Tudo é mistério

No final do filme anterior de Bruno Dumont, (por cá estreado), a protagonista, uma miúda cujo excessivo amor por Jesus Cristo a tinha transformado num instrumento do Mal, era salva das águas, como num milagre, por um pequeno marginal, de rosto rude e inexpressivo, com pinta de quem noutra vida podia ter sido um Cristo pasoliniano. Se não é essa mesma personagem que encontramos em Fora, Satanás (e quem pode garantir que não é?), é pelo menos o mesmo actor, David Dewaele. Passeia por Fora, Satanás (e, literalmente, passeia: caminhadas e caminhas pela costa da Flandres francesa, que se assemelha bastante a um deserto quando o mar é deixado fora de campo) da mesma maneira inescrutável, olhos que exprimem ora a maior violência, ora a maior doçura e, sempre, a maior indiferença. Não será Jesus Cristo reencarnado, mas é evidente que Dumont quer que o espectador pense em Cristo quando olha para ele. Um Cristo de uma só seguidora (uma adolescente “gótica” de cabelo espigado) evoluindo no meio da pobreza e da abjecção, onde a violência e a contemplação, o crime e a salvação são como faces diferentes de uma mesma moeda. O Bem e o Mal, Deus e o Diabo (o título português escolhe a invocação, Fora, Satanás, mas Hors Satan também pode ser traduzido por “fora de Satanás” ou até por “fora Satanás”, como quem diz “Satanás à parte”) habitando o mesmo corpo em unidade? Ou, depois de Hadewijch, filme sobre o Bem transformado em instrumento do Mal, Fora, Satanás, filme sobre o Mal como instrumento do (ou para o) Bem?

Provavelmente - advérbio bressoniano muito a propósito - seria precisa uma licenciatura (a sério, sem equivalências) em Teologia para atravessar Fora, Satanás sem pôr o pé na argola hermenêutica. Em boa verdade, o filme não exige explicações: o não-explicado, eventualmente o não-explicável, é a sua matéria. Diríamos que Bruno Dumont é o único cineasta contemporâneo capaz de abordar a religião - o Cristianismo - de maneira despoluída de lugares-comuns, como se tudo estivesse ainda para ser identificado, os arquétipos não se tivessem ainda tornado arquétipos. Donde, o poder de perturbação e de interrogação de um filme como Fora, Satanás. Tudo é distância, a mesma distância com que Dumont filma as personagens calcorreando a paisagem; tudo é distância, sobretudo, nas relações entre causas e efeitos, que permanecem obscuras, como num tempo anterior à narrativa que vem consagrar um “milagre” como “milagre”. A sequência do “exorcismo” da rapariga doente, a que o senso comum chamaria uma violação, é paradigmática; mas Fora, Satanás também contém esse “milagre” supremo que é o da ressuscitação, como se Dumont, farto de que lhe falem apenas em Bresson (e em Bernanos, o de no Sob o Sol de Satanás, de Pialat), pedisse que agora lhe falem também em Dreyer (é mais do que só isso, na verdade, mas não obstante é inegável que Dumont os tem no sítio). Mas, também nesse sentido, é essencialmente sobre o imaginário cristão do espectador que Dumont age, esse imaginário dormente (modernidade oblige) que se vê, com um filme como este, subitamente despertado. E é a imaginação que (re-)liga tudo: pois tudo o que vemos é um par de marginais que caminha, come, bebe, fornica, mata, caça, morre, vive, por entre a natureza e o ruído do vento. Esse vento que, como sabemos, sopra onde quer, e ouvimos o barulho mas não sabemos de onde vem nem para onde vai.

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