Jupiter na terra, Fatoumata no céu

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"Eu sou o Norte e eu sou o Sul do Mali, como posso dividir-me?", cantou Fatoumata Diawara DR

No segundo e último fim-de-semana do 14.º Músicas do Mundo, Sines deu a conhecer dois dos mais notáveis nomes da música africana de hoje: o congolês Jupiter e a maliana Fatoumata Diawara

"Cala-te! Isto não é um comício político". Alguém nas primeiras filas terá exasperado o histórico músico sul-africano Hugh Masekela no sábado, no início da última noite do Festival Músicas do Mundo (FMM), em Sines, para que respondesse nestes termos. Pouco depois, no entanto, engrenaria numa longa dedicatória a todos aqueles que viajam de comboio de vários países africanos para trabalhar na exploração mineira do ouro em Joanesburgo, frequentemente em condições sub-humanas. E Masekela, passando lentamente do spoken word para um jazz inflamado de funk, simulou incontáveis vezes o apito de um comboio em marcha sempre que a boca fugia da trompete.

O FMM de 2012 foi, na verdade, muitas vezes isto: um encontro entre reivindicações/apelos de contornos políticos e um clima de festa em palco. A festa, portanto, a esconjurar os problemas em fundo. E também isso torna este festival único: aqui celebra-se e entra-se, nem que seja por uma hora, numa cultura muitas vezes distante.

Já fora assim no primeiro fim-de-semana, com Oumou Sangaré e Bombino, mas a parada subiu ainda mais com dois estratosféricos concertos de Fatoumata Diawara e Jupiter Bokondji. Com a sua orquestra (de instrumentos tipicamente rock, acrescidos de percussões congolesas) Okwess International, Jupiter ofereceu o concerto de que Sines precisava para se despedir em euforia do castelo: hora e meia do bofenia rock do músico congolês, uma música de transe rítmico, sempre empurrada por um andamento endiabrado que não deu descanso à dança entre o público, escolha particularmente acertada para o espectáculo que tradicionalmente incorpora o rebentamento de fogo-de-artifício que marca a despedida de cada FMM.

Arrancando com um Halo menos processado do que aquele que ouvimos em Kinshasa One Two - disco gravado por Damon Albarn com músicos congoleses -, Jupiter aplicou o livro de estilo ocidental aos sons tradicionais do seu país, contou-cantou a sua história de adolescente em Berlim Leste, manifestou a sua desconfiança face à rumba (e assinou uma variação magnífica) e lançou umas quantas tiradas sobre "os que fizeram o país à sua imagem e o deixaram na miséria". No final, não faltou quem se fotografasse com o músico e declarasse este como o concerto que ficará na história do FMM 2012.

Conflitos Norte-Sul

Mas já na quinta-feira, assim que Fatoumata Diawara entrou em palco de vestido tradicional maliano e vistosa guitarra eléctrica nas mãos, o capítulo das memórias gloriosas estava a salvo para o segundo fim-de-semana. "Há conflitos entre o Norte e o Sul do Mali", disse. "Só que eu sou o Norte e eu sou o Sul, como posso dividir-me?". Se, à guitarra, Fatoumata mostrou toda a sensibilidade pop que atravessa o seu reportório na cauda daquilo que Oumou Sangaré inaugurou há 20 anos, de uma beleza sensual e vigorosa tocante, assim que se soltava do instrumento a cantora entregava-se furiosamente a comandar a banda em rebentações rock irresistíveis, facilmente identificáveis pelas cores das tranças de Fatoumata postas a viajar em vertiginoso movimento circular. Se Jupiter deu alimento ao corpo, Fatoumata preencheu-nos a alma.

As boas viagens musicais a África não se ficariam, no entanto, por aqui. Também os Staff Benda Bilili voltaram a entusiasmar com a sua electrizante versão de música de rua de Kinshasa, promovida de Très Très Fort (título do primeiro álbum) a Trop Trop Fort (subtítulo do segundo, a publicar em Setembro). Com a alegria esfusiante que já lhes conhecíamos, voltaram a fazer do palco um lugar privilegiado para uma festa contagiante regada a rumbas adulteradas e capaz de acordar os mortos.

Num capítulo menos explosivo, também os Zita Swoon e Tony Allen produziram maravilhas sem precisar de entrar em modo carrossel desgovernado. Allen apresentou o seu afrobeat desapressado em colaboração com o mestre funk Amp Fiddler, mais uma óptima secção de metais da Escola de Artes de Sines. A soul, o funk e o jazz andaram sempre a cirandar por ali e o concerto ganhou sobretudo por essa recusa em embarcar em delírios explosivos. Exigia aprender a gostar dele e recompensou largamente no final.

O grupo belga liderado pelo ex-dEUS Stef Kamil Carlens provou que a encantadora colaboração em disco com os griots Awa Démé (voz) e Mamadou Kibié (balafon) não foi obra do acaso. Partindo dos blues peculiares de Carlens, expurgados da sua frequente loucura, os Zita Swoon conseguiram esta coisa rara e bela de integrar uma música "estranha" sem comprometer a sua identidade e a dos seus convidados. Uma felicidade simples. Algo que foi explorado de forma mais rude pelo encontro entre o inglês Justin Adams e o gambiano Juldeh Camara no projecto Juju - blues para guitarra eléctrica e violino ritti de uma corda, excelente concerto no horário pós-duas da manhã junto à praia.

Este ano, por força de obras na Avenida de Vasco da Gama, o cenário de fim de noite perdeu muita da envolvência dos anos anteriores, mas permitiu ainda fruir da folk feita rock dos bósnios Dubioza Kolektiv (balcãs modo ska) e dos portugueses Uxu Kalhus, do jazz atmosférico de Neerman Kouyaté e do felizmente inevitável Bailarico Sofisticado.

O contingente europeu e sul-americano, cilindrado pela presença avassaladora dos africanos, dar-nos-ia ainda a pizzica fervida em caldeirão mediterrânico do Ensemble Notte della Taranta, o tango de câmara à la Kronos Quartet dos Astillero e o magnífico canto hipnótico de Mari Boine. Mas neste festival em que, assim que acaba, começa a fazer-se mentalmente a contagem decrescente para o seguinte, 2012 foi, sobretudo, uma deslumbrante viagem a África.

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