O que seria de nós se Morrissey crescesse?
Todas as adolescências se perdem nas dele, nos Smiths e a solo. Morrissey não cresce. Odeia a Família Real, a Inglaterra, a indústria musical, Madonna. Terça-feira, em Cascais, apresenta-se ao vivo. Em entrevista ao Ípsilon, diz-nos para "esperarmos tudo" - até as canções proibidas.
Há quem amadureça com a idade. Há quem nunca cresça. E depois há Morrissey, que está proibido de crescer. Desde os tempos dos Smiths que a sua persona é edificada a partir dessa impossibilidade: recusando a responsabilidade, recusando o equilíbrio, recusando ser adulto.
Os Smiths foram importantes pela visão parcial do mundo que impuseram. E Morrissey incorporou essa noção com requinte, pela sua imperfeição, pela recusa da realidade, pela negação de crescer. Um pouco de satisfação, algum ajustamento com o mundo são coisas que não rimam com o cantor inglês. A sua actividade alimenta-se do fluxo da adolescência - essa forma de vacilar entre a liberdade e a claustrofobia, entre as inúmeras possibilidades que a vida possui e os constrangimentos e as frustrações que também acaba por implicar.
A sua tragédia é também a sua mais-valia. Como Mick Jagger, ou Johnny Lydon, está condenado a viver na sua personagem para sempre. O seu estilo é tão perfeito que não é possível sair dele. Exactamente porque não é um estilo. É ele. É a sua pele. Desde a primeira metade dos anos 80 que é assim. Hoje não é diferente. Quando se comunica com ele percebe-se isso de forma transparente.
- Bem, durante muitos anos diziam que eu era um Smith, por isso dizerem agora que sou um mito (myth) é apenas uma pequena alteração,.
É o que ele responde, com a habitual ironia, quando lhe perguntamos como se sente quando é tratado pelos inúmeros admiradores pelo mundo fora como se fosse uma lenda viva. Nem todas as personalidades da música têm as características adequadas a uma base de admiradores extremamente fiel. Ele tem.
Os Smiths só lançaram quatro álbuns, entre 1984 e 1987, mas as personagens da maior parte das canções provocaram adesão imediata. As palavras de Morrissey certificavam-nos de que não tínhamos de nos sentir excluídos. Constituíam a prova de que havia outros por aí a experimentarem o mesmo. De repente, alguém cantava poeticamente acerca de coisas que pensávamos ser os únicos a sentir e a confusão, a rejeição ou a solidão eram-nos mais toleráveis, pela possibilidade de partilha.
- A maior parte das pessoas acha difícil escrever o seu próprio nome.
A pergunta era se é difícil escrever uma boa letra na actualidade. E a resposta continua: "Quando examino alguém como McDonna, que vendeu 90 milhões de álbuns, não consigo pensar numa única canção decente que tenha escrito", acrescenta, dizendo que hoje a maior parte das letras não tem significado nem carisma. "Em Inglaterra existe uma coisa chamada Brit Awards, cuja política é atribuir prémios às piores contribuições para a música que possamos imaginar. Por isso não existe nenhum incentivo da indústria no sentido de que sejam escritas boas letras."
As letras de Morrissey, as suas incertezas acerca da existência, provocam uma identificação simples e directa. Em grande parte porque ele próprio possui uma mentalidade de fã. É tímido mas altivo ao mesmo tempo. É um pouco misterioso, mas também extremamente cáustico. É culto, capaz de citar Oscar Wilde ou um poeta britânico no momento certo, mas logo de seguida pode escarnecer de um cantor rival como qualquer fã de música, sem distanciamento crítico, da boca para fora. Eis o que diz sobre celebridades da música actual como Lady GaGa, Adele, Rihanna ou Beyoncé:
- Elas são altamente financiadas, agressivamente promovidas e as suas editoras fazem tudo, mas tudo, para que não fracassem. Falhar, portanto, é impossível, para gente como GaGa.
"Não existe nenhuma música nova por aí que me satisfaça", continua, para logo se contradizer. "Bem, amo Kristeen Young... É incrível... Sem editora, claro!... Hoje as editoras apenas assinam com quem lhes entrega de bandeja o que se ganha dos concertos e do publishing... O que a maior parte das crianças com borbulhas de 16 anos se dispõe a fazer... Mas eu não tenho 16 anos e não sou um desenho animado."
Heróis e marginais
Nem o fim dos Smiths, em 1987, constituiu a sua extinção - por causa dos fãs. Basta ver o excelente documentário Is It Really So Strange (2004), de William E. Jones, sobre os improváveis entusiastas hispânicos: jovens latinos entre os 20 e os 25 anos com tatuagens de devoção a ele e exímios penteados à Elvis Presley, tal como o adoptado por Morrissey desde sempre. Dir-se-ia estarmos num cenário de um filme colorido de John Waters, em plena década de 1950 - mas estamos numa encenação garrida do século XXI, onde todos sabem as canções de cor e procuram ser como ele.Como é que um cantor tantas vezes arrogante, de pronúncia nitidamente britânica, de orientação sexual gay, seduziu a comunidade latino-americana da Califórnia, proveniente de uma cultura com tiques machistas? Os hispânicos, nos EUA, são "marginais", "outros", "invisíveis", e nas canções de Morrissey os párias também são admiráveis. Talvez esteja aí uma explicação possível para esse fenómeno de identificação. Mas se Morrissey é modelo, James Dean ou Oscar Wilde foram modelo para ele próprio. E ele sabe-o muito bem. E gosta de falar sobre isso. Aliás, ele não fala de outra coisa.
- James Dean é arte humana. Não encontrará uma única má fotografia de James Dean. Ele não era um actor. Era um símbolo, da mesma forma que Marilyn Monroe o era. Eles são mais famosos e mais amados do que qualquer presidente americano de que nos consigamos lembrar. E Oscar Wilde foi a primeira estrela pop de sempre. Como escritor, nunca foi acomodado. Amava a vida e a sua popularidade só tem tendência a crescer enquanto o tempo passa. E é amado pelas pessoas mais novas, como Shakespeare nunca foi. Continuo a achar que Wilde foi assassinado pelos serviços judiciais britânicos porque invejavam a sua popularidade.
Quando os Smiths apareceram, providenciavam fantasias de inocência para os que estavam no processo de deixar a adolescência. Gente dividida entre as insatisfações juvenis e ter uma carreira, entre sonhar com uma vida melhor do que a dos pais e o medo de cair na mediocridade. Ao longo dos anos, Morrissey sempre enalteceu as debilidades, as fraquezas, o falhanço. Os fortes são aqueles que não têm problemas em expor as suas fragilidades, parecem dizer quase todas as suas canções.
Pop e anti-pop
Ainda hoje Morrissey incorpora um novo estilo de celebridade. Tem qualquer coisa de pureza pop e de anti-pop. É um de nós, mas um de nós que apenas pode ser ele. Alguém que conhece bem a história da pop e os mecanismos de obsessão dos melómanos. É como se quisesse utilizar os mecanismos da idolatria para introduzir alguma diferença na pop. Ao contrário do que se possa pensar, repetimos, não é uma personagem. É ele. E quando as forças arbitrárias do encanto (simbolizadas no rosto, no corpo e na voz de um cantor) coincidem sem nenhum motivo aparente, então o fascínio acontece. Mas não é crível que ele tenha essa consciência. A sua visão sobre a relevância dos Smiths e dele próprio e a forma como fala das suas letras provam-no. Claro que os Smiths foram uma banda relevante, mas não são a melhor banda do mundo. E claro que Morrissey é um excelente cantor e letrista, mas incorpora mais do que isso: às vezes um simples falsete ou um gesto qualquer dizem mais sobre a sua diferença, a sua resistência, a sua singularidade, do que todas as letras dos Smiths.- Nunca oiço a minha música em nenhum lado, nunca! Apenas três singles da minha autoria (Suedehead, That"s how people grow up e I"m throwing my arms around Paris) tiveram boa cobertura radiofónica ao longo da minha vida. Nenhuma das minhas outras canções foi sequer tocada na rádio. Talvez seja porque a minha voz é demasiado humana.
Quando fala é sempre assim, totalitário, logo, radicalmente parcial. Não inclui, excluiu. Não lhe interessa complexificar, tentar encontrar diferentes pontos de vista, sugerir ou perceber as dinâmicas, mas sim apontar o dedo acusador. Quando discorre sobre a progressiva desmaterialização da música, também acontece isso.
- Nunca fiz parte de nada, não sou da era do vinil ou das editoras indie contras as multinacionais, mas parece-me que a música se foi tornando progressivamente insignificante por causa deste novo panorama digital. Antes tínhamos de sair, procurar uma loja de discos, fazer uma escolha e depois carregar qualquer coisa num saco para casa. As pessoas sentiam-se emocionalmente envolvidas com as suas escolhas, agora não me parece. Penso que tudo começou com o rap. Ouve-se em todo o lado porque soa quase sempre igual e não tem qualquer significado. Não ouvimos, por exemplo, canções de protesto em sapatarias. O mesmo com a música de dança tecno. É simplista e sem personalidade. É por isso que está nos centros comerciais, nos elevadores, em qualquer espaço. Em parte, não é ouvida. É apenas papel de parede sonoro.
Nada a não ser a música
Contrariamente a outros vultos da história da música, os Smiths, e depois Morrissey a solo, nunca procuraram um som novo ou um novo paradigma. Os Smiths impuseram-se como o ultimo grande grupo pop de uma linhagem clássica. Se os Beatles simbolizaram a libertação dos anos 60, os Smiths incarnaram a desfiguração dessa revolução: a adolescência é um horror, a cultura jovem não é nada divertida, parece dizer Morrissey a toda a hora. Ser jovem é sofrer, é aceitar os defeitos, é olhar para dentro, é ser lúcido. Não espanta que a separação dos Smiths em 1987 tenha provocado uma onda maior de histeria do que o fim dos Beatles ou de Elvis.Em Portugal também, claro. Na 3ª feira, em Cascais, subirá a um palco português pela quarta vez, depois de dois concertos nos Coliseus (Lisboa e Porto) em 1999 e da passagem em 2006 pelo festival Paredes de Coura. A meio dos anos 90 encontrava-se imerso em processos judiciais (ainda o fim dos Smiths e as acusações de racismo) e mostrava-se algo renitente em lançar material novo. Mas a última década não tem sido nada má para ele. Retomou a credibilidade, lançou alguns discos bem sucedidos, tem realizado digressões lucrativas e interpreta canções dos Smiths (How soon his now?, Please, please, please let me get what I want, I know it"s over ou Still ill) nos concertos, sem crises de identidade. Com o seu país, a Inglaterra, é que ainda não se reconciliou, tendo vivido no exterior, em Itália e nos EUA, nos últimos anos.
- Vivo noutros países em grande parte para evitar a Família Real britânica, que é uma coisa embaraçosa. Quando se vive em Inglaterra somos bombardeados a toda hora com histórias infantis sobre esta louca, cruel e parasita família. É insuportável. A Itália é o país onde me sinto mais em casa. Gosto de Los Angeles, mas a polícia sufoca a cidade. Parecem ser em maior número do que a população na proporção de 20 para 1. É muito triste.
Não tem planos para discos novos, mas haverá uma autobiografia, a ser editada durante o corrente ano. "Está feita e sinto-me muito orgulhoso dela", diz. "Será um grande sucesso em todo o lado, menos em Inglaterra. Como não me canso de dizer, os culpados são protegidos e os inocentes apontados", afirma, como habitualmente dividindo o mundo sem remissão. Em Maio, fez 53 anos. A maior parte das pessoas aceita que, à medida que envelhece, o processo de amadurecimento vai acontecendo. Mas ele não é qualquer pessoa.
- Tenho tido uma vida estranha até agora, por isso não tenho grandes expectativas de amadurecer de uma forma normal. Nenhum dos clichés acerca da existência se me aplica. A minha vida nunca foi muito típica. E agora também não é. O romance nunca esteve presente na minha vida. Acima de tudo tento ser lúcido. Sempre fui o meu melhor amigo. Quando nos apaixonamos por alguém, olhamos a humanidade e as pessoas de forma diferente. Mas eu nunca amei nada a não ser a música.
Ouvindo-o fica-se com dúvidas se, na adolescência, não pertenceria àquele tipo de pessoas que ficava sempre à beira da pista de dança a sussurrar coisas aos ouvidos dos amigos, troçando de quem dançava e se divertia, mas secretamente desejando ser como eles. "Não, não exactamente", corrige ele, levando a pergunta muito a sério.
- Comecei a ir a concertos sozinho aos 12 anos. Não ia a discotecas. Aos 12 ans vi os T. Rex, aos 13 David Bowie, Lou Reed, Mott the Hoople ou Roxy Music. E continuei por aí fora ao longo da minha adolescência. Ia sempre sozinho e gostava disso, dessa sensação. Vi as pessoas certas ainda muito novo. Ramones, Patti Smith, Sex Pistols. Aos 20 anos estava exausto e tinha visto o suficiente. Apenas queria começar a fazer qualquer coisa eu próprio.
Foi isso que aconteceu, por volta de 1982. Agora, na casa dos 50, afirma-se mais desperto do que nunca e diz a quem o for ver em Cascais para esperar um concerto onde "tudo é possível." Duas certezas: "Não será um concerto enfadonho e não será igual a qualquer um outro."
Recentemente, em declarações a um jornal inglês, disse que pensava abandonar a música aos 55 anos. Mas quando lhe perguntamos se aos 60 continuará a cantar é evasivo: "Os 60 anos ainda estão longe. Se não estiver a cantar, provavelmente estarei num asilo perto de Varsóvia. O que também está bem para mim."
É assim Morrissey. Um puto adulto que não consegue crescer mais. Se isso acontecer, a sua graça desvanecer-se-á. As suas canções perderão aquele impacto primordial. E a nossa adolescência perder-se-á na dele.