Numa daquelas noites em que dizemos sim a tudo
Por trás de +-0 (Um Acampamento no Subárctico), estão 20 pessoas que se isolaram na Gronelândia. O produtor e uma actriz esquimó contam-nos como.
Em 2009, o encenador suíço Christoph Marthaler esteve em Copenhaga para averiguar da possibilidade de levar à cena uma peça da sua autoria - que anos antes estreara com sucesso em Viena, no edifício transformado de um antigo hospital. Encontrar o lugar adequado (e disponível) na capital dinamarquesa ou nos seus arredores não seria uma tarefa fácil. Mas viria a ter a ajuda de Nicolai Vemming, produtor residente em Copenhaga e que à data desempenhava funções executivas no Real Teatro Dinamarquês. Foram dez dias de visitas a lugares que, aparentemente, já só teriam interesse para a arqueólogos industriais ou especuladores imobiliários; mas foram também dias de muita conversa e de troca de opiniões.
Vem isto a propósito de como e quando surgiu a ideia para +-0 (Um Acampamento no Subárctico), que hoje e amanhã sobe ao palco do Centro Cultural de Belém, no âmbito do Festival de Almada.
"Eu acho que o Christoph [Marthaler] nunca se tinha apercebido de que a Dinamarca, geograficamente, é um país muito pequeno - que no fundo é como a Suíça, o país onde ele nasceu. E ficou impressionado com a relação que a Dinamarca, um país tão pequeno, mantém com a Gronelândia, que é a maior ilha do mundo. O seu fascínio pela Gronelândia parecia ir aumentando de dia para dia. Ele falava na Gronelândia mesmo quando andávamos a procurar lugares para a peça", conta Nicolai Vemming ao Ípsilon, na esplanada do novo e imponente edifício do Real Teatro Dinamarquês. "Até que um dia", prossegue, "quase no fim da sua estada aqui, ao jantar, já muito tarde [risos], me perguntou se eu achava que seria possível fazer lá qualquer coisa. Devia ser uma daquelas noites em que dizemos sim a tudo, e eu, sem hesitar e cheio de confiança, disse-lhe que sim."
Corria 2009, e todo o trabalho preparatório, até ao dia da partida, demorou ainda dois anos. O projecto exigia bastante dinheiro, e só seria possível obtê-lo estabelecendo parcerias com vários grupos de teatro espalhados pela Europa. Nicolai Vemming, que desde essa altura gere a produtora Unlimitedarts, conseguiu, não sem dificuldades, o apoio de algumas instituições (Nordic Culture Fund, Danish Arts Council), festivais (Bergen, Londres, e Hamburgo), e teatros como o Thèâtre de la Ville (Paris), o Volksbühne am Rosa-Luxemburg-Platz (Berlim), o Stockholms Stadsteater, o Det Kongelige Teater (Copenhaga), entre outros. Os actores e os técnicos são originários de meia dúzia de países (Alemanha, França, Inglaterra, Suíça, Dinamarca e Áustria). "Talvez a maior das dificuldades", diz-nos a actriz Gazzaalung Qaavigaq, de origem inuit, "foi o facto de não existirem instituições na Gronelândia": "Toda a logística teve de ser preparada antes, um pouco por toda a Europa, e depois transportada para lá. Mas o desafio maior foi eles terem partido sem terem uma ideia do que queriam fazer. Apenas sabiam que queriam fazer qualquer coisa, e levar isso à cena, em Nuuk, na Casa da Cultura, como veio depois a acontecer, em Abril de 2011."
O produtor Nicolai Vemming sorri de maneira cúmplice ao ouvir as palavras da actriz gronelandesa. E acrescenta: "Quando aterrámos na Gronelândia não sabíamos como é que aquilo ia evoluir, não tínhamos nenhuma ideia, apenas a vontade de fazer qualquer coisa ali, de começar e ver o que é que aquilo ia dar. Mas era também o ambiente, a sensação de liberdade como só ali se experimenta. Temos todos ainda esse fascínio pela Ultima Thule [lugar distante localizado na fronteira do mundo conhecido da geografia medieval; pelo uso comum, passou a designar a Gronelândia], mas quando se chega lá, quando se sai do avião e se olha em redor, é qualquer coisa completamente diferente de tudo o que se possa imaginar. E será sempre diferente de pessoa para pessoa, porque é uma experiência pessoal, é algo íntimo, irrepetível. Esta peça só poderia ter sido produzida ali, nos gelos e no silêncio da Gronelândia, em mais nenhum lugar do mundo. Isso quer dizer alguma coisa: que somos também o lugar onde estamos. A língua gronelandesa, algumas canções tradicionais, surgem na peça, mas também lá estão outras línguas, o francês, o inglês e o alemão."
No frio da noite árctica
Desde a estreia em Nuuk, +-0 (Um Acampamento no Subárctico) foi representada 32 vezes, em várias cidades europeias. Apesar do título, e de ter sido idealizada e escrita na Gronelândia, não se trata de uma peça sobre aquela ilha gelada. No fundo, como explica Vemming, "é uma colagem de textos, que inclui, entre vários outros autores, também o Jorge Luis Borges e o Alfred Döblin". Mas obviamente que o tema das alterações climáticas não foi contornado - elas estavam lá, visíveis, e isso também afectou toda a equipa. Diz Gazzaalung Qaavigaq, que viveu quase três décadas na Gronelândia até se ter mudado para Copenhaga há cerca de 20 anos: "A vida das pessoas na Gronelândia é mais directamente afectada pela natureza do que as nossas vidas aqui na cidade. Relaciona-se muito com o gelo e com a neve. O transporte, por exemplo, ir de um lugar para outro, depende da qualidade do gelo. Se ele não for bom, simplesmente não podemos ir, os trenós não passam. Não são como os carros nas estradas [risos]."Depois de ter aterrado na Gronelândia, toda a equipa realizou, durante dez dias, um workshop musical em Ilulissat, um lugar a Norte de Nuuk, a capital administrativa da ilha. Os artistas estudaram música indígena e como ela poderia ser articulada com trechos de clássica e de outros géneros (Mozart, Strauss, Purcell, The Police, John Cage, Procol Harum...). +-0 (Um Acampamento no Subárctico) abre com uma história tradicional cantada (e contada) por Gazzaalung Qaavigaq. A ideia é transportar o espectador para o ambiente da ilha gelada.
Queremos saber como tinha sido o relacionamento dos membros da equipa durante os dois meses de quase isolamento, cercados pela noite árctica e pelo frio. Nicolai Vemming responde entre sorrisos: "Houve desde o início o receio de que as coisas começassem a correr mal dentro do grupo. Era gente de diferentes origens, que não se conhecia, com experiências muito variadas. Então, tive o cuidado de carregar dezenas de DVD para que as pessoas pudessem entreter-se à noite, se assim quisessem. Mas acredita que ninguém viu sequer um? Para toda aquela gente, foi talvez a primeira vez, nas suas carreiras de quase 20 anos, em que apenas se focaram numa coisa, numa peça. Vinham quase todos - actores e técnicos - de Paris, de Berlim, de Viena. Nessas cidades tens sempre muito que fazer: de manhã podes estar a trabalhar para a rádio, à tarde para a televisão e à noite no teatro."
Os dois meses de isolamento na Gronelândia não foram tão duros como imaginavam, continua Vemming: "Havia muitos receios antes da partida, mas nada aconteceu. As pessoas gostaram, foi como se tivessem descoberto um outro lado da vida. A escuridão esteve presente desde o começo, depois foi aliviando, e quando estreámos a peça estava um lindo dia de sol e já não estava frio. Foi duro sairmos de lá. Toda a gente ficou com vontade de regressar. Mas nunca regressaremos ao mesmo lugar que vivemos nessa época."