The Roots vão acertar contas com Portugal
Em 2005 os Roots vieram a Paredes de Coura e deram o que consideram ter sido o pior concerto da sua carreira. Agora, estabelecidos como banda residente do Late Night With Jimmy Fallon, com tempo para ensaiar e a editar a um ritmo infernal, dizem que vão pagar com juros a dívida que têm há sete anos com os portugueses.
Considerem isto uma ameaça: se tudo correr como planeado, quando amanhã à noite os Roots acabarem a sua actuação no Festival Sudoeste, o vosso rabo estará a doer. Palavra de ?uestlove, o baterista e líder da banda, que passamos a citar: "We will kick ass". Para sermos sinceros, a frase não está completa. A sua versão exacta é a seguinte: "We will kick ass, this time".
This time, desta vez. Porque houve uma outra vez, há sete anos, em Paredes de Coura, e não foi bonito. "Meu, o nosso concerto em Portugal foi das coisas mais trágicas e divertidas que nos aconteceram. Depois do concerto fomos para o hotel a ouvir a gravação e não sabíamos se rir se chorar, tamanhas eram as vaias. Nunca ninguém nos tinha tratado tão mal. E nós merecemos, porque essa vez foi um desastre". ?uestlove encontra razões para uma actuação tão desgarrada. "Antes de mais os festivais têm um problema: é que estás à mercê do cabeça-de-cartaz. O som não está feito para ti, a audiência, à excepção de meia-dúzia de fanáticos, não quer saber de ti".
Depois houve o vento e a chuva. Não em Paredes de Coura, mas em New Orleans, EUA: "Foi na altura do [Furacão] Katrina. Isso influenciou-nos, porque tínhamos entes queridos em New Orleans e não sabíamos o que lhes tinha acontecido. Um dos nossos tinha lá os filhos. Foi doloroso".
Por último vem a questão que mais importa a um americano: o trabalho. "Não vou dizer que fôssemos preguiçosos, não se é preguiçoso quando se dá 200 concertos num ano, que era o que fazíamos nessa altura. Mas nunca ensaiávamos. Para mim ensaio eram as datas mais pequenas: um concerto num clube pequeno numa terra que ninguém conhece, isso era o ensaio, era quando experimentávamos, fazíamos jams. E esses espectáculos eram os mais divertidos. Agora, estar em frente a uma audiência larga como aquela que nos calhou assustava-nos, e ainda nos assusta um pouco".
Promessa de ?uestlove: "Temos contas a acertar com os portugueses e estamos em dívida. Não somos a favor da cultura da auto-indulgência, por isso vamos pagar. Em dobro".
Burgueses?
Tenha ou não sido assim tão má a actuação em Paredes de Coura, ?uestlove está certo em algumas coisas: os Roots que vão aterrar no Sudoeste não são os mesmos de há sete anos. Na altura estavam a cavalgar no sucesso de The seed, uma versão de Cody Chesnutt que gravaram no magnífico Phrenology, mas ainda eram, de certa maneira, a banda de Things Fall Apart (1999): um conjunto de músicos altamente qualificados, amantes de jazz e da história da música negra, que recusava o mais possível o uso de samples e de quem nunca se sabia o que esperar.A grande mudança na vida da banda foi o convite para serem a banda-residente do Late Night de Jimmy Fallon. "Eu sabia que os críticos iam ver-nos como vendidos. As facas estavam de fora e estavam só à espera do momento certo para nos espetarem". Mas o emprego estável revelou-se profícuo. "Primeiro ter um emprego estável fez-nos estar mais próximos das nossas famílias. Seria para nós impossível aos 40 anos continuar a tocar 200 vezes por ano. Até para a nossa reputação em estrada não tocar tanto ao vivo fez bem: a nossa indisponibilidade fez com que as pessoas sentissem mais saudades nossas".
"Podíamos ter-nos aburguesado", reflecte. "Isso acontece muito no hip-hop: porque vimos da pobreza, quando conseguimos algum dinheiro não queremos abdicar disso. O que faz com que a maior parte das pessoas escreva os discos que acha que a indústria vai gostar em vez de escrever o que quer". Só que descobriu uma coisa engraçada: trabalhar todos os dias com a banda era benéfico. "Quando tens de tocar para um milhão de pessoas todos os dias, não podes falhar. E os convidados são sempre diferentes, tens de ser capaz de te adaptar a tudo. Começámos a ensaiar a sério a agora finalmente sentimo-nos músicos".
Diz que nunca trabalhou tanto na vida e tem provas: só nos últimos dois anos os Roots editaram o fabuloso How I Got Over e Undun, fizeram o magnífico Wake Up com John Legend e ainda escreveram a música de Betty Wright: The Movie. E quem achasse que eles se iam tornar burgueses enganou-se: How I Got Over é o disco mais político, negro e zangado que eles escreveram. E saiu-lhes do pelo.
"Eu queria que How I Got Over fosse o nosso disco mais duro. Por várias razões. A percepção pública dos Roots tinha mudado e a última coisa que me apetecia era dar razões para nos acusarem de ter amolecido. Além disso estávamos - ainda estamos - a viver um período em que se desencoraja o ser criativo porque as pessoas estão com medo de perder o conforto que adquiriram. Depois há o legado: os meus discos não podem soar datados nem soar a uma moda de época".
Todas estas angústias juntaram-se a mais um par de dúvidas de existenciais: "Obama tinha acabado de ser presidente e isso tinha de ter significado para um membro da comunidade negra". A idade também começou a pesar: "Estávamos a chegar aos 40 e não sabíamos sobre o que falar num disco. Não podíamos falar acerca de viver com os pais, de festas. Mas também não vais falar de levar os filhos ao treino de futebol". Começou a sentir "uma crise de media-idade" em que "a única coisa que era certa era que o país estava dividido". "Isso forçou-nos numa direcção espiritual, não tenho vergonha de o admitir. Pensei: vamos fazer um disco sobre não saber o que fazer. Vamos fazer um disco sobre todo um país não saber o que fazer."
A encruzilhada em se encontrou não era unicamente pessoal - extendia-se a todo o hip-hop: "Isto aconteceu com o jazz, com a soul em 1977. Sempre que uma sub-cultura encontra o dinheiro a sério acaba por morrer. O tempo virá em que o dubstep será mainstream e não adolescente". Diz que o hip-hop caiu numa cultura de excesso: "Abraçámos a auto-indulgência. Isso nota-se nos vídeos. Há um excesso de consumo de tudo. Isto pode parecer cómico, mas antes o negro tinha como objectivo não levar um tiro, agora tem de evitar morrer de ataque cardíaco. Não estou a brincar: está tudo a morrer de ataque cardíaco. Não comemos bem. Não tínhamos leite, não íamos aprender em adultos a beber leite de manhã. Tive de arranjar um yoga instructor, não queria morrer de ataque cardíaco".
Com o novo regime de trabalho constante e ensaio continuado, ?uestlove começou a apontar à longevidade e à seriedade: "Podes envelhecer e ser sério e ser bom. Os Rolling Stones fizeram o Tattoo You que é um óptimo disco quando estavam com 40 anos. O Johny Cash fez três discos com o Rick Rubin que são o melhor da sua carreira e estava com mais de 60 - gostava de ver o mesmo a acontecer com o hip-hop".
Sempre a teorizar, diz que "a razão pela qual não gostamos tanto do 5º e do 6º disco dos nossos artistas preferidos como gostámos dos dois primeiros é que quando a carreira se estabelece não há tempo para ser artista". Os Roots tomaram uma decisão: "Ou continuávamos a fazer 200 concertos por ano e a ser adolescentes ou assumíamos a idade, ensaiávamos e compunhamos a sério".
Tomaram a última opção e fizeram bem: quando ?uestlove ouve os últimos discos dos Roots não se sente "a cerrar os dentes de angústia" como se sentiu há sete anos quando saiu do concerto de Paredes de Coura. Preparem os rabos.