Há cada vez mais provas de que o cancro nasce de células estaminais
Deu-se a estas células o nome de "células estaminais cancerígenas" porque - tal como as normais células estaminais dos embriões e dos adultos, capazes de dar origem a diferentes tipos de tecidos no organismo - conseguem dividir-se vezes sem conta. Mais: é delas que descendem todas as outras células de um cancro e que, ainda por cima, não são todas iguais. Também lhes chamam "células iniciadoras dos tumores".
Segundo a hipótese das estaminais cancerígenas, nos cancros há uma hierarquia - e no topo da pirâmide encontram-se estas células. "Estão em menor número, mas fazem muitos estragos", explica Célia Gomes, que estuda as estaminais cancerígenas no Instituto de Investigação da Luz e da Imagem da Faculdade de Medicina de Coimbra. "As estaminais cancerígenas são uma das explicações para a heterogeneidade das células dos tumores."
Proposta há algumas décadas, esta hipótese tem suscitado grande debate. Foi em 1994 que estas células foram identificadas pela primeira vez de forma conclusiva, na leucemia: quando transplantadas para ratinhos com o sistema imunitário enfraquecido, essas células formaram tumores com as mesmas características. "Segundo a teoria, só estas células têm capacidade de gerar um tumor. Qualquer outra desse tumor que não seja estaminal não tem essa capacidade", explica Célia Gomes.
Desde a década de 1990, a hipótese foi ganhando força com a identificação de células estaminais cancerígenas em cancros como o da mama, da próstata, do cérebro e pâncreas.
Mas o papel exacto que elas desempenham continua a suscitar debate. Será que, como propõe a hipótese, são realmente responsáveis pelo início dos cancros, pelo seu crescimento e pela sua disseminação a outros tecidos e órgãos? Também não é muito claro se resultam da transformação de células estaminais adultas, que deixaram de ser capazes de controlar a proliferação, ou de células já diferenciadas que ganharam características das estaminais.
"O tumor pode ter origem em mutações que ocorreram em células estaminais adultas. Todos nós as temos e, no caso de haver um dano no organismo, elas dividem-se e o tecido regenera-se", explica Célia Gomes. "Ou podem ocorrer mutações em células não-estaminais, que fazem com que elas adquiram o comportamento das estaminais", acrescenta a cientista, considerando que as duas origens são possíveis.
Como as estaminais cancerígenas diferem de cancro para cancro, como explica Célia Gomes, é preciso localizar esse reservatório de malignidade para cada um deles. As três equipas dizem agora ter identificado, de forma independente, as estaminais de diferentes cancros e lesões pré-malignas.
A de Arnout Schepers, do Centro Médico da Universidade de Utrecht, na Holanda, confirmou as suas suspeitas para os adenomas intestinais, pólipos no cólon e recto. "Mediante estudos em ratinhos, apresentamos provas directas e funcionais da actividade das células estaminais nos adenomas intestinais primários, precursores do cancro intestinal", diz o grupo de Schepers na Science.
Já a equipa de Cédric Blanpain, da Universidade Livre de Bruxelas, seguiu a evolução de um grupo de células de um cancro da pele, o carcinoma de células escamosas, e apontou-as como as iniciadoras de tudo.
Por fim, a equipa de Luis Parada, da Universidade do Sudoeste do Texas, nos EUA, identificou as estaminais cancerígenas do glioblastoma - um cancro do cérebro agressivo e com mau prognóstico, porque resiste à terapêutica e reaparece após a cirurgia. Além disso, as suas experiências mostraram que, depois da quimioterapia, esse pequeno número de células foi a fonte que alimentou novamente o cancro.
Vários trabalhos têm concluído que estas células são muito resistentes aos tratamentos convencionais (quimio e radioterapia), pelo que têm de ser um alvo para novos medicamentos. Aliás, Célia Gomes fez estudos deste género para o osteossarcoma, cancro dos ossos que atinge sobretudo crianças e adolescentes, e em Abril deste ano o seu grupo publicou os resultados na revista BMC Cancer. "Isolámos e caracterizámos uma subpopulação de células com características de estaminais e estudámos os efeitos que a quimioterapia e a radioterapia têm nelas. Verificámos que resistem mais a estas terapias", diz.
"Elas podem ser responsáveis pelo aparecimento de recidivas nos doentes de osteossarcoma. A taxa de sobrevida anda à volta dos 70% em cinco anos. Mas, destes 70%, cerca de 30 a 40% têm recidivas", acrescenta. "Muitas vezes, a seguir aos tratamentos observa-se uma diminuição significativa da massa tumoral. Estas células não se vêem numa TAC ou PET - é como se tivessem hibernado e deixam se ser atingidas pelas terapias convencionais, que têm como alvo as células muito proliferativas. Não estando a dividir-se, não são atingidas, mas estão lá e podem voltar a dar origem a tumores."
Todos estes estudos mudam a forma de olhar para o cancro? "Mudam", responde Célia Gomes. As estaminais cancerígenas não podem ficar de fora dos tratamentos e esta nova visão é importante para se desenvolverem novos medicamentos que, usados em combinação com a quimio e a radioterapia, as atinjam.
Mas as terapias não poderão centrar-se só nas células estaminais, explica a cientista: "Porque, ao longo do desenvolvimento do tumor, uma subpopulação de células não-estaminais pode adquirir características estaminais. [O cancro] é um processo dinâmico."