Torne-se perito

Nunca ninguém viu o gelo da Gronelândia derreter tão rápido

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Superfície da Gronelândia a derreter a cor-de-rosa-escuro e claro a 8 de Julho (à esquerda) e a 12 de Julho (à direita). Em baixo, parte do glaciar Petermann a desprender-se da ilha a 16 de Julho NASA

A superfície do glaciar da Gronelândia estava a derreter a 12 de Julho. Não é uma catástrofe, a calote não desaparece num dia e até pode ser uma situação isolada. Mas os cientistas temem que seja mais uma consequência das alterações climáticas

Não é o apocalipse, mas todos os olhares focaram-se na Gronelândia depois de, ontem, a NASA anunciar que quase toda a camada superficial de gelo da maior ilha do mundo tem estado a derreter a um ritmo nunca antes observado. O fenómeno, que aconteceu em apenas quatro dias, terá sido provocado por uma excepcional massa de ar quente situada por cima do Árctico. Nunca se tinha observado nada parecido antes, apesar de haver registos na calote de gelo que denunciam que esta não é uma situação inédita e já aconteceu no passado. E não se sabe se o derretimento vai continuar a ser tão acelerado durante o resto do Verão, ou se a temperatura vai descer levando a que esta tendência se inverta. Mas os cientistas questionam-se sobre as consequências deste derretimento que poderá estar associado às alterações climáticas.

Tudo começou na semana passada, quando Son Nghiem estava a analisar dados de radar. O cientista trabalha no laboratório Jet Propulsion da NASA, a agência espacial dos Estados Unidos, em Pasadena, na Califórnia, e dedica-se, entre outras coisas, a estudar os dados da monitorização remota das calotes de gelo da Terra.

Quando analisava os dados do satélite Oceansat-2, apercebeu-se que, a 12 de Julho, a Gronelândia estava a sofrer um derretimento impressionante do gelo numa área enorme. "Era tão extraordinário que primeiro questionei aqueles resultados: será que eram reais ou eram um produto de um erro de dados?", lembra o cientista num comunicado da NASA. Os dados confirmaram-se: entre 8 de Julho e 12 de Julho, a área de gelo que estava a derreter passou de 40% para 97%.

A Gronelândia, uma região autónoma da Dinamarca, é a maior ilha da Terra (a Austrália é um continente), tem 2,1 milhões de quilómetros quadrados, cerca de um quarto da área do Brasil. Destes, 1,7 milhões de quilómetros quadrados estão cobertos de gelo que se acumulou ao longo de centenas de milhares de anos. É uma enorme calote que, no seu pico, atinge os três quilómetros de espessura e tem um volume de 2,85 milhões de quilómetros cúbicos. Só a Antárctica ultrapassa este volume de gelo que está assente em terra. Se toda esta água congelada da ilha derretesse e se diluísse nos oceanos, o nível médio do mar subiria 7,2 metros, inundando cidades costeiras um pouco por todo o mundo.

Todos os anos, durante o Verão árctico, as temperaturas sobem o suficiente para parte da superfície desta calote de gelo se derreter. Mas numa vastíssima área o ar não aquece o suficiente para que haja fusão das neves e dos gelos. Por outro lado, muito do gelo que se funde nunca alcança o mar e acaba por voltar a congelar quando as temperaturas baixam.

Por isso, a área de derretimento de 40%, registada a 8 de Julho, já era considerada um pico para o Verão. Esta fusão tem sido suficientemente grande para que, ano após ano, a Gronelândia perca mais gelo que se funde durante a estação quente do que ganha gelo durante o Inverno. "Tem havido uma perda de gelo acentuada", diz Gonçalo Vieira, investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, que é especialista no estudo de glaciares. "O que aconteceu foi uma fusão anómala da massa de gelo da Gronelândia. A película superficial de gelo fundiu muito mais nas últimas semanas", explica ao PÚBLICO. "É surpreendente porque este fenómeno nunca tinha sido observado desde os dados de satélite. Mas não é um sinal apocalíptico", afirma.

Jay Zwally, um glaciologista da NASA, também está perplexo. "Tem havido alturas em que o derretimento ocorreu brevemente em locais a grandes altitudes - durante um dia -, mas cobrir toda a Gronelândia é desconhecido, pelo menos desde que temos registos de satélite", disse o cientista ao jornal britânico Guardian.

Não se sabe que quantidade de volume de gelo é que a Gronelândia vai perder este ano. A temporada quente vai a meio e pode haver uma inversão das condições climatéricas. Este derretimento específico está associado a uma massa de ar quente que se instalou por cima da ilha a 8 de Julho e que se afastou a 16 de Julho. Mas não se sabe se é simplesmente um fenómeno muito raro ou é mais uma consequência das alterações climáticas provocadas pelo aumento da emissão dos gases com efeito de estufa.

As colunas de gelo perfurado na Gronelândia, que são analisadas pelos cientistas, mostram que este fenómeno não é único. A última vez que houve um derretimento tão abrangente foi em 1889, há exactamente 123 anos. Os cientistas verificaram que estes episódios raros acontecem em intervalos de tempo médio de cerca de 150 anos. Neste contexto, o que se passou há quase duas semanas não está desfasado deste ciclo. Mas Gonçalo Vieira tem dúvidas: "Pode ser um episódio desse tipo [raro e cíclico], mas a minha opinião é que é um acumular de fenómenos ligados ao aquecimento global."

Há menos de duas semanas, um grande pedaço de gelo com 120 quilómetros quadrados, ou seja, maior do que a cidade de Lisboa, separou-se do glaciar Petermann, um dos maiores da ilha. Enquanto a fusão da superfície do glaciar está relacionada com as temperaturas da atmosfera, o desprendimento de pedaços de icebergs é fruto de um aquecimento que se está a verificar nas águas do oceano Atlântico.

Mas, para Tom Wagner, cientista do programa sobre criosfera da NASA, estes dois eventos fazem parte uma "história complexa" da Gronelândia que só agora se começa a conhecer. "As observações de satélite estão a ajudar-nos a compreender como é que estes fenómenos se relacionam entre si assim como com o sistema climático envolvente", explica o cientista num comunicado da NASA.

Gonçalo Vieira explica-nos que até há pouco tempo pensava-se que os glaciares eram muito mais resistentes às alterações climáticas e que as transformações que se davam neles eram em escalas superiores às da vida humana. Mas a monitorização e os modelos mais recentes estão a mostrar que as mudanças podem ser muito mais rápidas e imprevisíveis. Um dos projectos do especialista é no arquipélago de Svalbard, que pertence à Noruega e fica ainda mais perto do Pólo Norte do que a Gronelândia. Nestas ilhas, Gonçalo Vieira estuda o derretimento do permafrost, a parte do solo que está congelada. Esta fusão, que está também a ser provocada pelas alterações climáticas, tem o potencial de libertar uma quantidade de gases com efeito de estufa enorme que pode acelerar ainda mais as mudanças climáticas.

O cientista português refere ainda que nos últimos anos há uma tendência para um aumento da percentagem da área que se derrete na superfície da calote de gelo da Gronelândia. É uma tendência paralela com outras como a diminuição da área de gelo do Pólo Norte, que está sobre o oceano, e que tem atingido picos mínimos, abaixo da média das últimas décadas, no final do Verão.

Os efeitos deste derretimento episódio que se deu a 12 de Julho são difíceis de antecipar, mas, a longo prazo, o degelo pode ter consequências não só no aumento do nível médio do mar como pode alterar as correntes marítimas como a corrente quente do Golfo, que traz um clima temperado para a Europa. Mas as consequências exactas são muitos difíceis de se prever, explica o cientista: "O aquecimento global está aí e não é de hoje para amanhã que se vai conseguir travar." Que o diga a Gronelândia.

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