O doente do quarto 302

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Há tempos, um amigo mandou-me o seguinte diálogo:

"- Bom dia, é da recepção? Eu gostaria de falar com alguém que me desse informações sobre um doente internado.

- Qual é o nome do doente?

- Chama-se Celso e está no quarto 302.

- Um momento, vou transferir a chamada para o sector de enfermagem.

- Bom dia, sou a enfermeira Lurdes. O que deseja?

- Gostaria de saber a condição clínica do doente Celso do quarto 302, por favor.

- Um minuto, vou ligar ao médico de serviço.

- Daqui é o dr. Losa. Em que posso ajudar?

- Bom dia, dr. Precisava que alguém me informasse sobre a saúde do Celso, internado há três semanas no quarto 302.

- Só um momento, que eu vou consultar a ficha do doente. Hum! Aqui está: alimentou-se bem hoje, a pressão arterial e o pulso estão estáveis, responde bem à medicação prescrita e vai ser retirado da monitorização cardíaca amanhã. Continuando bem, o médico responsável assinará a alta em três dias.

- Ah, graças a Deus! São notícias maravilhosas! Que alegria!

- Pelo seu entusiasmo, deve ser alguém muito próximo, certamente da família!?

- Não, sou o próprio Celso, a telefonar aqui do 302! É que toda a gente entra e sai deste quarto e ninguém me diz nada. Eu só queria saber como estou..."

A princípio, pensei tratar-se de um diálogo-limite, que decerto nunca ocorreria na própria realidade, mas que incentivava a pensar as relações médico-doente. Entre o divertimento e o espanto, mandei-o a uma "verdadeira" médica de família. Na volta do correio, escreveu o que não esperava ler: o diálogo não era assim tão inverosímil, pois ela própria já fora contactada por doentes "seus" internados no hospital que lhe solicitavam o favor de averiguar o que se passava, porque ninguém no hospital os elucidava convenientemente. E era isso mesmo que fazia junto dos colegas, exercendo uma função de "intermediária".

A recente greve dos médicos fez-me de novo pensar neste diálogo: sem um bom Sistema Nacional de Saúde - que, como ouvi uma vez ao professor Sakellarides, deveria ser caracterizado como pré-pago (pelos impostos de cada um) e não como tendencialmente gratuito -, como evitar estas situações? Um bom SNS implica a existência de médicos motivados para colocarem em primeiro lugar a saúde e o bem-estar do doente. Para isso, precisam de uma boa formação clínica e bioética, mas também de carreiras dignificadas. Não se consegue ter bons profissionais, seja em que área for, se os tratarmos a pontapé. Se ainda muitos se queixam, penso que com razão, de as faculdades de Medicina tenderem a dar mais importância ao modelo estritamente biomédico ou de fisiologia patológica, em vez de incentivarem a abordagem biopsicossocial, não é decerto com a degradação e burocratização das carreiras que estes males se alterarão.

Por outro lado, sem com isto diminuir a importância de outras especialidades, saliento a importância do médico de família. Sherwin B. Nuland (1930), famoso cirurgião norte-americano, avaliando os seus 30 anos de prática médica, assumiu em How we Die? que, a maior parte das vezes, fora mais um técnico do que aquele "médico de família" do Bronx da sua infância, que conhecia os doentes pelo nome e que mais os curava pelo seu sorriso e confiança que inspirava do que pelos medicamentos que prescrevia. Foi esse médico do Bronx quem mais o inspirou, era com ele que se queria parecer, quando crescesse, mas não o conseguiu. Deixou-se seduzir pelo que denomina de "Enigma", o avançar cada vez mais no conhecimento da doença, independentemente do doente, ou mesmo em detrimento do seu "tratamento humano". Dos oncologistas, por ex., diz que são dos médicos mais decididos e dispostos a "tudo", mas que "raramente chegam a compreender realmente a natureza espiritual dos seus doentes ou a sua resposta subjectiva à ameaça permanente que pesa sobre eles".

Para Nuland e muitos outros, "a base de todo o sistema de saúde" deve ser a medicina familiar e os cuidados primários. Vamos a isso?

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