No centenário de Milton Friedman

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Milton Friedman, tal como Adam Smith, olha para a economia do ponto de vista do chamado homem comum

Milton Friedman faria cem anos no próximo dia 31 de Julho, tendo falecido em Novembro de 2006. Niall Ferguson, o célebre historiador de Harvard, Oxford e Stanford, dedicou-lhe uma sentida homenagem na revista britânica The Spectator de 14 de Julho. Entre nós, João César das Neves acaba de prefaciar uma nova edição portuguesa de Liberdade para Escolher, a famosa obra de Milton e Rose Friedman, dada à estampa há menos de um mês pela editora Lua de Papel.

Já tudo terá sido dito sobre Milton Friedman, embora a sua obra continue a ser pouco ou mal conhecida. A verdade, todavia, é que muitas das suas ideias fizeram o seu caminho imperceptivelmente, enquanto no geral a sua doutrina continua a ser alvo de grandes mal-entendidos.

O maior mal-entendido é talvez semelhante ao que ainda hoje rodeia a obra de Adam Smith. Os dois autores são retratados como irredutíveis defensores do capitalismo, o qual é em seguida identificado com um individualismo egoísta, insensível à sorte dos mais desfavorecidos e destituído de qualquer preocupação com o bem comum.

A verdade, todavia, é quase o oposto. Milton Friedman, tal como Adam Smith, olham para o funcionamento da economia do ponto de vista dos muitos, do chamado homem comum, e não do ponto de vista dos poucos que possam deter vantagens herdadas ou obtidas por favores políticos. E o seu argumento central consiste em dizer que a troca livre em regime de concorrência é o sistema que mais favorece a elevação do nível de vida do maior número de pessoas.

Em contrapartida, Friedman argumentou, tal como Smith tinha argumentado, que a intervenção directa do Estado na economia gera em regra mais prejuízos do que benefícios. Cria rendas de situação para grupos particulares, artificialmente protegidos da concorrência; aumenta os custos de produção relativamente aos que existiriam em regime de concorrência; e, pelas razões anteriores, gera uma espiral despesista incontrolável pelo homem da rua - ainda que essa despesa seja paga por ele através dos impostos.

Além de tudo isso, a intervenção directa do Estado tende a desmoralizar a ética do trabalho, da poupança e do investimento, a ética da responsabilidade e da iniciativa. Em seu lugar, estimula condutas assentes no compadrio e troca de favores, visando obter vantagens políticas em vez de apostar na oferta de melhores bens ou serviços a preços mais baixos - que possam conquistar a preferência livre dos consumidores.

É um paradoxo intrigante que estes argumentos de Friedman possam ser identificados com egoísmo e indiferença pelo bem comum. Este paradoxo acentua-se no momento actual, quando a insustentabilidade da despesa e da dívida dos Estados é atribuída a alegadas políticas neoliberais, identificadas com Milton Friedman. E o paradoxo atinge o absurdo quando políticas de austeridade fundadas na subida dos impostos são também acusadas de neoliberais.

Como muito bem recordou Niall Ferguson no artigo de The Spectator, Milton Friedman ficaria incomodado com a confusão gerada actualmente pela dicotomia entre "austeridade e crescimento". Ele dificilmente poderia apoiar qualquer delas, enquanto nenhuma delas atacasse frontalmente o desperdício e despesismo produzidos por gigantescas organizações estatais artificialmente protegidas da concorrência. Também não poderia aceitar que a ausência ou debilidade dessas medidas procurasse compensação na subida da carga fiscal sobre os cidadãos e as famílias.

Como escreveu João César das Neves no prefácio a Liberdade para Escolher, "os problemas e diagnósticos que este livro discute continuam vivos e as suas observações e comentários permanecem relevantes e válidos. Não aprendemos nem melhorámos significativamente quase nenhuma das dificuldades que eram visíveis nos finais dos anos 1970. (...) Na generalidade dos países, as queixas pelo mau funcionamento dos serviços públicos são ensurdecedoras e apesar disso eles permanecem e crescem. Os interesses instalados, o poder da burocracia, o enviesamento dos incentivos, que nos trouxe a esta crise, é tão forte em Portugal quanto nos EUA, hoje como em 1980. Isto traz sem dúvida um travo amargo a esta leitura, que se mantém como "um excelente sonho"."

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