Com Connan Mockasin descobrimos em Barcelos o portal para uma outra dimensão

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Connan Mockasin foi uma experiência tão estranha quanto maravilhosa Adelaide Carneiro

Aqui descobrimos, por exemplo, uns impressionantes Lüger, banda espanhola que nos fustiga os ouvidos e acelera as ondas cerebrais com um ataque sónico/psicadélico avassalador, qual encontro surpreendente entre motorika Neu!, detonação Einstürzende Neubauten e minimalismo Suicide – são um portento e devemos correr a comprar-lhes os discos, devemos invadir Espanha, se necessário for, para estar mais perto deles. Antes, quando o sol ainda brilhava forte, fomos apresentados aos Blues Pills, dissidentes dos Radio Moscow que se juntaram a uma mulher com vozeirão blues e que, quando entram em modo jam “Whole lotta love”, nos oferecem os melhores anos 1970 que nunca vivemos.

Mais tarde, tivemos no mesmo palco, o Milhões, a aparição deslocada em espírito e ambiente de El Perro Del Mar: as canções envoltas em neblina electrónica, um pé no lounge, outro no reverberante dub, uma ondulação serena aqui, um sobressalto inquietante ali, não se deram bem com o espaço aberto e, desinteressado o público, desinteressada Sarah Assbring, apesar da expressividade da sua voz e da sua dança ao sabor da música, não sobrou, infelizmente, grande memória do concerto.

Mais tarde ainda, no Palco Vice, confirmou-se que a galáxia dos portugueses Gala Drop é dos melhores sítios que o universo tem hoje para oferecer (não nos foi possível assistir a mais que a sequência final do concerto, mas esse curto excerto e o relato entusiasmado daqueles com quem falámos indicam que sim, que o festim tropical dos Gala Drop, kraut, lava incandescente em delírio sci-fi, space-rock para dança comunal, é nada menos que impressionante). De qualquer modo, quem viu Gala Drop estaria já a habitar naquele momento uma dimensão paralela à realidade palpável. Já referimos o nome Connan Mockasin?

Milhões de Festa. Segundo a organização, os números apurados apontam para que seja superada a expectativa de nove mil espectadores ao longo do festival. Isso era visível, à tarde, na lotada piscina que foi sítio muito cool ao som da música posta a rodar por Moullinex e Xinobi – Smooth operator, clássico de Sade, também passou por lá – e que foi, depois disso, palco para delírio escatológico em rima e atitude dos Bro-X, trupe hip hop desalinhada que não poupa nas palavras. Caída a noite, já no Parque da Cidade, no Palco Vice, observámos o pós-punk esquelético e cortante dos Prinzhorn Dance School, minimalista no formato e no som – baixo e bateria tocando apenas o essencial para que o ritmo se impusesse, guitarra faiscando de electricidade – e de uma tensão constante nas letras gritadas como palavras de ordem. O peso de uma existência urbana castradora vertido em negrume rock aprendido com as valiosas lições de Mark E. Smith ou Wire.

Quando os Prinzhorn Dance School abandonaram o Palco Vice, estava para chegar, no outro extremo do Parque da Cidade, aquilo que classificaremos, por agora, como “o melhor concerto do festival”. De onde veio Connan Mockasin?

O público estava sentado no chão, a banda estava sentada no palco. Connan Hosford, o neozelandês que se esconde por trás do nome Connan Mockasin, com o cabelo louro cobrindo-lhe a cara, mãos na guitarra, era o guru psicadélico comandando a multidão com gentileza e fazendo-a embrenhar-se naquela cascata de sons envolventes: a guitarra flui como líquido, a secção rítmica oferece um “groove” orgânico que inebria os sentidos, os sintetizadores são feitiçaria moderna lançada por um homem que, muito adequadamente, vestia um casaco-túnica que fazia esvoaçar a intervalos regulares. O público, sentado por sugestão de Connan Hosford, haveria de erguer-se quando o vocalista perguntou “shall we have a dance?” Haveria de sentar-se e erguer-se novamente: “O gajo controla-nos, meu!”, diz alguém ao nosso lado. Não era um desabafo. Mera constatação.

O autor de “Please Turn Me Into The Snat” (2009) ou de “Forever Dolphin Love” (2011), lançados pela Phantasy Sound de Erol Alkan, companheiro de digressão de Charlotte Gainsbourg ou de Micachu & The Shapes, não ordena o que quer que seja. Mas vê-lo e ouvi-lo é ser transportado para uma outra dimensão: as canções transbordam umas nas outras, a sua dinâmica é alterada, ora em crescendo de ritmo, ora desaparecendo até ao silêncio. Como que reverso dolente e encantatório de Ariel Pink, o concerto de Connan Mockasin foi uma experiência tão estranha – a sua voz, um quase sussurro em falsete; a banda vestida como em bizarro sonho glam-rock – quanto maravilhosa. Ouvimos “Quadropuss island”, “Egon Hosford” ou, no final, uma longuíssima “Forever dolphin love” em crescendo de intensidade. O êxtase derradeiro num concerto sem regras, totalmente livre. Musicalmente, pela anárquica fluidez das canções, mas não só: alguém que fotografava o concerto deu por si em palco a tocar teclas e a ser fotografado pela estrela da noite. Admirável este mundo de Connan Mockasin revelado este sábado no Milhões de Festa.

Com atrasos consideráveis no horário – mácula num festival com poucas a assinalar -, veríamos ainda esse trio movido a whiskey e riffalhada à Black Sabbath chamado Weedeater: uma voz gutural, um baterista dobrado sobre a bateria como guerreiro viking em acção, um baixo distorcido a comandar as operações e, genericamente headbanging do bom, compassado, pesadíssimo. Não muito depois, já eram quatro da manhã, já os Ghunagangh tinham lançado o seu hip hop apocalíptico, com destinatários definidos – Rui Rio, por exemplo, ouviu das boas -, sobre o público do Milhões; já Publicist começara a pôr a dançar o pessoal que resistia noite fora. Madrugada dentro, porém, subsistia uma voz a ecoar-nos na cabeça. “Forever dolphin love”, repetia em loop.

A quinta edição do Milhões de Festa, terceira em Barcelos, termina hoje. O cartaz inclui Red Fang, Black Bombaim, Alt-J ou L’Enfance Rouge.

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