Uma manhã perdida no comunismo, uma tarde ganha na revolução

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DANIEL ROCHA

Uma Manhã Perdida é uma viagem à Roménia antes de ser comunista - um lugar mágico que Gabriela Adamesteanu não chegou a conhecer - e ao que lhe aconteceu depois. Um mundo misterioso, que a Europa ainda não se aventurou a explorar.

O primeiro olhar de Gabriela Adamesteanu vai para a edição portuguesa de Uma Manhã Perdida. A escritora de 70 anos acaba de chegar de Bucareste para promover um livro que escreveu em 1984 e só agora conhece a edição portuguesa. Pega no volume e explica a fotografia escolhida para a capa: uma mesa de chá, cinco figuras, uma pose de quadro de fim de século XIX. "Esta foto é um pouco misteriosa para mim. Estava na casa de uma amiga da minha família, uma mulher que eu considero como uma segunda mãe. O ambiente, as pessoas, o posicionamento de cada uma delas, o enquadramento inspiraram-me no arranque do livro." Fica fácil começar uma conversa com uma escritora que cresceu durante o regime comunista e quis contar a história recente da Roménia num livro que se passa numa manhã. Uma viagem a um passado mágico, esse tempo de não-comunismo que sobreviveu a Ceausescu e continua aí, em plena desilusão pós-revolucionária. Pontuada por tantos sorrisos e silêncios, esta conversa anda à volta dos mistérios e dos desencantos de um país que permanece na sombra para a maioria dos europeus, mas que se diz tão europeu quanto eles.

O mistério da fotografia da capa é um pouco aquele que persiste à volta da Roménia, 22 anos depois da morte de Ceausescu...

Sim. Tenho essa percepção de cada vez que saio. Descubro que há muito pouco conhecimento e quase sempre baseado em estereótipos, geralmente ligados a todo o tipo de infracções. Temos duas grandes figuras: Ceausescu e Drácula. E, pelo lado positivo, Nadia Comaneci. É tudo. É um país com uma história muito rica, mas desconhecida. Por isso olham-nos como pertencendo a um outro mundo. Sempre que vou a França, por exemplo, há comentários que se repetem: a ideia de que venho de um país muito frio e que fica muito longe (risos). Mas não é assim tão frio nem tão distante. Fica apenas a duas horas de avião de Paris.

A ditadura comunista explica esse desconhecimento?

É a explicação mais simples, e é verdadeira. O país esteve bastante isolado logo após a Segunda Guerra Mundial, uma época de grandes trocas e aproximações entre a maioria dos países da Europa Ocidental, que se uniram numa espécie de grande nação. Embora fosse conhecido fora da Roménia, Ceausescu utilizava no país métodos de governação muito estalinistas, que impediam a circulação das pessoas e mantinham o país muito fechado. Quem saía não voltava. Os países mais próximos, como a Polónia ou a Hungria, eram bastante mais abertos. Mas essa não é a única explicação, e as outras são um pouco mais difíceis de compreender. Fui jornalista durante muitos anos. Fui-me dando conta de que muitos jornalistas ocidentais que visitavam a Roménia durante dois ou três dias a descreviam como se a conhecessem profundamente, tirando conclusões precipitadas que apresentavam como definitivas nos seus países. Como se já tivessem um título e quisessem confirmá-lo em dois dias. Mas a Roménia é um país complicado, fracturado, com províncias diferentes, histórias diferentes, tempos diferentes.

Os grandes culpados da imagem que temos da Roménia são os jornalistas ocidentais?

Não. A Roménia é a principal culpada, por existir essa falta de comunicação com o exterior: isso deve ser assumido. A Roménia ainda não foi capaz de se comunicar. Estamos ainda a pagar o preço da imagem que a Roménia deixou passar. Por outro lado, houve imagens que saíram e que são muito difíceis de apagar, como as dos orfanatos do Estado, cheios de crianças abandonadas por causa de um regime que era absolutamente contra o aborto.

Este livro tem quase 30 anos. O que persiste do ambiente que descreve?

Vivemos um tempo de decepção. Vinte e dois anos após a revolução, há uma crise - económica, social. É uma depressão que em parte é um pouco exagerada, porque se olharmos de certa perspectiva podemos estar contentes. Há uns anos era impensável a Roménia fazer parte da União Europeia (UE). Escrevi Uma Manhã Perdida e foi como se ganhasse a tarde com a revolução. Estamos no início desse processo - numa altura de crise europeia, é certo, mas somos europeus, mesmo que a Europa a que pertencemos nos conheça muito mal.

A França continua a ser um modelo a seguir pelos romenos?

Já foi assim, mas deixou de ser verdade. E também aqui a Roménia não é caso único. No início do século passado, as famílias mais abastadas falavam francês, como se pode ler no meu romance, agora é o inglês que dita as regras. Mas foi Napoleão III a ditar o modelo de construção da Roménia moderna, algo quase impensável à época. Há três grandes províncias difíceis de se ligarem entre si; é a herança da Roménia, por ter nascido no cruzamento de três grandes impérios, o turco, o russo e o austro-húngaro. A França jogou aqui um jogo diplomático importante e o modelo persistiu. A Roménia sempre viu o Ocidente como o exemplo, não o Leste.

Bucareste continua a querer "copiar" o charme de Paris?

Há os quartiers e as ruas que restam dessa aspiração: as que foram construídas durante o regime, as que surgiram entretanto, e no meio de tudo muitas ruínas. É uma cidade muito desigual, sem harmonia, marcada pelos imóveis construídos durante uma industrialização forçada para albergar a população obrigada a vir para a cidade. Vai ser necessária muita paciência para que Bucareste recupere o seu charme.

Escolheu a voz de uma mulher velha, pobre, para contar a história do país. Como chegou a Vica?

É a personagem mais forte que criei em toda a minha vida de escritora. Nasceu há 28 anos e estou quase sempre a ser solicitada para falar dela. O meu tradutor francês apaixonou-se por ela porque viu ali uma mulher universal. Dizia-me ele que em todos os países há uma Vica. Mas como os jornalistas devem zelar pelas suas fontes também acho que o escritor pode guardar o segredo acerca das suas personagens mais produtivas. Revelar tudo sobre esta mulher não lhe ia fazer nada bem.

Tudo seria diferente se a voz fosse a de uma mulher sofisticada.

Para mim a Vica é uma personagem trágica. Ela faz rir, a voz é a de uma personagem cómica, mas ela não é. Pergunto-me se ela ainda existirá. Ela é muito conhecida na Roménia e de vez em quando há alguém que me conta a história de uma determinada mulher dizendo: "ela fez ou ela é como a tua Vica". Há costumes, gestos - não tanto as palavras... A linguagem muda mais do que o comportamento. Hoje, no entanto, podem encontrar-se todos os problemas que a Vica tinha. Pessoas que saíram das dificuldades do comunismo e regressam a uma situação económica que não é fácil.

A desilusão trouxe alguma nostalgia dos tempos de Ceausescu?

Não, ainda que as pensões sejam baixas e o Estado esteja sem dinheiro. Há muitas pessoas a viver muito mal e muitos jovem a procurar trabalho fora. As cidades estão habitadas por uma população envelhecida. A maior vaga de emigração que a Roménia enfrentou foi nos últimos anos, depois da queda de Ceausescu; é a primeira vez que sai uma população de classe superior, e os que saem já não voltam. Muitas casas ficaram sem proprietários e entraram em ruína. Outras foram vendidas por quem saiu, alimentando a especulação imobiliária. Essa ruína esta tratada no livro através da casa do professor Mironescu. Tantas casas estão a conhecer ou conheceram o mesmo tipo de abandono. Estamos a assistir à segunda destruição de Bucareste depois da queda de Ceausescu.

Voltemos a Vica e ao seu passeio pela Roménia. As memórias desta mulher mais velha, que não cresceu no comunismo, não são as suas...

Quando escrevi Uma Manhã Perdida não sabia o que era não viver no comunismo. Para mim, o que existira antes do comunismo era uma espécie de lugar mágico. Esse tempo foi destruído, e não apenas pelo tempo. No livro tento encontrar outro sentido para os acontecimentos que não vivi devido à minha idade, mas também à interdição de ir até ao passado. O comunismo via-o como algo que não devíamos conhecer. Devíamos olhar sempre em frente. O futuro era tudo, o passado nada. Mas cresci no meio de pessoas que lidavam com o passado, uma família de historiadores. O meu pai era professor de História e essa tradição era muito forte em mim. Durante um período pude recriar a História todos os dias.

Mas não resistiu ao presente. Foi jornalista.

A minha vida como jornalista começou depois da mudança política, mas já terminou.

Porque? Não há magia no presente?

Sim... Depois de 2007, com a Roménia na UE, o sonho realizou-se, mas começou a realidade, que não é bem como no sonho. E o jornalismo, apesar de necessário, dá uma leitura muito superficial da realidade. Prefiro ir mais ao fundo das coisas...

Acha que a literatura pode fazer algo pelo futuro da Roménia?

A literatura tem a capacidade de dar o sentido de evasão. Isso é importante.

Quanto tempo demorou a escrever o livro?

Eu trabalhava numa editora e não tinha muito tempo. Por isso larguei e voltei a pegar várias vezes no livro; no conjunto, uns oito anos. Fui pensando muito no livro. Descobri muitas coisas. Escrever um livro é uma grande aventura. Às vezes descobre-se no fim que apenas se perdeu tempo.

Como vê o livro agora?

Fui muito feliz e tive muita sorte com o livro, e o livro teve muita sorte porque continua vivo e de boa saúde, continuamos a falar dele. Está traduzido em 11 línguas. Quando o escrevi não pensei sequer que fosse possível traduzi-lo. Se pensasse talvez não tivesse posto tantas complicações estilísticas na personagem. Muita coisa permanece intraduzível. Cada personagem fala de forma diferente. Aprendi muito acerca desse falar e de todas as alterações que a fala sofreu nos utimos 60 anos: o modo de contar memórias, de as fazer passar. Não é possível passar isso numa tradução, por melhor que ela seja.

Desde então a sua escrita simplificou-se?

Mudamos de um livro para o outro. Não sei se escrevo de forma mais simples, sinto-me a mudar. Somos já outros quando acabamos um livro. É a tal aventura, um livro é um desafio muito duro.

Uma Manhã Perdida é um símbolo do activismo anticomunista?

Não sei. O período mais duro do regime aconteceu quando eu era criança, nos anos 50. Verdadeiramente não sofri com ele. Percebia que algo se passava, claro, mas não se podia falar muito disso. Parecia-me que tudo estava bem ao meu redor, mas aos poucos fui-me apercebendo de que havia muitas coisas que estavam a acontecer e eu não sabia, que jovens como eu eram presos por quase nada. Descobri essa realidade muito tarde.

A sua consciência política foi tardia?

A consciência política foi adquirida em casa. As crianças percebem quando não se pode falar, ainda que não percebam muito mais. Os adultos calavam-se com medo que as crianças contassem. Mas entre as meias palavras eu era muito consciente do tipo de regime em que vivia. Lembro-me de quando o Estaline morreu; eu era muito pequena, estava na primeira classe, e via pessoas maiores do que eu a chorar, desesperadas. Perguntei em casa o que se passava e o meu pai disse: "O monstro morreu". Eu entendi o que ele quis dizer. A minha consciência política terá talvez nascido aí.

No livro, a personagem de Madame Ioaniu não acredita no futuro, crê que caminhamos para a barbárie. Acredita nisso?

Não. Ela é assim porque o presente lhe é cada vez mais estranho. Acontece muito com as pessoas idosas. Eu não cheguei a esse estado. Não sou optimista, mas não creio no apocalipse, e espero que a crise se resolva.

Estamos em ano de eleições na Roménia. O que espera?

É um ano eleitoral muito convulsivo, com a sociedade fracturada em dois grandes partidos. Espero uma maior estabilidade económica e política e que a cultura seja valorizada. Falávamos no início de como a Roménia é um país misterioso. Creio que a cultura é um meio, dos poucos, que pode resolver o mistério e dar uma imagem mais correcta da Roménia.

Qual é a imagem correcta?

Não consigo dizer em duas frases. vou dizê-la num romance.

É uma promessa?

Estou a trabalhar nisso, num livro de memórias e num romance, O gosto um pouco amargo da liberdade. Pode ser um titulo provisório, mas é o que sinto no momento.

É mais fácil escrever agora ou quando escreveu Uma Manhã Perdida?

É complicado quando se escreve sem censura. Há mais liberdade e é preciso saber geri-la, lidar com ela. Não é fácil quando se está habituado a que a liberdade seja travada. É como quando se vive dentro de uma uma casa e de repente nos colocam na cidade e é preciso escolher que ruas seguir.

No livro não há uma menção ao nome Ceausescu.

Talvez tenha sido auto-censura. Não sei. O meu filho tinha 20 anos quando Ceausescu morreu e ficou bastante tocado por todos os acontecimentos que envolveram essa morte. Eu tinha idade para me colocar emocionalmente mais distante. Naquele momento não sabíamos exactamente o que se estava a passar. A revolução foi ainda mais misteriosa na Roménia, houve muita manipulação entre o exercito e os serviços secretos. Na televisão não víamos o que vocês viam. Cortaram muitas coisas, mas lembro-me que ficámos a noite toda a assistir àquele julgamento sumário. E a cada momento do discurso de Ceausescu nós ríamos. Era uma reacção histérica. Ele falava em golpe de Estado e nós dávamos gargalhadas. A nossa cabeça tem reacções estranhas e aquele riso era incontrolável.

E quando ele morreu...

Cantou A Internacional. Não tive a mínima emoção no momento da sua morte. Apenas frustração, porque queria um verdadeiro julgamento. Mas no fim queria era vê-lo morto.

Um sentimento generalizado?

Sim. Foram tempos de revolta, mas há muito por contar. Ainda não foi contada essa história, em que estiveram envolvidos a CIA e o KGB. Alguém recebeu uma ordem para dar o tiro... Por isso digo que o jornalismo não é suficiente para sabermos o que se passa.

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