José Hermano Saraiva, o contador de História

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José Hermano Saraiva à porta de sua casa, por ocasião de uma entrevista ao PÚBLICO, em 2007; em dois dos seus programas televisivos, nas décadas de 1970 e 90; em baixo, na crise académica de 1969, na Universidade de Coimbra, à esquerda do então presidente da ditadura, Américo Tomás NUNO FERREIRA SANTOS

Com a morte do historiador José Hermano Saraiva, aos 92 anos, desaparece um grande divulgador, que ao longo de quatro décadas ressuscitou para os telespectadores da RTP as figuras e os episódios da História de Portugal

Autor do maior best-seller que a historiografia portuguesa produziu no pós-25 de Abril, a História Concisa de Portugal (1978), que teve dezenas de reimpressões e está traduzida em várias línguas, José Hermano Saraiva, que morreu ontem, aos 92 anos, na sua casa de Palmela, foi sobretudo um notável divulgador. Os seus sucessivos programas televisivos sobre temas de História de Portugal cativaram os telespectadores portugueses ao longo de quatro décadas, uma improvável longevidade que só os seus excepcionais dons de comunicador podem justificar.

O historiador trabalhou praticamente até ao final da sua longa vida, e era há muito o último sobrevivente dessa primeira geração de comunicadores da televisão portuguesa, que incluiu nomes como Vitorino Nemésio ou João Villaret. A sua obra historiográfica propriamente dita, marcada por uma visão algo épica do passado nacional, está longe de reunir consenso entre os seus pares, mas ninguém contestará que José Hermano Saraiva contribuiu como poucos para cultivar o interesse pela História junto do português comum. E não deixa de ser curioso que esse talento de comunicador, que fica como a sua imagem de marca, corresponda nele a uma espécie de segunda carreira, iniciada na meia-idade, e quando a televisão portuguesa já levava 15 anos de existência.

José Hermano Saraiva nasceu em Leiria, em 1919, filho de um professor liceal que veio a ser reitor do Liceu Passos Manuel, em Lisboa, e que deixou uma obra sobre os painéis de Nuno Gonçalves. Saraiva dirá em várias entrevistas que tanto ele como o seu irmão António José Saraiva (1917-1993), que viria a tornar-se um dos grandes historiadores da cultura e literatura portuguesas, herdaram do pai a paixão pela História.

Mas não era óbvio que o destino de José Hermano Saraiva fosse o de se tornar historiador. No início dos anos 1940 licenciou-se em Histórico-Filosóficas e depois em Direito, tendo exercido advocacia durante várias décadas, ao mesmo tempo que dava aulas. E a sua estreia pública até foi como ficcionista, com o livro Vento Vindo dos Montes, publicado em 1944, quando tinha 25 anos. É possível que lhe tenha ficado dessa malograda carreira de romancista a convicção de que uma boa história exige protagonistas interessantes. É, pelo menos, essa a estratégia que depois irá seguir nos seus programas televisivos: tentar dar vida às figuras do passado, humanizando-as através do relato de pequenos episódios, e nem sempre edificantes, que vai cruzando com perspectivas mais gerais dos contextos históricos em causa. E nisso, apesar da sua nunca desmentida adesão aos ideais do Estado Novo, afasta-se de uma certa solenidade respeitosa com que a típica historiografia salazarista tendia a tratar os "grandes vultos" da história lusa.

De ministro a ícone da TV

Admirador incondicional de Salazar, exerceu vários cargos públicos antes do 25 de Abril: foi deputado da União Nacional, procurador à Câmara Corporativa, dirigiu o Instituto de Assistência aos Menores e, em 1968, chegou a ministro da Educação. O seu papel na crise académica de 1969 (ver texto ao lado), o momento mais vezes lembrado, e criticado, da sua carreira pública no anterior regime, levou Marcello Caetano a demiti-lo, substituindo-o por Veiga Simão. Mas deve-se-lhe, enquanto ministro da Educação, uma medida que teria consideráveis consequências para a cultura portuguesa: o arrolamento do espólio de Fernando Pessoa (ou de parte dele, como depois se veio a saber), que estaria então em vias de ser vendido para o estrangeiro.

É a partir desta altura que José Hermano Saraiva, que já publicara um bom número de trabalhos jurídicos, irá dedicar-se mais exclusivamente à investigação e divulgação da História de Portugal. Em 1971, estreia-se na RTP com o programa O Tempo e a Alma, que terá curta duração, já que Marcello Caetano, que não apreciaria especialmente as suas prestações televisivas, o nomeia, em 1972, embaixador de Portugal em Brasília, funções nas quais ainda se manterá durante algum tempo já depois do 25 de Abril de 1974.

O regresso à RTP

Regressado a Portugal, volta a dar aulas e publica uma série de obras historiográficas, como a já citada História Concisa de Portugal, Outras Maneiras de Ver: Temas Portugueses (1979) ou Os Factos Essenciais da História de Portugal (1983). Dirige ainda, para as edições Alfa, uma História de Portugal em seis volumes. Um dos seus livros que causaram maior polémica foi Vida Ignorada de Camões (1980), no qual recorre abundantemente a excertos da obra poética de Camões para deles retirar discutíveis extrapolações biográficas.

Após o 25 de Abril volta também à RTP, onde manterá uma série de programas de divulgação da História de Portugal, como Histórias Que o Tempo Apagou, Lendas e Narrativas, Horizontes da Memória e A Alma e a Gente. Comunicador à moda antiga, falando de improviso, sem teleponto ou outros auxiliares, e fazendo-se geralmente filmar nos locais onde tinham decorrido os episódios que narrava, ou vivido as figuras evocadas, José Hermano Saraiva tinha um inegável talento para captar a atenção de quem o via e ouvia. Facilitado, é certo, pelo tipo de abordagem que fazia da História, mas que também se devia a uma capacidade natural de criar empatia com os telespectadores.

Se a evolução da historiografia portuguesa contemporânea deve seguramente bastante mais a outros autores, a verdade é que nenhum historiador português das últimas décadas terá alcançado uma tal notoriedade pública.

O seu funeral parte hoje para o cemitério de Palmela, após uma missa de corpo presente que será celebrada, às 14h, no Convento de Jesus, em Setúbal.

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