Em Tóquio, com o homem da maratona
Haruki Murakami faz o seu treino todos os dias numa paisagem de néons anunciando burgers, karaoke e jazz. O Japão dele tem uma geografia que os operadores turísticos vendem em pacotes com a palavra "estranho". Mas o escritor conhece a arte da fuga e segui-lo pode ser tão imprevisível quanto um engarrafamento numa auto-estrada de Tóquio.
A agulha desce e começa a ouvir-se a voz de Nat King Cole no gira-discos de uma pequena cidade dos subúrbios de Tóquio. "Pretend you"re happy, when you"re blue/ It isn"t very hard to do..." Hajime, nome que em japonês significa "princípio", pensará mais tarde nas palavras que ainda não entende e acha que nem será assim tão difícil fingir um sorriso. "Bom, às vezes", conclui. É um pré-adolescente a desenhar o mundo a partir do seu quintal, "convencido de que toda a gente habita numa casa de família com jardim, tem um animal doméstico e vai para o trabalho de fato e gravata". Em Kobe, cidade portuária a Oeste do sol, outro rapaz ouve esses sons que lhe chegam de outra paisagem. Tem 13 anos, comprou o seu primeiro disco. The Many Sides, do crooner americano dos anos 60 Gene Pitney. Como Hajime, ainda não sabe uma palavra de inglês. Fica-se pela melodia estranha, e essa estranheza em relação ao mundo será sempre a sua marca. Chama-se Haruki, ou "árvore da primavera", e encontrou na música ocidental, na cultura pop americana, a maneira mais fácil de se evadir. Como Hajime, também irá para a universidade em Tóquio; um e outro irão encontrar por lá o anonimato das grandes multidões. Lá, na grande cidade dos néons, do trânsito, das avenidas em camadas, Haruki irá criar Hajime, um seu contemporâneo, protagonista de A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol: geografia de um amor que aconteceu em Tóquio, mas podia estar em qualquer parte do globo.
Haruki Murakami, o escritor japonês que vende milhões, tão influente no Japão como na Europa ou nos EUA, capaz de inspirar cineastas como Sofia Coppola (em O Amor é um Lugar Estranho) ou músicos como Thom Yorke, dos Radiohead (em Kid A), faz muitas das suas criaturas à sua semelhança, mas nunca ao ponto de lhes roubar a identidade. Há traços do rebelde que não quis a mesma vida dos pais em Hajime. Como haverá na rapariga agarrada a um livro na abertura de After Dark, Os Passageiros da Noite. Todos habitam a mesma Tóquio cosmopolita, todos olham para os contornos dessa cidade com a tal distância de que só os estranhos são capazes. "Através dos olhos de uma ave nocturna que voa alto no céu, observamos a paisagem urbana. Dessa perspectiva alargada que se oferece ao nosso olhar, a cidade tem o aspecto de uma gigantesca criatura - ou, melhor dizendo, de uma única entidade colectiva formada por organismos vivos. As numerosas artérias que se estendem até às extremidades desse corpo esquivo permitem que o sangue circule continuamente e chegue a todas as células, enviando novas informações e reciclando as antigas, dando origem a novos bens e recuperando os antigos. Criam-se novas contradições, recuperam-se velhas contradições. As partes do seu corpo cintilam, incendeiam-se e oscilam ao ritmo do bater do coração. Aproxima-se a meia-noite, o ponto alto da sua actividade já passou, mas o metabolismo vital que assegura a vida continua a trabalhar incessantemente, produzindo o basso contínuo que reproduz os murmúrios da cidade, um som monótono, sem altos nem baixos, se bem que prenhe de pressentimentos."
O pulso de Tóquio, cidade plana, sem as montanhas de Quioto, sem o mar de Kobe, acerta por vezes com o de Murakami, quando o escritor atravessa os jardins de Jingu Gaien, passando pelo estádio de Jingu, Sympathy for the devil, dos Rolling Stones a marcar o ritmo. Ali, no estádio, teve uma espécie de epifania ao ver um jogo de beisebol. Foi em 1978, tinha 29 anos, era então dono de um bar de jazz, o Peter Cat. Quando viu o pitcher americano Dave Hilton atirar a camisola, Murakami teve a certeza de que podia escrever um livro. Durante meses, sentou-se à mesa da cozinha, nos intervalos do bar, e ensaiou a escrita. Ganhou um prémio ao primeiro romance. Nunca permitiu que fosse publicado fora do Japão por considerá-lo imaturo, mas continuou a escrever até deixar de saber o dinheiro que tem. É a liberdade que pede para poder seguir, como quem corre a maratona sem ser para ganhar.
Nunca ganhou. Fez o seu melhor tempo na maratona de Nova Iorque, em 1991. Três horas, 31 minutos e 27 segundos. Mas continua a atravessar os jardins, ensaiando. "Grande parte do que sei sobre escrita aprendo a correr." Correndo passa por hipotéticos modelos de personagens dos seus romances, homens e mulheres em traje desportivo, de ténis, entrando e saindo de estações de metro, auscultadores nos ouvidos, pedindo uma sandwiche ou uma salada de frango num Denny"s. "A iluminação tem tanto de banal como de adequado; decoração inexpressiva e loiça neutra, a condizer; desenho do chão configurado ao pormenor por especialistas; música ambiente anódina; equipa de empregados meticulosamente treinados, de modo a saberem lidar com os clientes e aplicar à letra as normas descritas nos manuais: "Bem-vindo ao Denny"s". Tudo no restaurante é anódino, permutável. Quase todos os lugares estão ocupados." Há quem peça uma salada de frango a acompanhar com café. Estamos numa cidade de códigos globais onde quase ninguém fala uma palavra da língua global, a não ser as importadas, como bagel ou hamburger. E "a música ambiente que toca baixinho é Go away little girl, interpretada pela orquestra de Percy Faith. "Vivo em Tóquio", contou a um jornalista do The New York Times, "uma parte desse mundo civilizado, como Nova Iorque ou Los Angeles ou Londres ou Paris. Quando se quer encontrar uma situação mágica, coisas mágicas, é preciso ir fundo dentro de nós. É o que faço. Há quem diga que é realismo mágico, mas no fundo de mim é apenas realismo. Não é mágico. Enquanto escrevo é muito natural, muito lógico, muito realista e razoável."
O mundo como um videogame
É um mundo que escreve a partir de uma das zonas mais cosmopolitas de Tóquio, Aoyama, o equivalente nipónico ao Soho nova-iorquino. Grandes marcas, arquitectura muito mais espectacular, ateliers de design, de moda, restaurantes com estrelas Michelin, poder de compra e o bom-gosto instituído. O tradicional e o alternativo. É ali que o escritor tem um estúdio, vizinho do edifício da Prada. Passa lá seis horas por dia, numa rotina severa que instituiu para conseguir a concentração necessária a ir fundo nessa viagem interior. É um dos locais de romaria para os adictos de Murakami. Desde o sucesso mundial de Norwegian Wood, livro de 1987 que se tornou um ícone nipónico estampado em T-shirts da marca Uniqlo, Murakami passou a ser inspiração para agentes de viagem que traçam percursos de acordo com a sua escrita.
Se After Dark... deu a conhecer a Tóquio nocturna e cosmopolita, Kafka à Beira-Mar, de 2002, pôs no atlas turístico a cidade portuária de Takamatsu. Territórios reais povoados pelo onírico. Murakami tem esta capacidade de colocar uma personagem presa no trânsito para depois a fazer entrar num túnel que a leva a outra dimensão. E sem nunca largar os detalhes que humanizam, numa teia de referências universais: são mapas de comportamento válidos para Nova Iorque como para Quioto, a cidade ex-capital do Japão imperial, onde nasceu em 1949, e de onde saiu para Kobe, apenas com dois anos. Primeira viagem transformadora. Teria sido outro se ficasse no isolamento das montanhas em vez de ter crescido no cruzar de culturas de que era feita a cidade à beira-mar. Foi aí que comprou o primeiro disco, foi aí que leu o primeiro livro em inglês, um policial americano. Aprendeu a língua a partir da qual iria traduzir Raymond Carver. Foi desse exercício de tradução que encontrou a sua voz de escritor, afinada a cada livro, tentando não repetir fórmulas. É o seu grande desafio à partida. E de uma melodia "tonta", em Kobe, aos 13 anos, chegou aos 60 a escrever sobre Janacek, em Tóquio.
"A rádio do táxi estava sintonizada numa estação em FM e transmitia música clássica. A Sinfonietta de Janacek. Não se podia dizer que fosse a obra ideal para ouvir no meio de um grande engarrafamento. O taxista também não parecia dar grande atenção ao programa. Homem de meia-idade, contentava-se em observar calado a interminável fila de carros, estendendo-se diante dele, na passagem superior da auto-estrada, como um pescador veterano que, de pé na proa do seu barco, interpreta os sinais ameaçadores na linha de convergência de duas correntes marítimas. Bem recostada no assento traseiro, de olhos fechados, Aomame escutava a música." É a tal passagem de uma via rápida de Tóquio para um subterrâneo povoado de gente em miniatura que aconteceu no seu mais recente romance 1Q84, o livro que olha para o mesmo ano que Orwell, 1984, mas a partir de um futuro que vê o passado próximo, perspectiva menos aborrecida - confessou numa recente entrevista - do que olhar o futuro a partir do presente.
Não é ficção científica o género que Murakami pratica. Não chamem outros nomes às suas fantasias literárias, alegorias com símbolos universais, reacções pós-traumáticas como os livros que se seguiram ao ataque com gás sarin no metro de Tóquio - Underground - ou ao terramoto que destruiu Kobe - After the Quake O que é então? É qualquer coisa mais próxima do videogame. A imaginação de um romancista que, mais do que fazer literatura, quer falar aos seus contemporâneos e conseguir arrancar sorrisos aos salarymen que todos os dias enchem os comboios e o metro de Tóquio nas duas horas de que precisam, em média, para percorrer o trajecto entre casa e trabalho. Não lhe chamem também "ocidentalizado". Apesar do sentimento de estranheza que o persegue para onde quer que vá, que o fez voltar costas à tradição, estudar teatro na universidade de Waseda, largar os estudos, casar, abrir um bar, ele insiste que quer escrever sobre o Japão e os japoneses. Viveu na Europa, deu aulas em Princeton, vai regularmente a Honolulu, no Havai, mas fora sente-se mais estranho ainda. É a sua condição, já se disse. E o Japão, por mais estranho que também lhe seja, é a sua matéria; escrever sobre ele, a maneira de reagir.
Mas é um Japão que não é feito apenas de tofu, um Japão onde se comem hambúrgueres e se ouve hip-hop. O mundo de Haruki Murakami é tão real quanto fantástico, tem itinerários definidos, mas permite muitas liberdades sem nunca perder as referências que criam uma identidade universal. Esse é o feito. Ele é perito nesse jogo que pode colocar lado a lado criador e personagem numa mesma passadeira de Tóquio. Afinal, lembra, estamos na paisagem literária e uma das vantagens do romance é a de poder levar a qualquer lado, em que tempo for. Ele prefere o presente.
No princípio era Hajime
Voltamos ao princípio. Haruki e Hajime, realidade e ficção, estão parados no semáforo vermelho para peões. São anónimos, solitários num quotidiano rotineiro. São dois pontos numa dinâmica que lhes é exterior. Quando o sinal abrir, dez multidões haverão de se cruzar e será impossível evitar o atropelo. Com Haruki e Hajime, estamos em Shinjuku, um dos lugares mais movimentados de Tóquio, na estação mais movimentada do mundo - e chamar cruzamento àquele cenário é simplificar muito. São cinco passadeiras dispostas num pentagrama imperfeito (ou pelo menos não tão perfeito quanto o de Shibuya) entre carros, gente, escadas rolantes e arranha-céus. Cada pessoa é uma ilha cercada de milhares de outras ilhas por todos os lados num imenso arquipélago urbano. E cada uma dessas ilhas irá avançar na sua direcção.É impossível não sentir a vertigem do embate. "Pessoas com um destino certo e outras sem destino; pessoas que procuram deter o tempo, enquanto outras se esforçam por precipitar o curso dos acontecimentos", lê-se em After Dark, Os Passageiros da Noite. Mas o sinal abre e cada unidade flui num estranho silêncio até ao outro lado da estrada. O Japão é um Lugar Estranho, escreveu o inglês Peter Carey num livro onde, como em Shinjuku, os universos correm paralelos, sem atropelos. Estranho não haver um encontrão, um embate, um deslize. As multidões avançam numa organização perfeita, Haruki e Hajime terão passado um pelo outro com os seus universos de sons, carregando a estranheza da primeira melodia.
O Japão é um Lugar Estranho é a frase que continua a ecoar e se aplica na perfeição ao universo de Haruki Murakami, o corredor de maratonas, inventor de mundos a partir de coisas tão corriqueiras como engomar uma camisa ou beber uma cerveja. Pasme-se com a surpresa como Scarlett Johasson pasmou quando ficou colada ao vidro do Park Hyatt Tokyo a observar o cruzamento. E Lost in Translation, que em português precisamente se chamou O Amor é um Lugar Estranho, é a outra frase, um título que o Ocidente transformou em hino da estranheza do Japão ao ponto de a banalizar, vendendo-a como bandeira para turistas, mais uma inspirada no universo de Murakami.
Só que Murakami não gosta e repetir fórmulas, é avesso ao previsto, e banalização só a da sua própria disciplina de trabalho, a rotina para atingir a concentração. Procura percursos alternativos para as suas narrativas, sabe que muitas vezes as auto-estradas que levam ao centro de Tóquio, como em 1Q84, são as únicas a sofrer engarrafamento - e evita-as. Os percursos de Murakami andam na mesma geografia, mas encontrá-lo num mapa é um jogo difícil até para nerds da sua própria literatura. Pode muito bem fazer um desvio imprevisto para Leste, até ao mar, onde tem uma casa-refúgio, para tentar abandonar a estranheza por alguns momentos. Às vezes o anonimato da Tóquio pós-moderna pode ser muito aborrecido - e ser reconhecido numa pequena cidade à beira-mar, enquanto ensaia a maratona, uma zona de grande conforto. Mas esse é Murakami para turista não ver.
Na próxima semana, o mapa da escrita de J.M.G. Le Clézio