O "mundinteiro" de um provinciano

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Amos Oz nasceu em Jerusalém nove anos antes da criação do Estado de Israel em plena Palestina: o seu mundo é um mundo dolorosamente dividido (na foto, o escritor no Deserto do Negev, onde escolheu refugiar-se) ED KASHI/CORBIS

O sagrado e o profano cruzam-se nos caminhos de Amos Oz. De Jerusalém à Galileia, de Arad a Telavive, com olhos no mar, na montanha ou no deserto, a sua escrita é um grande zoom num mapa disputado pelos homens em nome de Deus e da política.

Quando Israel nasceu, já Amos Oz corria há nove anos pelas ruas de Jerusalém. Seis décadas depois, em 2008, caminhava diariamente pelas ruas de Arad, cidade na fronteira com o deserto do Negev, a escassos quilómetros do Mar Morto, "onde a luz do deserto calcina os espíritos e varre todas as recordações de pinhais e neblinas outonais". Foi ali que escolheu viver depois de perceber o que é uma miragem e de saber que a Atlântida, Shangri-la e o El-Dorado são lugares que uma imaginação solitária inventou e muitas mais solidões foram alimentando.

Entre o primeiro tempo de Oz nas ruas de Jerusalém e o actual tempo de Oz, nas estradas do deserto do Negev, há a história de um país, ou como escreveu Oz, a realização de um sonho que, como qualquer outro sonho realizado, se transformou em desilusão. Entre esses dois tempos, esteve um homem, Oz, observando o público e o privado e passando-o para a escrita em cores diferentes. Azul para a ficção. Preto para a política, para a intervenção cívica.

Nesse entretanto de seis décadas, esse homem aprendeu o território e ajudou a construir o dicionário do seu significado: o hebraico moderno. A azul, inventou uma palavra equivalente a "noite estrelada". A preto, pensou num vocábulo para "oportunista". E foi criando palavras à medida da necessidade da escrita, em solidão, isolada. "Provinciana", como lhe chama - provinciano, como diz de si -, porque sediada num local muito interior. E universal, porque esse local se fez de quase todos os locais do mundo. Oz sabe-os de cor: 136 países. É o maravilhoso "mundinteiro", por contraste com o mundo do bairro de Kerem Avraham, em Jerusalém, onde nasceu em 1939, no número 18 da Rua Amos, e onde viveu até aos 14 anos, ou com o mundo do kibbutz, onde escolheu viver desde os 15, durante três décadas, aprendendo, pela proximidade, "o outro" e cada universo particular. É por isso que quando escreve uma história, a azul, ela mexe com as forças mais básicas da existência humana. Que são iguais num kibbutz, em Arad, em Telavive, em Londres ou em todos os lugares bíblicos que a sua prova habita.

Solidão, amor, morte, desejo, esquecimento, perda. Essa é a geografia de Amos Oz, um escritor de 27 livros, traduzido em 41 línguas, judeu não religioso que acumula prémios pelo "mundinteiro", onde se crê que poderia muito bem ganhar ainda outro, o Nobel. Com David Grossman, reparte a condição de grande nome das letras de Israel e pacifista de serviço, e reparte também um território que nunca soube o que era a paz. Os nomes dessa geografia são quase todos nomes de guerra ou nomes santos. Sagrados e profanos, espaços habitados por homens que lutam por eles em nome de Deus e da política, e nele se dividem. São os espaços de Oz, mundos domésticos das suas narrativas. Israel e a Palestina em sucessivo efeito zoom in, segundo um autor que acredita, muito simplesmente, que o centro do universo é o sítio onde se está.

A partir desse ponto, central na sua grandeza, o escritor desenhou um atlas tantas vezes metafórico, idílico e profanado, sempre construído a partir de um sentimento: a curiosidade. "Levanto-me todos os dias às cinco da manhã, em Arad, dou um passeio de meia hora no deserto, volto a casa, bebo uma chávena de café, sento-me à secretária e pergunto-me o que diria se fosse ele, e o que faria se fosse ela." A mesma curiosidade que terá guiado o solitário Alex Gideon, protagonista de A Caixa Negra, último romance de Oz editado em Portugal, a decorar o atlas em criança, a criar universos paralelos que ia tomando de assalto em batalhas pessoais tantas vezes coladas às batalhas da vida do seu país. "Penso que a curiosidade é uma qualidade moral. Acho que uma pessoa curiosa tem um pouco mais de moral do que um não-curioso, porque por vezes coloca-se na pele do outro. Penso ainda que um curioso é também um melhor amante do que alguém que não é curioso. Até a minha abordagem à questão palestiniana, por exemplo, nasceu da curiosidade. Não sou um especialista em Médio Oriente, nem um historiador ou um estratega. Simplesmente perguntei a mim mesmo, desde muito novo, como seria se eu fosse um deles. É o que faço - levanto-me de manhã e pergunto-me: E se? É assim que vivo e é assim que escrevo."

Tudo, em Oz, se resume a esse "e se?", como sintetiza nesta entrevista ao The New York Times a propósito do seu último livro, Between Friends, um conjunto de contos sobre a vida num kibbutz, da qual confessa nunca ter conseguido libertar-se. Entretanto, e enquanto essa tradução não chega, aguarda-se por cá, para o início do próximo ano, a publicação de The Hill of Evil Counsel, um livro de 1976, escrito durante a vida de Amos Oz no kibbutz Hulda, vencedor há cerca de duas semanas do prémio Giuseppi Tomasi di Lampedusa, em Itália.

Autobiografia dos lugares

"E se..." é sempre o ponto de partida que não vai dar necessariamente à não-verdade com que tantas vezes é confundida a palavra ficção. "E se..." é o lugar do outro, o reconhecimento de si mesmo, o território da compaixão que nada tem a ver com piedade, onde cabem a ironia, o humor. Pode-se dizer que em Oz há sempre a autobiografia dos lugares. Ele escreve de onde está, sobre onde está ou onde esteve. E tudo isso pode estar concentrado num quilómetro quadrado. Por isso é que o azul, em Oz, não é a não-verdade. É a poesia que há na prosa literária, a mesma que existe para lá das montanhas que aprendeu a ter como horizonte quando se sentia refém da Jerusalém da diáspora e de tudo o que ela representava política e culturalmente. Do outro lado das montanhas, como do outro lado do mar, estava o "mundinteiro" com todas as suas possibilidades.

Com esse "e se..." pela manhã, Amos Oz senta-se e hesita entre o azul ou o preto. São as cores das duas canetas pousadas agora na secretária que herdou do pai, e que está na casa em Arad, longe da agitação de Jerusalém. É lá que escreve sempre, manhã afora. E lá terá escrito a azul: "A terra prometida desapareceu ou era apenas miragem". Foi-se, como se foi indo a beleza de Maria, de O Mesmo Mar, romance-poema de 1999: como a promessa, também a beleza de um rosto se desgasta. E a preto: "Israel não é um país. É uma discussão calorosa de oito milhões de primeiros-ministros com as suas fórmulas particulares para redenção instantânea".

A azul ou a preto, a geografia de Amos Oz é só uma. Israel e todas as nações que a fizeram. Ou seja, o mundo concentrado numa promessa. Mas consoante é a azul ou a preto, a paisagem muda completamente de figura.

Aconteceu a preto, mas Oz escolheu o azul para dar a dimensão da sua geografia de infância, a primeira, 30 metros quadrados de um rés-do-chão que era pouco mais do que uma cave, onde vivia com os pais, judeus sionistas da Rússia que procuraram em Jerusalém a promessa de poderem ler, escrever, pensar e sonhar em iídiche. "Os dois quartos, o buraco da cozinha, a casa de banho e, em particular, o corredor, eram escuros. Os livros enchiam a casa toda: o meu pai lia em 16 línguas e falava 11 (todas com pronúncia russa). A minha mãe falava quatro ou cinco línguas e lia umas sete ou oito. Falavam entre eles russo ou polaco, quando não queriam que eu compreendesse."

As palavras iam-lhe chegando e ele retinha-as, apesar de lhe terem ensinado apenas hebraico: "Deviam recear que o conhecimento das línguas me fizesse sucumbir ao encanto da velha e fatal Europa", escreve em Uma História de Amor e Trevas, autobiografia romanceada, a caneta azul, sobre o que é ser-se de um sítio, seja ele a língua ou a geografia. No caso de Oz, as palavras nunca andaram separadas do território. Por mais estranha que fosse a língua, por mais desconhecida que fosse a paisagem. Como era então a europeia, amada pela sugestão do contraste com aquela que habitava. "Para eles", continua Oz, "a Europa era a terra prometida e proibida, o lugar nostálgico dos campanários e das velhas praças empedradas, dos eléctricos, das pontes e das torres das catedrais, das aldeias isoladas, das fontes termais, das florestas e dos prados cobertos de neve." Eles contaram-lhe. Oz reteve. "As palavras cabana, prado, guardadora de gansos fascinaram-me e emocionaram-me durante toda a infância. Tinham o perfume sensual de um mundo autêntico, tranquilo, afastado dos telhados de zinco cheios de pó, dos descampados invadidos pela sucata e as silvas, e dos declives áridos de Jerusalém, abafada pela crueldade do Verão incandescente. Bastava murmurar a palavra prado para ouvir logo o mugido das vacas com chocalhos ao pescoço e o som dos riachos. Quando fechava os olhos via a guardadora de gansos descalça, tão sexy que me dava vontade de chorar, antes mesmo de eu perceber o que quer que fosse."

Fronteiras

Continuamos no rasto do Oz azul, como o apelido que simbolicamente escolheu para "matar o pai" e tudo o que ele representava. Apagou Klausner da identidade e nomeou-se Oz - "força" em hebraico - para se reescrever. Tinha 14 anos e um passado para esquecer. Procurou o futuro no outro lado da montanha, onde já descobrira a "magia" da palavra Telavive, a cidade "oposta" a Jerusalém. "Telavive era tão longe! Durante toda a minha infância não fui a Telavive mais de cinco ou seis vezes: íamos passar os feriados com as tias, irmãs da minha mãe. Não era apenas a luz de Telavive que diferia da de Jerusalém mais do que hoje, mas as próprias leis da gravidade também não eram as mesmas. Em Telavive as pessoas andavam de maneira diferente: saltavam e planavam como Neil Armstrong na Lua." Mais uma vez a sedução pelo contraste. "Em Jerusalém andava-se como num funeral, ou como os espectadores num concerto: primeiro apalpava-se o terreno com a ponta do pé. Em seguida, depois de pousar o pé, não havia pressa em mexê-lo: se tínhamos levado dois mil anos a conseguir pôr o pé em Jerusalém, não íamos renunciar tão rapidamente." Ele estava disposto a isso.

Despediu-se de Jerusalém e procurou outra geografia para lá das montanhas do horizonte. Telavive, com toda a sua onda de modernidade, a "magia" que a palavra lhe sugeria desde muito novo, "a cidade efervescente" de onde chegavam os jornais, "os ecos do teatro e da ópera, do ballet, dos cabarés, da nova arte, dos partidos políticos", não lhe chegava. Era preciso trocar Jerusalém por um lugar suficientemente radical para essa ruptura. A ruptura tinha a ver com a geografia. "Algures, para lá das montanhas, vivia uma espécie de heróis judeus, uma raça bronzeada, vigorosa, activa e de poucas falas, o oposto do judeu da diáspora e dos moradores de Kerem Avraham. Rapazes e raparigas pioneiros, determinados, bronzeados, silenciosos, capazes de afrontar a escuridão da noite e de libertar as relações entre os homens e as mulheres de todos os tabus." O lugar desses rapazes era o sítio. Ficava para lá do horizonte de Oz, "na Galileia, no Sharon, nas planícies". "Era lá que eles construíam o país, reformavam o mundo, edificavam uma nova sociedade, marcavam a paisagem e a história do seu cunho, aravam os campos e plantavam as vinhas, compunham uma poesia nova, montavam a cavalo armados até aos dentes e respondiam com fogo ao fogo dos provocadores árabes, era lá que do miserável pó humano se fazia uma nação combatente."

Não falta ironia a esta paisagem onde Oz quis ir mostrar a sua "força" ainda sem saber que uma geografia não se apaga, muito menos quando é a primeira. Ao reescrever-se em Hulda - o kibbutz com nome de uma profetisa, no centro de Israel, onde quis ser um desses jovens bronzeados, e onde viveu 31 anos, casou com Nilli, e teve dois filhos -, Amos Oz teve de voltar a Jerusalém. "Escrevera O Meu Michael [terceiro livro, primeiro grande sucesso comercial] com o objectivo de traçar um risco sobre Jerusalém, não para estabelecer uma ligação", confessaria em Uma História de Amor e Trevas. Tudo errado. Voltou ao bairro e aos seus habitantes e a sua escrita nunca mais de lá saiu a não ser pontualmente, mantendo sempre as montanhas como horizonte.

Continua a ser esse o seu centro, o lugar onde correu ao lado de miúdos palestinianos - os outros, os "e se eu fosse um deles", que o fazem aspirar a um território partilhado por judeus e palestinianos, sem faixas de Gaza. Aqui podiam agora acrescentar-se todos os lugares de um conflito. Mas isso seria para a escrita a preto. Ela demora-se mais por aí. A azul, detém-se nas personagens das ruas da Jerusalém dos anos 40 e 50, e só a partir delas se dispersa.

Na próxima edição, o Ípsilon publica o mapa da escrita de Orhan Pamuk

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