Da guerra com vista para uma distante Lisboa

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Aos 19 anos viu As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Fassbinder - "a primeira pessoa que me deu vontade de fazer cinema", diz

Pocas Pascoal vem de Angola, vive em França mas foi em Portugal que rodou Por Aqui Tudo Bem, sobre o destino de duas adolescentes, como tantos outros, que fugiram à guerra civil angolana. Uma quase autobiografia distinguida no Los Angeles Film Festival.

Paris-Lisboa-Luanda. As três cidades já estavam ligadas na cartografia de vida da realizadora angolana Maria Esperança (Pocas) Pascoal (n. 1963). Junta-se agora Los Angeles, onde o seu filme Por Aqui Tudo Bem venceu o prémio de longa-metragem no Los Angeles Film Festival 2012. O filme não tem data de exibição em Portugal. Mas vai fazendo o seu caminho pelos festivais, onde já recebeu várias distinções, a mais importante das quais a de Los Angeles. A 8 de Agosto estará no World Cinema em Amesterdão. De acordo com o júri de Los Angeles, "a realizadora transformou a sua história pessoal de exílio de Angola num drama profundamente comovente, cujo poder cinematográfico é particularmente impressionante no trabalho de um realizador estreante". Para Pocas Pascoal, para quem este é o segundo filme mas a primeira ficção, "foi uma bela recompensa", disse ao Ípsilon. O produtor Luís Correia da LX Filmes apostou neste filme, mas até agora não encontrou sala para o mostrar. Dizem-lhe que estes temas não atraem público.

O filme faz parte de uma trilogia sobre a ausência, elemento bem presente nas famílias, como a de Pocas Pascoal, separadas pela guerra civil que estalou quando Angola acordou independente. É dedicado à memória da irmã Adelaide que morreu com 37 anos, por doença, em Paris.

A realizadora é a mais nova das duas. E aquela que, neste filme, é interpretada pela actriz Cheima Lima. A história de Pocas Pascoal não foi exactamente assim - como se conta em Por Aqui Tudo Bem. Mas quase.

No filme, os apartamentos no Barreiro são os mesmos onde ela e a irmã, como tantos angolanos fugidos à guerra, viveram - casas a serem construídas para os operários das fábricas perto dali e cuja construção parou com o 25 de Abril. Pocas Pascoal e a irmã Adelaide eram adolescentes quando chegaram a Lisboa, vindas de Luanda, sozinhas. Ocuparam uma dessas casas onde não havia fechadura. As personagens de Maria (Cheima Lima) e Alda (Ciomara Morais) também. A partir daqui, o real fica em aberto. E a história do filme mistura realidade e ficção.

Luanda-Lisboa

Se ficasse em Angola, Alda, que já tem 18 anos, faria o serviço militar na guerra. Para escapar a esse destino forçado, muitos adolescentes vieram, como ela e a irmã, sem os pais, para Portugal. A mãe, que ficou retida em Luanda por ser acusada de actividades subversivas, está presente, no filme, pela ausência.

Uma cabine telefónica, que liga Luanda a Lisboa, concretiza uma espera abstracta e é único indicador do passar das semanas - a mãe telefona à mesma hora todos os domingos. Através do rádio, num dos minimercados do bairro, fica-se a saber que o filme se passa em 1980. Foi por essa altura que Pocas Pascoal veio para Lisboa.

À chegada, a estranheza perante o clima, a comida ou o anoitecer tardio (era Verão quando Pocas e a irmã chegaram); ou com a água do mar, fria, e o contacto humano, mais distante, diz a realizadora. Mas também o espanto perante a pequenez de uma metrópole que se imaginava majestosa, retratado no livro Retorno de Dulce Maria Cardoso - livro que Pocas Pascoal associa a uma maior abertura (recente) para as pessoas falarem sobre as circunstâncias da vinda para Portugal de angolanos e portugueses que se sentiam mais angolanos, depois de 1975.

Para Pocas e a irmã, houve depois a errância, o desamparo, a miséria e a fome.

No expresso da sua vida, a primeira paragem é Luanda, onde nasceu, e mais tarde o Huambo onde foi presa pela UNITA de Jonas Savimbi e levada com a irmã para uma das prisões do movimento, quando tinha 10 anos. Em Portugal, é o Barreiro, onde se ergue nos bairros uma Little Luanda, com Lisboa em fundo como a miragem própria de um sonho inatingível a juntar à angústia de não saber o que aconteceu ao pai e à mãe.

O pai foi raptado no Huambo - há muito tempo. É médico e a mãe pensa que isso aconteceu para tratar os feridos. A história desta família, como a de tantas outras, tem um lado romântico (ligado ao sonho de um país a nascer) prestes a ruir.

O cais de partida era ainda um país por cumprir, com um Governo que era uma ditadura, diz Pocas Pascoal. E o de chegada longe de ser o porto de abrigo imaginado pelos adolescentes angolanos que aqui procuraram refúgio. "Um dia vou ter uma casa mesmo no centro de Lisboa", diz Carlos (Willion Brandão) no filme, um jovem angolano por quem Maria se enamora. Para quantos terá chegado esse dia?

Para Pocas Pascoal e a irmã, essa crença em Portugal como lugar seguro desmorona-se aos poucos, com aquilo que a realizadora diz ser o racismo e a sensação de exclusão que encontrou à chegada. Ficou poucos anos. De Lisboa, seguiu para Luanda - queria reencontrar os pais ou descobrir o que lhes tinha acontecido.

Foi ainda em Angola que viu pela primeira vez As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Fassbinder - "a primeira pessoa que me deu vontade de fazer cinema", diz. "Fiquei completamente absorvida por esse filme." Percebeu pela primeira vez que se pode pôr em cinema "o lado sensível do ser humano". Tinha 19 anos.

Começou a trabalhar com essa idade e foi a primeira mulher operadora de câmara em Angola quando a televisão pública estava a nascer.

Mais tarde, quando deixou Luanda não foi para Lisboa, mas para Paris. É a partir de lá, onde vive desde os anos 80, que fala ao Ípsilon. Lisboa era demasiado próxima e ao mesmo tempo distante. E em Paris já lá estava a irmã, Adelaide.

Lisboa-Paris

Tinha sido ela a primeira a partir, como Alda no filme. "Fiz uma cruz sobre aquele sítio", diz ela a Maria, que quer regressar a Angola à procura dos pais. Só mais tarde, Pocas (com a mãe na vida real porque no filme o seu destino é ficcionado) chega à cidade das luzes, onde ainda vive. Lá estudou no Conservatoire Libre du Cinéma Français. Fez montagem de filmes para produtores independentes em França.

Foi então que descobriu o cinema. "A minha grande influência é o cinema francês, Nova Vaga, mas também Antonioni...."

Com a morte prematura da irmã, decidiu avançar para uma trilogia, de que Por Aqui Tudo Bem é o segundo filme, sobre a ausência da mãe. O terceiro filme da trilogia, que já começou a escrever, é sobre a ausência do pai. O primeiro sobre a ausência da irmã. É um documentário que a leva a Angola, em busca dos lugares onde as duas viveram. "É um documentário sobre a minha memória, sobre a memória colectiva. Através da minha história também conto a história de Angola."

Um desses lugares é a prisão para onde as duas foram levadas pela UNITA. Quando rodava o filme, procurou e teve a certeza, porque de todos os lugares que visitou, este - um antigo matadouro transformado em cadeia - era o mais próximo das suas reminiscências. "Quando entrei, a minha emoção física foi muito forte." Viu isso como um sinal inconfundível de que estava no sítio certo, tanto mais que reconheceu o som metálico da porta pesada e os sons exteriores. "Só pode ter sido naquele sítio." Foi então naquele sítio que as duas estiveram presas.

Deve ter havido uma sensação de liberdade na chegada a Lisboa. É o que transparece nos primeiros minutos do filme. A esperança coincide com o Verão e Maria e Alda chegam no Verão. Os vestidos passam depois às roupas de meia-estação, sombrias e a cobrirem o corpo. No fim, são fechadas e escuras - como se abafassem as duas irmãs.

É a roupa adaptada ao clima (de Inverno). Mas é também o clima e o que o país lhes oferece a abafá-las. Com o tempo, a própria solidariedade entre angolanos transfigura as relações. Portugal deixa de ser aquele destino repleto de possibilidades. E pouco resta aqui para elas.

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