sentado num banco de madeira, com uma cerveja à minha frente, vou folheando as páginas de David Copperfield, enquanto tento imaginar como seria o mundo nos tempos em que Charles Dickens e William Shakespeare, em épocas diferentes, faziam deste lugar, praticamente imutável desde 1677 e hoje património do National Trust, um dos seus preferidos.
A meio da tarde, apanho um transporte para Highgate, visito o cemitério, os lugares onde estão sepultados Karl Marx e George Eliot, lanço olhares às bonitas moradias com os seus jardins bem tratados e absorvo, desde o topo da colina, a norte de Londres, toda aquela atmosfera de aldeia.
E foi por um belo dia de Outono, cerca do meio-dia, quando as folhas secas perfumavam a terra ou adornavam ainda os ramos doirados pelo sol, com os seus coloridos amarelos, rubros ou castanhos, que eu cheguei a Highgate.
Sentado no Parque Waterlow, abandono-me à minha quietude, deixando que a vida fervilhe em voz baixa, até que sou invadido por um sentimento de felicidade proporcionado por aquela paz crepuscular
De Gravesend a Rochester
O comboio abandona, lentamente, a estação de London Bridge e, já mais apressado, rasga uma zona industrial antes de me permitir contemplar, através da moldura da janela, os campos cultivados que, sob um céu azul-cobalto, em mais um dia cheio de esplendor, se espraiam até se perderem no horizonte. Saio em Gravesend e caminho na direcção da Igreja de St. George, onde, ao lado de um velhinho simpático, poiso os olhos na estátua de Pocahontas, antes de descer até ao rio. Ao fundo, duas chaminés erguem-se nas alturas e, ao meu lado, o molhe em ferro fundido, hoje transformado em bar e restaurante, parece orgulhoso de ser o mais antigo do mundo no género (construído em 1834). Em tempos imemoriais, era de Gravsend que partiam as grandes embarcações, aquelas que eram capazes de sulcar os oceanos.
Eu e Dora subíramos, em Gravesend, a um grande paquete da carreira da Índia para nos despedirmos dos Mills.
No mesmo local, onde, neste instante, os idosos, sentados junto ao rio, mostram gratidão pelo calor do dia, despediu-se David Copperfield da família Micawber, de partida para a Austrália. Os transportes são escassos, tento uma boleia mas não registo qualquer sucesso e, como alternativa, vou vencendo, a pé, os quilómetros, até me deter, meia hora depois, numa paragem. Ergo os olhos e vejo que estou a percorrer a Dickens Road, a estrada que David Copperfield percorreu quando, cansado da vida que tinha em Londres, desprezado e humilhado, se lançou à estrada, também a pé, ao encontro da sua tia, cujo paradeiro ignorava.
-Para onde vais?
Eu olhei-o nos olhos mas foi a falta de dentes que me saltou à vista.
- Para Rochester, disse.
- Espera aqui uns minutos que o meu pai deve estar a chegar e, como vamos para Rochester, pode dar-te boleia.
Era ainda um jovem, empregado em part-time num café de uma pequena vila, algures em nenhures. Daí a instantes o pai fez a sua aparição num carro modesto que conduz agora por uma estrada bordejada de árvores, olhando para mim através do retrovisor enquanto fala de Charles Dickens.
- Olhe à sua direita, vê aquela mansão? Ele viveu ali, já não era o rapaz pobre que trabalhava em Londres.
Acabámos de passar Gads Hill e, poucos minutos depois, pai e filho despedem-se de mim no centro de Rochester. Subo uma rua e deito-me na relva, contemplando com admiração o castelo e, do outro lado, a ponte. Antes de me perder pelas ruas cheias de referências a Charles Dickens lanço-me à descoberta do interior da catedral desta vila estrategicamente situada na confluência dos rios Tamisa e Medway.
Caminhei, nesse domingo, vinte e três milhas em linha recta, e com que dificuldade, porque não estava habituado a semelhante fadiga! Vejo-me ainda, ao anoitecer, atravessando a ponte de Rochester: estava esgotado, doíam-me os pés e comia o pão que comprara para a ceia.
Rochester, um dos lugares preferidos de Charles Dickens, dedica dois festivais por ano ao escritor, um em Junho e outro em Dezembro, atraindo um grande número de turistas que aproveitam para ver as suas bonitas casas do século XVIII e mesmo algumas do século XIV, especialmente ao longo da High Street, a principal artéria.
De autocarro, chego a Chatham, vila sem grande atractivos mas onde Charles Dickens viveu, em dois lugares diferentes - o segundo deles mesmo em frente à actual estação de comboios -, os dias mais felizes da sua infância.
Curiosamente, cheguei a Chatham, que, no seu aspecto nocturno, é uma fantasmagoria de greda, pontes levadiças e barcos desmantelados junto a um rio de lama onde arribassem arcas de Noé.
De Canterbury a Broadstairs
É quando o sol se prepara para mergulhar que chego, de comboio, a Canterbury, local de peregrinação famoso pela sua catedral gótica (fala de 1400 anos da história do cristianismo e integra a lista de Património Mundial) que agora observo expondo-se a uma luz bonita de final da tarde. A cidade, com as suas ruas empedradas, tem a capacidade de apaixonar o viandante de imediato, um fascínio que nos transporta para o passado. Não muito longe do expoente máximo do culto religioso em Inglaterra e, durante anos, maior centro de peregrinação do Norte da Europa, encontra-se, numa rua silenciosa que visito na manhã seguinte, uma antiga escola com uma porta na diagonal, encimada por uma frase de Charles Dickens, onde dois meninos de rostos sorridentes, fardados a rigor, se deixam fotografar antes de me agradecerem e de mais um dia de aulas.
Ao chegar a Cantuária, divaguei uns momentos pelas ruas velhas, com uma alegria discreta que me acalmou a imaginação e aliviou a alma. Reencontrei antigas tabuletas, antigos nomes na fachada das lojas, as mesmas caras atrás dos balcões. Os meus anos de colégio pareciam-me tão recuados que me admirei de ver a cidade tão pouco mudada, até ao instante em que reflecti quão pouco eu mesmo mudara (...) Nas torres venerandas da catedral, que os gritos das gralhas tornavam ainda mais recolhidas do que se o silêncio as povoasse; nos portais desfeitos, outrora ornados de estátuas (que o tempo derrubara ou desfizera em pó, como aos peregrinos que as vinham admirar); nos cantos tranquilos em que a hera secular subia pelas paredes, cobrindo-lhes as ruínas; nas casas de outrora, no cenário pastoril dos campos, dos pomares e jardins, por toda a parte, enfim, eu senti pairar a mesma serenidade, o mesmo sopro calmo, pensativo, apaziguador.
Canterbury, - em português, Cantuária - tem muito para oferecer a quem a visita. Se a catedral atrai a maior parte dos turistas - crentes ou não - , a Abadia de St. Augustine, fundada em 597 a.C. e local do renascimento do cristianismo no Sul do país, justifica uma visita às suas ruínas, bem como o passeio até à pequena Igreja de St. Martin, a menos de um quilómetro da abadia. Sentado no cemitério adjacente, uma vez mais com David Copperfield nas mãos, perscruto as torres da catedral e os campos que se estendem por detrás, desfrutando aquele silêncio absoluto.
Cedinho, no outro dia, fui vaguear pelas ruas velhas e tranquilas da cidade, entre pórticos antigos e igrejas veneráveis. As gralhas voavam em redor das torres da catedral, e as mesmas torres, olhando sempre para a extensão imutável dos campos férteis cortados de arroios claros, recortavam-se no céu puro da manhã, como se aquela terra não sofresse a mínima alteração. Contudo, quando os sinos soaram, foi para me falar com voz triste de mudanças por toda a parte, da sua velhice e da mocidade de Dora, e de todos quantos, não tendo chegado a velhos, tinham vivido, amado e desaparecido. E as últimas vibrações das badaladas punham gemidos na armadura enferrujada do Príncipe Negro, que lá pendia, despertavam partículas de pó na profundidade do tempo e dissipavam-se no espaço como círculos de água.
Ainda me sobra tempo para visitar o fascinante Museu Romano, a sua cozinha e o seu mercado subterrâneos, os seus mosaicos, e de errar novamente pelas ruas e vielas com um passado tão rico, cheio de histórias para contar, deixando para o fim um momento de serenidade junto ao rio, com as fachadas das casas projectadas na água, como se fosse um espelho. Daqui, deste banco onde tenho como companhia a minha solidão e David Copperfield, posso ver a porta da cidade da qual me despeço, ao início da tarde, com um sentimento estranho. Do terminal de autocarros, sentado no segundo piso de um deles, parti para Broadstairs.
Um passeio bonito, pelo mundo rural, aqui e além sob árvores frondosas dos dois lados da estrada, as copas tocando-se como se formassem um túnel; depois, por ruas enfeitadas com vivendas imponentes, com jardins de relva e flores viçosas; mais à frente, sob um sol de cobre, o mar revolto, com as suas ondas hostis beijando praias desertas. Até que, por fim, desço numa paragem, já em Broadstairs, e os meus olhos vão ao encontro, como se de um magnetismo se tratasse, da Guest House Copperfield. Ao longo de uma rua pedonal, deixando para trás o Bazar Dickens, chego a uma espécie de varanda que se debruça sobre uma extensa faixa de areia.
- Pois então, sobe por ali fora - disse o cocheiro, indicando o sítio com o chicote - e vai sempre em frente até chegar às casas que deitam para o mar.
Por ali permaneço, durante uns minutos, olhando como um sonhador o mar, os pequenos barcos de pesca, os pássaros que riscam o céu sempre azul, os meninos que brincam perante o olhar complacente dos pais. Viro à direita e um minuto depois estou à frente da Dickens House.
Deixou-me, pois, junto à porta do jardim, e eu olhei com ar melancólico para a janela do que julguei ser a sala: uma cortina de cassa entreaberta, um anteparo em forma de leque fixado ao peitoril da janela, uma mesa pequena e uma poltrona levaram-me a pensar que talvez a minha tia, nesse momento, aí pontificasse com toda a majestade.
Mal transponho o jardim e franqueio a porta principal, abrigada por um alpendre, sinto-me num ambiente familiar, como se já ali tivesse estado.
A sala apresentava-se tão limpa como a senhora Trotwood ou a criada. Descansando ainda há pouco a pena, para meditar, senti de novo entrar o ar salino de mistura com o aroma das flores. Revi os móveis à moda desse tempo, bem esfregados e luzidios, a cadeira e a mesa que só a tia tinha direito de ocupar atrás do anteparo verde, em forma de leque, fronteiro à janela, o tapete coberto com um pano, o gato, o escalfador, os dois canários, a loiça antiga, a poncheira cheia de pétalas de rosa seca, o armário grande que guardava todo o género de garrafas e frascos, e, ó milagre, destoando de tudo isto, a minha pessoa poeirenta em cima de um canapé, atento ao mínimo pormenor do que rodeava.
Em Broadstairs, onde anualmente, em Junho e durante nove dias, se realiza o Festival Dickens - altura em que milhares de locais e visitantes se passeiam pelas ruas em trajes vitorianos - , continua a respirar-se uma atmosfera da época em que o escritor aqui viveu. Charles Dickens tinha apenas 25 anos quando visitou esta pequena localidade pela primeira vez. E foi em Broadstairs, lugar onde vivem pouco mais de 20 mil pessoas, que encontrou grande parte da inspiração para uma das suas mais famosas personagens femininas: a senhora Betsey Trotwood, baseada em Mary Pearson Strong que, segundo reminiscências do filho mais velho de Dickens, Charley, costumava oferecer bolos ao pai, sempre com um olho atento ao que se passava no exterior, no jardim por onde eu acabara de passar. No livro, no entanto, a acção decorre em Dover e não em Broadstairs.
- Burros, Janet!
Mary Pearson Strong, aliás Betsey Trotwood, vivia nesse tempo, nesse passado irrevogável, perfeitamente convicta de que lhe assistia o direito de impedir a passagem dos quadrúpedes em frente à sua cottage.
Reapareceu a criada, a correr, como se houvesse fogo em casa, e precipitou-se para um trato de relva da frente, onde duas senhoras, montadas em burros, haviam tido a audácia de entrar.
Observo com uma atenção afectuosa a sala, o canapé onde Betsey Trotwood ficava alerta, o relógio na parede, a lareira, a mesa e as suas quatro cadeiras, a janela virada para onde o mar sussurra, procurando imaginar os conflitos entre a proprietária da casa e os burros.
Havia cântaros de água e agulhetas em pontos ocultos, prontos a serem despejados em cima dos contraventores. Havia paus atrás da porta. Faziam-se rondas inesperadas. Era um estado de guerra permanente.
Lee Ault, responsável pelo museu, acompanha-me durante parte da visita e, sempre com um sorriso, até ao jardim e ao muro de onde, conversando, avistamos o mar.
- Neste hotel - vira as costas ao mar e aponta para a direita - ficou Charles Dickens instalado muitas vezes, em meados do século XIX.
Eu sigo o indicador de Lee Ault e fito o Albion Hotel, um edifício do período vitoriano, pintado de creme e onde, na esplanada, casais se entregam a uma refeição ou, ainda com mais vontade, a uma cerveja. Num pequeno parque, num patamar inferior, as crianças com cabelos cor de palha que resplandecem ao sol brincam amistosamente e quase em silêncio.
Lee Hault, de calças e camisola escura, com um colar ao pescoço, cruza as mãos na cintura e olha o vazio, emocionada por falar da obra do escritor que mais admira. Mas logo se recompõe quando admite sentir-se orgulhosa por gerir um espaço que todos os que leram David Copperfield têm no imaginário. Vira-se de novo para o mar, para as ondas agora mais calmas e, logo de seguida, ligeiramente para a esquerda, com as mãos juntas em concha:
- Naquela casa, no cimo da colina, escreveu Charles Dickens parte de David Copperfield. Mas, entretanto, já foram feitas obras, a casa foi ampliada.
Deposito ali o olhar, nas janelas brancas, nas suas paredes castanhas, nas suas múltiplas chaminés. Em parte, assemelha-se a um castelo.
- E, agora, para onde vai?
Eu sorrio, pensando no longo percurso que ainda tenho de fazer, e respondo:
- Para Portsmouth, para ver a casa onde Charles Dickens nasceu.
- Ah! Mas a casa nada tem a ver com esse tempo. Se Charles Dickens regressasse a este mundo não a iria reconhecer.
Ao fim da noite chego a Portsmouth, durmo umas horas e ao alvorecer, ainda sob uma luz mitigada, contemplo a casa onde Charles Dickens nasceu. Não muito longe, lanço olhares às duas escolas onde conheceu um tempo feliz da sua infância. E regresso à casa, ainda mergulhada no silêncio, para reler algumas passagens de David Copperfield.
Quando passeava só, nos dias bonitos, pensando na época em que o ar se embalsamava do meu ardor juvenil, sentia confusamente que o sonho se não realizara como eu esperava. Mas reflectia em que o Passado resplandece sempre com uma luz suave que não pertence ao Presente.
A luz mortiça do candeeiro apaga-se e o sol espreita do outro lado, por cima dos prédios que sobem no céu. Volto a mergulhar na leitura, numa parte que me ficara na retina, esperando que o museu abra as suas portas.
O que pretendo dizer é isto: tudo o que procurei fazer na vida desejei que fosse bem realizado; tenho-me consagrado inteiramente ao meu trabalho, nas coisas grandes como nas pequenas, e fi-lo sempre com seriedade. Nunca fui de opinião de que uma prenda, natural ou adquirida, dispensasse essas virtudes mais humildes que são a perseverança e o labor. Semelhante ambição não é deste mundo. O talento e a oportunidade podem formar os sustentáculos da escada que certos homens sobem, mas os degraus devem ser resistentes e sólidos.
Fico com vontade de reescrever a parte final do prefácio da segunda edição. E faço-o. Mas, como acontece a muitos leitores, guardo no fundo do coração um livro preferido: chama-se David Copperfield.