Torne-se perito

A aldeia de Martim está condenada

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A vida passa devagar, ao ritmo das conversas sempre repetidas e das memórias de outros tempos

Bemposta tem 120 habitantes e apenas uma criança. Aldeia de João Pires, ao lado, soma 123 idosos em 195 residentes. Eis Penamacor, o concelho mais velho do país. Tem 599,5 velhos por cada 100 jovens. Em vias de extinção, portanto

Talvez tenham interesse em conhecer o Martim. Tem uma alegria contagiante que espalha pela aldeia em que é a única criança. É o Martim, com quatro anos, três ou quatro rapazes e raparigas na casa dos vinte - a mãe do Martim incluída - e mais cento e poucos velhos ou à beira de o serem. Residem todos na Bemposta, concelho de Penamacor, que já foi sede concelhia e hoje é uma das muitas aldeias com morte aprazada.

Morre por vontade expressa da administração central, que impõe a sua fusão com a vizinha Pedrógão, mas sobretudo por causa das décadas de abandono e políticas que reduziram o interior do país a cenário de velhos. Penamacor, com 599,5 idosos por cada 100 jovens entre os zero e os 14, é o concelho mais envelhecido de Portugal. Quintuplica a média nacional, que, segundo os últimos Censos, é de 129 idosos por cada 100 jovens.

Para aqui chegar, vem-se da estrada que liga Penamacor e Castelo Branco, corta-se à esquerda, passa-se a "fábrica da azeitona" - a única a garantir emprego a meia dúzia de habitantes -, ignora-se o sinal a avisar da existência de crianças, que, por sua vez, ignora que elas há muito abalaram, e chega-se ao casario, ao cimo do qual uma torre se mantém vigilante sobre as últimas coisas.

"São terras muito tristes. Os funerais são dia sim, dia não. Os baptizados é um, dois, sempre no Verão, quando chegam os emigrantes. Casamentos, o último já lá vão cinco anos", desabafa o padre Tarcísio Duarte. Vive em Pedrógão, onde é pároco, mas é ele que vai todos os domingos rezar missa a Bemposta. Já na freguesia de Águas, a quatro ou cinco quilómetros, diz duas missas por semana, que sempre são 302 os habitantes - parecem poucos, mas não. Por exemplo, em Aldeia de João Pires, são 195 habitantes. Destes, 123 têm 65 anos e a passar - isto se alguma morte não tiver já baralhado as contas do INE.

Na Bemposta, aqui está Martim vigiando os gestos da mãe, que limpa a mesa dos resquícios do almoço. "Toda a gente da aldeia gosta dele. E ele é uma criança que se entretém sozinha", descreve Paula Marisa, de 26 anos. É mãe solteira, aguentou com o diz que disse em que se distraiu Bemposta quando viu nascer a criança. A preocupação agora é levar Martim à Figueira, para lhe dar a ver o mar. "Já lá foi uma vez, mas era bebé, não se lembra." De ir ao bruxo, Martim lembra-se, mas aí já era mais crescido. "Andava com uns terrores, só me dizia "mãe, tenho medo". Andou uns cinco dias que só dormia e, quando acordava, ficava a olhar o tecto. Fomos a uma senhora em Santarém que me disse que era o espírito de um homem. Mandou-me rezar missa e comprar uma muda de roupa para o espírito deixar de ter frio."

- Frio?

- Nas aldeias, quando alguém morre, é costume a família oferecer uma muda de roupa, que é para o espírito não vir atacar ninguém. A família dessa pessoa não o tinha feito. Há quem não acredite nessas coisas, mas a verdade é que o Martim perdeu o medo.

- E nunca lhe apeteceu abalar daqui como os outros?

- Apetecer apeteceu, mas, com poucos estudos e sem saber conduzir... E depois, se for para a cidade, é carros para um lado, carros para o outro, os aviões e isto e aquilo. Aqui, a gente semeia batatas, feijões, semeia tudo. Temos galinhas, porcos. Lá, nos apartamentos, não. Já viu o que era ter que ganhar para comprar tudo?

Quedam-se Paula e Martim pela Bemposta enquanto durar a aldeia. Pelas contas do presidente da junta, Luís Tomé, não hão-de faltar muitos anos. "Mais dez, quinze anos, e já não há cá ninguém. E, a seguir à aldeia, desaparece o concelho. Isto são terras que não dão votos, logo não há investimento, logo não há como impedir o êxodo para Lisboa, França..." Ali ao lado, na voz do autarca da aldeia de Águas, Francisco Barreto, escorre a mesma resignação cansada. "Fui eu que reabri o jardim infantil, há 16 anos, nunca pensei que seria eu a encerrá-lo também."

O edifício ainda lá está, os vidros enfeitados com autocolantes em forma de árvores e pássaros. Está é sem serventia, como, aliás, muitas casas. "Dantes, os emigrantes ainda vinham recuperar as casas dos pais e ficavam com segunda casa para férias e fins-de-semana. Agora, com as portagens e a crise, até isso está ameaçado." Como convencê-los a voltar? "Jardim infantil, não temos, 1.º ciclo também não. Mesmo em Penamacor, o tribunal vai fechar, as finanças é uma incógnita, e diz-se agora que a própria câmara será para anexar!.." "Melhor seria", remata, "que o Governo assumisse o interior como uma coutada e classificasse os que cá vivem como espécie humana a preservar." Não há ironia. Nem sequer quando acrescenta: "Se nos entregassem aos espanhóis, seríamos mais respeitados."

Por terras espanholas andou Manuel Rebelo, de 79 anos. "Ia ao contrabando, perfumes e roupas. Também esteve 15 anos em Paris. Era ele lá e eu cá com os filhos", conta a mulher, Elvira Faustino, 76. Ao marido já se lhe enevoou o discernimento; Elvira, com dois filhos em Lisboa e apenas um geograficamente mais perto, gasta os dias a vigiar-lhe os passos, não vá ele escapulir-se porta fora. "A casa em frente está fechada, aquela está fechada, a outra também", aponta. E a freguesia de Aldeia do Bispo, onde nos encontramos, ainda é das maiores: 676 habitantes, 276 para lá dos 65. É para a sua escola que desaguam as crianças das aldeias ao redor. Mas é sair do autocarro e entrar na escola. Do seu jardim de hortênsias lilases, Elvira não lhes ouve a algaraviada. "A senhora não compreende como era dantes. Faltava-nos uma caixa de fósforos e não faltavam crianças na rua para nos fazerem o recado."

Para rasgar o silêncio, a televisão.

- É uma defesa que a gente tem. Às vezes nem devia mostrar certas coisas que nos dão guerra.

- Guerra?

- A televisão fala tudo e amostra tudo. Há velhacos e velhacas que andam por aí a levar os tractores, os motores de rega. Deve ser a pior coisa. Nosso Senhor me guarde.

Pudesse Elvira sair de casa e poderia juntar-se aos velhos que, um quilómetro adiante, sentados sobre uma fileira de botijas acorrentadas na beira da estrada, recordam os tempos em que (antes do êxodo em massa para a França dos anos 1960 ter levado uns e de as promessas em Lisboa ou em Castelo Branco terem cativado os que restavam), havia raparigas e rapazes que chegavam e sobravam para os bailes.

- Pegávamos num realejo e íamos todos a dançar pela estrada acima - recordava há pouco Elvira.

- Ai os bailaricos com realejo ou concertina - suspira também Manuel Nunes Mena. Boné na cabeça, calças presas com um alfinete-de-ama, tem 77 anos e é o mais novo do grupo.

- Naquele tempo trabalhava-se do nascer ao pôr do sol, eu fui criado aos pontapés, cortei pedra, semeei batatas, trabalhei na estrafega de lagar, mas era um tempo mais divertido, ai se era.

- Agora há aí ruas inteirinhas com as portas fechadas. Está do pior - acrescenta outro.

- Isto é enterrar a gente viva pela terra abaixo, é o que é. Tenho duas netinhas de sete meses que mal as vejo. Os pais tiveram que abalar daqui... - retoma Nunes Mena.

No edifício branco da Câmara de Penamacor, o vice-presidente, António Cabanas, diz que o problema não é Penamacor estar reduzida a 5680 habitantes. O problema é que, deste universo, apenas 415 têm entre zero e 14 anos - há 2488 com mais de 65. "Temos sensivelmente a mesma população de 1758. Mas ter pouca gente não é nenhuma desgraça. O que nos falta é equilíbrio demográfico."

O futuro, no seu entender, terá que passar pela agricultura. Mas para isso era precisa coragem para fazer o emparcelamento das zonas de minifúndio. "Se der uma volta pelo regadio da Cova da Beira, verá imensos terrenos ao abandono. É pena que o país tenha feito esse investimento e não tenha pensado na reestruturação fundiária da terra, criando parcelas maiores, porque não é possível fazer agricultura em explorações de dois hectares." E atente-se na posição estratégica de Penamacor: "Estamos equidistantes de Lisboa, Porto, Madrid, Valladolid..."

Para garantir a escala, não era preciso recuperar os morgadios. "Bastava que o Estado estimulasse a compra da terra, desonerando a carga fiscal; e, por outro lado, onerasse os que têm terras ao abandono, sobretudo nas zonas de regadio." Isso e medidas de discriminação positiva ajudariam a estancar a sangria. "Menos impostos ajudariam a atrair investimento. Claro que teriam de ser políticas de longa duração. A Espanha teve cinco governos de 1975 para cá. Nós vamos com 19. E, sempre que entra um Governo, mudam as políticas."

Descrente de que alguém o ouça no Terreiro do Paço, Cabanas diz que Penamacor vai perder mais sangue antes de ressuscitar. "Nos anos de crise, há uma cegueira completa em que ninguém consegue olhar a não ser para o dinheiro. Territórios frágeis como este vão continuar a saque. Não tenho esperança que a inversão se dê por iniciativa política. Se não acabam com o concelho, é só porque lhes falta coragem."

E note-se que Penamacor até está em contraciclo. Vai ter um supermercado que "promete criar 15 ou 16 empregos", está a construir uma unidade de cuidados continuados, "serão mais 15 ou 20 empregos", está a finalizar um hotel com termas e spa e com mais de 100 quartos.

É neste novo hotel que Franklin conta arranjar um emprego que lhe permita ficar na Aldeia João Pires, a tal dos 195 habitantes. Para lá chegar, passa-se pela casa de Elvira e depois é seguir em frente. Franklin tem 37 anos, vive com a mãe, agora está em frente à taberna de Ana Pereira Mendes, cerveja na mão. Daqui a nada, hão-de chegar mais dois habitantes na casa dos 30. São todos amigos, dos que nunca se cansam em conversas cá nevava se chovesse.

Que mais se há-de fazer numa aldeia de velhos?

- Envelhecer - responde Filipe Marques. Tem 30 anos, um percurso que se resume num parágrafo: "Nasci em Castelo Branco, fui criado aqui até aos 18. Depois fui trabalhar para Castelo Branco, Suíça, França, sempre nas campanhas, a apanhar fruta. Vou indo e voltando. Quando arranjo um biscate, fico por aqui. Gosto mais. Melhor do que estar lá fora sem ver uma cara conhecida, ninguém que nos olhe nos olhos. Volto sempre. Quero morrer aqui."

Franklin da Cruz também só abala se tiver de ser. "Estava a contar ir para o parque de campismo, mas tive azar. Agora vou concorrer para o hotel que vai abrir." E até lá? "Uns trabalhinhos, umas obras... No início do ano, estive vai-não-vai para a Alemanha, onde tenho uma irmã. A outra está em Odivelas e também está farta de me dizer "Puto, anda para cá, anda tentar." Mas a questão é que gosto mesmo disto. Cidade, aquele stress todo, o ar viciado, não obrigado."

- Em Lisboa, nem a sopa é boa - concorda a dona da taberna que também é mercearia, a única da aldeia. É de Alenquer, vive aqui há 28 anos. "Vim atrás do meu marido, nascido e criado aqui. Conhecemo-nos na Alemanha, casámo-nos e depois, por motivos de saúde, regressámos."

Já terá passado mais de meia hora, nenhum carro. A rua funciona, aliás, como uma extensão da taberna. Agora aproxima-se outro rapaz. Óculos de sol, bermudas, ar citadino, pede cerveja, junta-se ao grupo. Seria de cá, se o deixassem. "Vivo entre Oeiras e a aldeia. A minha mãe vive cá, numa quinta. Quando tenho trabalho em Lisboa, vou. Trabalho em impressão digital e sou DJ. Quando não tenho, trabalho cá, vou podando umas árvores, lavrando." Chama-se Nuno Centurião, tem 37 anos. Viver do que produz a quinta é impossível. "Vendo uns litritos de azeite e mais nada. Mesmo criar gado é complicado."

O grupo aumentou, novos e velhos agora, a conversa estava na dificuldade em conseguir uma consulta no centro de saúde. Depois veio o tema dos transportes.

- Há camioneta às 8h30 para Penamacor. Nos tempos da escola, é todos os dias; nas férias, é às segundas, quartas e sextas. Chega-me e sobra-me - defende Ana.

- Isso é um serviço que o Estado devia assegurar todos os dias. E quanto se paga? - pergunta Nuno.

- São dois euros e cinco cêntimos para lá e outro tanto para cá.

- É caro, para os velhos é caro.

Será mais um custo de se viver no interior.

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