"Deve ter acontecido há milhares de anos ou noutro planeta"
O leitor guarda memórias de quando leu um livro importante. O escritor guarda memórias de quando o escreveu. A biografia de A Costa dos Murmúrios, um dos primeiros livros a confrontar-nos com as feridas do fim do império, passa por Moçambique, onde decorre a narrativa, mas também pelo Algarve, onde Lídia Jorge tinha uma janela para a casa de um combatente da I Guerra enquanto escrevia sobre a Guerra Colonial, e a escrita ganhava a urgência do testemunho. Aos sábados regressamos a alguns livros e às histórias que não ficaram impressas
É difícil dizer onde e quando nasce um livro. Se não é no momento em que o escritor põe a caneta no papel, ou tecla numa máquina de escrever ou num computador, é no momento em que teve uma ideia para uma personagem ou para uma cena? Ou o livro começa antes de o escritor o imaginar ou sequer de imaginar que o irá escrever, quando vive determinados acontecimentos?
A Costa dos Murmúrios não poderia ter existido sem determinadas cenas que nunca chegaram a ser escritas:
1. Lídia Jorge era professora do liceu em Moçambique, para onde se tinha mudado no final dos anos 1960, acompanhando o marido, oficial pára-quedista. Nesse tempo, morria gente. Os maridos das outras mulheres, por exemplo. Uma noite, estava numa sessão de cinema e vieram contar-lhe que um major tinha morrido. Ela era amiga da mulher do major e saiu imediatamente do cinema. Chegando a casa do major, estranhou não ver ninguém. Bateu à porta. A mulher do major abriu. Estava sozinha e foi nos olhos de Lídia Jorge que ela percebeu que o marido tinha morrido.
2. O filho de Lídia Jorge nasceu em Moçambique. Nasceu precisamente à meia-noite, às zero horas, e ela teve de escolher qual seria o dia do seu aniversário: se o dia que acabava ou o dia que começava. Lídia Jorge tinha dado à luz numa sala onde só havia mulheres negras. As moçambicanas não gritavam nem faziam exercícios de respiração. Diziam: aiuééé, aiuééé.
3. Depois de passar dois anos em Moçambique, e depois do 25 de Abril e do final da Guerra Colonial, ao tomar o caminho do aeroporto para regressar a Portugal, o olhar de Lídia Jorge não ia para as árvores, a terra, o mar, essas cores de África, mas para as casas - algumas delas construídas recentemente como se o império nunca tivesse estado ameaçado - e reparava que muitas janelas já não tinham vidros.
Por outro lado, A Costa dos Murmúrios não existiria sem uma cena que teve de ser escrita, quase tal e qual como se tinha passado - contada era das mais inverosímeis: choviam gafanhotos.
Gafanhotos
De "Os gafanhotos", primeira parte de A Costa dos Murmúrios:
"Acesas abruptamente, as lâmpadas começaram a perder a intensidade, a perder, a perder, e dentro de instantes, o seu palor era extremamente dúbio e singular.
"Estão a ficar verdes!"
"Completamente verdes! O que estará acontecendo?" (...)
O major apontou com o pingalim - "Vejam, é uma nuvem de gafanhotos que passa abaixo do nível superior do [hotel] Stella. (...) Ouvem o barulho das asas? (...)
Por instantes, porém, o verde-limo da luz era tão vivo que conseguia anular os objectos vermelhos do terraço. Havia-os - alguns carros de encaixar de crianças, um ramo de rosas que sobejara do dia anterior, o fio de sangue que ressumava da orelha da rapariga batida pelo marido e que ia caindo à praia, tudo isso era vermelho. (...)
"Repare, Senhor Comandante", disse o major dos dentes amarelos. "São fogueiras que os nativos acendem para nelas assarem este tipo de insectos. Esta noite é para eles uma noite de grande manjar!" - O Comandante deixou-se rir despreocupadamente." (A Costa dos Murmúrios, Dom Quixote, 2008, págs. 32-34)
Da entrevista com Lídia Jorge, na sua casa de Lisboa, 24 anos depois de ter publicado A Costa dos Murmúrios e 38 anos depois de ter regressado de Moçambique:
"Estava num encontro com militares e mulheres de militares no lobby de um hotel e lá fora havia uma praga de gafanhotos imensa. Era de noite e à volta dos candeeiros viam-se manchas verdes. Ao longo da marginal, os africanos estavam felizes e faziam fogueiras e estavam grelhando gafanhotos. Era tão sublime ver as pessoas gingando e comendo aqueles gafanhotos. Nós ali dentro; lá fora, escuro, as chamas e verde. As janelas tinham uns cortinados vermelhos; plasticamente era muito bonito. E então alguém de dentro disse: "Venham ver os selvagens que estão a comer gafanhotos." E nós estávamos a comer camarões. E eu disse: "Nós também somos selvagens". E criou-se ali uma confusão. E foi com essa imagem e com a memória muito forte desse confronto que comecei A Costa dos Murmúrios. O vidro e o cortinado da janela faziam uma separação entre os de dentro e os de fora, e nós até estávamos tão próximos."
Grifos
(Grifo: Figura mitológica com cabeça de águia e corpo de leão, por vezes interpretado como o rei dos animais.)
Em O Grifo, primeira versão nunca publicada do que viria a ser A Costa dos Murmúrios, havia uma operação militar no mato com o mesmo nome: "grifo" sugeria ferocidade e os soldados em missões precisavam de acreditar na sua própria ferocidade. Em O Grifo havia mais homens do que mulheres e a acção decorria naquilo a que se costuma chamar o teatro das operações. Esses homens tinham sido construídos a partir de homens reais com as suas narrativas que eram também reais embora não fossem necessariamente verdadeiras. O Grifo foi escrito depois de Lídia Jorge passar muitas horas no Museu Militar, lendo documentos e procurando saber minúcias da Guerra Colonial, incluindo o funcionamento das armas. Em O Grifo, Lídia Jorge tinha conseguido o objectivo de escrever sobre a violência ou sobre o que a violência pode fazer aos homens com quem nos cruzamos todos os dias.
O Grifo foi posto de lado. Qualquer coisa faltava para que fosse um romance vivo. Quase nada sobreviveu em A Costa dos Murmúrios desse romance com a voz dos homens da geração de Lídia Jorge.
Caranguejos
O caranguejo anda para a frente e volta para trás. O caranguejo anda para os lados, querendo explorar em todas as direcções. O caranguejo esconde-se e reaparece noutro buraco e volta a escavar. O caranguejo é um bicho feio mas "aos olhos de Deus e dos pássaros, a beleza dos caranguejos pardos é um produto muito mais perfeito do que as áleas talhadas dos jardins de Versailles". (A Costa dos Murmúrios, pág. 159).
Se A Costa dos Murmúrios fosse um bicho, não seria o magnífico gafanhoto "verde-limo" nem o esbelto e frágil flamingo a que as personagens principais dos militares fazem tiro ao alvo, mas o feio caranguejo, "belo aos olhos de Deus e dos pássaros".
É a forma de relatar o relato, de voltar às mesmas cenas e de lhes acrescentar outra perspectiva, de mostrar as partidas da memória e as fraquezas da história, que é, segundo Lídia Jorge, o segredo do sucesso de A Costa dos Murmúrios. É essa fluidez - e o entendimento de que a beleza da verdade não existe sem a fealdade das coisas - que faz com que cada mulher, e muitos homens, se possam sentir Helena de Tróia ou Evita.
Conversando com Lídia Jorge, tem-se a impressão de que Helena de Tróia - a fogosa esposa do Capitão Forza Leal, uma daquelas mulheres com uma presença irresistível, simultaneamente bênção e maldição - tem qualquer coisa de Lídia Jorge. Evita, descrita no livro como "o olho", é mais próxima da jovem Lídia Jorge, a "espiã", como a própria autora se descreve: uma jovem cheia de vontade de futuro que estava presa num lugar de "apodrecimento da história".
Mas é a personagem de Eva Lopo que verdadeiramente é Lídia Jorge: a Evita por quem passaram os anos, alguém que olha para trás e que por vezes duvida do que os seus olhos viram. Teria sido mesmo assim? Foi mesmo verdade que se vivia numa colónia e morria gente no mato para defender uma situação insustentável?
Quando foi lançado em 1988, o livro chocou a sociedade portuguesa. Quando a realizadora Margarida Cardoso filmou A Costa dos Murmúrios, 16 anos depois, a ferida tinha começado a sarar. Havia gerações novas a ler o livro, mas continuava a haver muita gente que o lia como se lesse as suas memórias com a sensação de que teriam talvez vivido uma alucinação colectiva. "Agora voltamos a esse momento com a ideia de que tudo isso deve ter acontecido há milhares de anos ou então noutro planeta", diz Lídia Jorge.
Depois de ter encontrado um lugar nos bastidores do teatro de operações, que era nesse tempo o lugar das mulheres, e simultaneamente um lugar para olhar para trás - a voz do livro -, a segunda parte de A Costa dos Murmúrios, a maior parte do livro, foi escrita praticamente num único Verão, o Verão de 1987, no sótão da casa do Algarve de Lídia Jorge. Da janela do sótão, enquanto ia crescendo A Costa dos Murmúrios, Lídia Jorge via deitar abaixo a casa de um lavrador que tinha sido combatente na Primeira Grande Guerra. "Quando era pequena, emocionava-me muito com as suas histórias. Contava tudo de forma muito viva: quando descrevia os canhões fazia pum e atirava-se para o chão", lembra. "Depois ele foi envelhecendo e começou a encurtar as histórias. A última vez que estive com ele, ele disse que só sabia que tinha estado na Primeira Grande Guerra mas que não se lembrava de nada."
E foi por perceber que as testemunhas continuamente desaparecem que lhe ocorreu o título de A Costa dos Murmúrios: "A certa altura deixamos de ouvir as palavras das pessoas, só ouvimos pequenos murmúrios, até que se entra no silêncio." E então A Costa dos Murmúrios - o romance que resistia ao esquecimento e ao embelezamento do tempo - era escrito com grande pressa.
Na próxima semana Middlemarch, de George Eliot