Chimamanda Ngozi Adichie ainda não tinha 20 anos quando apanhou um avião rumo aos EUA. Foi lá que publicou pela primeira vez o seu primeiro romance, A Cor do Hibisco. O dom, esse, vem de longe e de um tempo em que ainda não cruzara oceanos e só conhecia um país - a Nigéria - seu e de mais de 160 milhões de habitantes. Sempre soube que queria ser escritora, costuma contar.
Cresceu a falar igbo. E para ela, essa é "uma língua mais emocional", uma em que de forma menos definitiva se fala da morte de alguém que não podíamos ter perdido (como acontece com uma das suas personagens). Mas o inglês, sendo a língua oficial da Nigéria e a única língua de estudo, tornou-se naturalmente, para ela, "a língua das ideias", diz ao Ípsilon. Hoje, com 35 anos, partilha o tempo entre esses dois lados do Atlântico (e dois hemisférios). "Gosto da América. Gosto de viver parte da minha vida na América. Mas não sou americana e nunca serei. Ser americano é uma sensibilidade e a minha sensibilidade é decididamente nigeriana."
Num lado, o americano, nutre o sonho da escrita mantendo a ligação à universidade. No outro, o nigeriano, está, com uma organização sem fins lucrativos, a tentar construir bibliotecas e a refazer as que estão em ruínas. São duas vias de uma mesma obra - para que as histórias existam para as pessoas.
As histórias interessam; muitas histórias sobre um mesmo país, uma mesma cultura, interessam ainda mais, dirá depois.
Nada é só preto ou só branco. A sombra é o seu elemento.
Entre os novos talentosAlgo de íntimo e vagamente familiar atravessa a sua escrita e paira de forma subtil, mas intensa, nas personagens que povoam o livro de contos agora editado pela D. Quixote, A coisa à volta do teu pescoço (The thing around your neck, 2009).
A vários estados pode ser levado o leitor perante a sugestiva imagem do título do livro (título de uma das 12 histórias que o compõem mas que podia afinal pertencer a muitas delas). Muitos desses estados estão lá - culpa, luto, humilhação, melancolia - de uma forma ou de outra. Mas, mais uma vez, nada é só preto ou só branco. Também há a magia discreta de encontros inesperados entre seres solitários; a serenidade face às decepções que crescem com o avançar da idade e da vida; ou o respeito por si próprio e pelo outro, a generosidade em situações de violência (física ou psicológica) limite.
Em 2010, a revista New Yorker incluiu Chimamanda Ngozi Adichie na lista dos 20 melhores escritores do mundo com menos de 40 anos. Nessa altura, a autora (que também escreveu uma peça de teatro e livros de poemas) já tinha publicado o livro de contos agora lançado em Portugal e os dois romances premiados e acolhidos com entusiasmo pela crítica (anglo-saxónica primeiro) de vários continentes: Purple Hibiscus (2003) e Half of a Yellow Sun (2006) - A Cor do Hibisco e Meio Sol Amarelo, ambos editados em português pela Asa.
Também a ela foi pedido, pela mesma revista, que elegesse os seus autores preferidos, mas com mais de 40 anos. Entre eles: Jamaica Kincaid, Ian McEwan, Ama Ata Aidoo, Toni Morrison, Philip Roth, José Eduardo Agualusa, Mary Gaitskill. E Chinua Achebe.
É à luz deste grande nome da literatura nigeriana, fundador da literatura moderna africana (foi vencedor do Man Booker Prize International em 2007) que alguns críticos começam a medir a importância que Chimamanda pode (vir a) ter. Como alguém com a mesma aura, e o mesmo dom.
Chimamanda diz que foi graças a autores como Achebe que começou a acreditar que mulheres como ela - "com a pele cor de chocolate e o cabelo crespo" - também podiam ser escritoras. E ela podia sê-lo, falando do que reconhecia, ou seja, do mundo à sua volta, porque a literatura não tinha de vir num só sentido - do Ocidente.
É uma colecionadora de afectos (e de prémios literários em língua inglesa) e portadora de uma "curiosidade infinita" da vida dos outros, como ela própria diz. "Adoro coleccionar histórias", diz. "Adoro andar a escutar às portas." Depois de coleccionar as histórias das pessoas que não se cansa de ouvir "com muita atenção", dedica-lhes tempo. Esse é o seu segredo.
É importante o ritmo de cada frase e a escolha de cada desejada palavra. "Respeito muito a boa prosa poética", sintetiza nesta entrevista.
À revista New Yorker, identificou "a emoção" como o que melhor define uma boa ficção. Por outras palavras, diz estar perante uma boa ficção quando um livro é capaz de a fazer mover-se numa determinada direcção e de tocar algo dentro dela que só raramente é tocado. Ela faz aos seus leitores o que quer que os livros façam a ela.
Os prémios são, para a autora, importantes. (A Cor do Hibisco venceu o Commonwealth Writers' Prize 2005 e o Hurston/Wright Legacy Award 2004, e foi nesse ano finalista do Orange Broadband Prize e no meado para o Man Booker Prize. Meio Sol Amarelo foi distinguido com o Orange Broadband Prize for Fiction em 2007, prémio literário britânico para a melhor obra de ficção escrita por uma mulher em inglês.) Mas especialmente gratificante é também ouvir da boca das pessoas - como aconteceu com uma nigeriana que a abordou em público - que as personagens dos seus livros podiam ter seguido este ou aquele caminho. Esta leitora "não só leu o livro como se apropriou dele", disse Chimamanda numa conferência nos EUA em 2009. "E isso não só me encantou como me comoveu."
Pontos de contactoEm igbo, o seu nome significa O meu deus não cairá. Mas será isso importante?Quem conhece parte da biografia de Chimamanda é levado a identificar pontos em comum com um certo tipo de personagens destas histórias (mulheres da diáspora nigeriana nos EUA, estudantes, solteiras ou casadas e mães de família); de episódios em que as mesmas olham o país de acolhimento, os EUA, com o filtro e a clarividência de quem vem de um outro, a Nigéria, e se descobrem muito mais pertencentes à Nigéria ou a África do que pensavam; de lugares (como Nsukka, onde cresceu, no coração do Biafra, cuja guerra foi tema do seu segundo romance Meio Sol Amarelo e é evocada em fundo numa ou duas histórias). Ou ainda de circunstâncias de pessoas que se humanizam perante a desumanização de um regime militar ou face ao fanatismo religioso visível nos ataques de muçulmanos haúças contra cristãos igbos e na vingança assassina a que estes, também por vezes, se entregam.
A escritora nasceu em 1977 numa família católica e a religião era, para ela, muito importante, em criança, diz na entrevista ao Ípsilon. "Hoje considero-me uma pessoa que respeita a religião e que reconhece que [ela] pode ser uma força para o bem, mas que também pode facilmente fazer uma pessoa perder a sua humanidade."
Contos como Cela Um, A Embaixada Americana ou Fantasmas mostram como as práticas de algumas ditaduras (como a do general Sani Abacha, no poder entre 1993 e 1998) podem devastar a vida de uma pessoa ou de uma família e não apenas da sociedade como um todo.
Tecendo essa tela política, o que ganha relevo é o lado humano das personagens - como combatem a solidão ou refazem as suas vidas - a sua nostalgia de um tempo imerso em possibilidades, a sua difícil conciliação entre aceitar a tradição e procurar a felicidade.
Estará o Profe, narrador sem nome de Fantasmas, a morrer aos poucos? Em Cela Um, o gesto nobre de arriscar a vida para impedir que um velho seja humilhado pelos guardas prisionais, vem de quem menos se espera - do imaturo Nnamabia.
Imitação conta como Nkem, uma mulher jovem, na chegada promissora aos EUA, se sente ausente com a ausência cada vez mais frequente - e a vida dupla que o marido mantém na Nigéria. Será a sua história uma forma de dizer que há sempre sofrimento e perda de uma parte de si para quem escolhe deixar o seu país? "Prefiro deixar os leitores chegarem às suas próprias metáforas", responde Chimamanda.
Como ela, algumas das suas personagens tomam consciência da sua identidade africana através do olhar do outro, nos Estados Unidos.
"A ideia de uma identidade africana é algo em que nunca tive que pensar quando cresci na Nigéria. Na América, porém, tornei-me subitamente africana, porque era como era vista [pelos outros]", salienta nesta entrevista.
Chimamanda Ngozi Adichie nasceu em Enugu, cidade do Biafra, estado secessionista criado entre 1967 e 1970 e palco de uma guerra que deixou mais de meio milhão de mortos. Cresceu em Nsukka a ouvir histórias da guerra, então há muito terminada. E com o seu segundo romance Meio Sol Amarelo quis mostrar que há mais, em África ou no Biafra, do que desgraça e morte, mesmo no coração de um conflito. Quis contar as várias camadas de uma mesma história, de um país, para combater "o perigo de uma única história" - que leva as pessoas "a olhar um continente inteiro pelas estreitas lentes da catástrofe", diz.Estranho acaso: as respostas da autora chegam num dia de Julho em que, segundo as notícias, um camião-cisterna explodiu em Port Harcourt e 100 pessoas perderam a vida. As catástrofes acontecem, mas também há o pulsar da vida, de uma multidão, que vive no país e que, com elas, nunca se cruzam.
As suas personagens insinuam-se, ganham vida à nossa frente. Uma melancolia latente envolve muitas delas - como uma tentativa de escapar a uma infelicidade à espreita.
Vivem entre a Nigéria e os EUA (como a própria autora) ou só num desses países. Mas podem pertencer a qualquer lugar - desde que saibam olhar profundamente a sua condição ou tenham alguém por perto que o faça por elas.