Das Caxinas para o grande écrã pela mão de Canijo
Obrigação, "fragmento" de uma longa a vir sobre a comunidades de pescadores, criou o acontecimento no Curtas
Foi a enchente que Vila do Conde ainda não tivera este ano - e foi-o porque a comunidade das Caxinas foi em peso examinar o retrato que João Canijo dela faz. Que a sessão tenha começado já depois da meia-noite prevista não fez ninguém arredar pé; que a afluência (e a confusão de entradas e saídas de sempre que a lotação esgota) tenha forçado muita gente a ser chutada para o segundo balcão não levou a grandes resmungos.
Não é todos os dias que as Caxinas "saltam" para o grande écrã - e Obrigação, o documentário que Canijo foi rodar à comunidade com uma equipa de estudantes do programa Estaleiro do Curtas, com o aval e a colaboração dos pescadores, passou a "prova de fogo", com gargalhadas e aplausos. Mesmo se, como o realizador fez questão de adiantar, o que se viu não fosse "o" filme, antes o "filme possível" neste momento. 55 minutos que são apenas um fragmento (coerente, consistente, mas apenas um fragmento) de uma longa que há-de surgir mais para o fim do ano.
Obrigação é, apesar da presença da actriz Anabela Moreira, um documentário imersivo, "puro e duro". E é também um filme que se inscreve em simultâneo na ancestralidade dramática e no olhar sobre os universos femininos que tem marcado a mais recente e fulgurante fase do cinema de Canijo. O olhar é sobre uma comunidade de pescadores, sim, mas filmado pelo "outro lado": as mulheres que são motor, âncora e leme da célula familiar, que "aguentam o forte" enquanto os homens estão no mar. O filme pode ressoar com esse arquétipo recorrente da "mãe-coragem", mas foge à tragédia dessas ficções para explorar uma tonalidade mais luminosa e menos austera.
A "obrigação" do título é o tradicional papel feminino na comunidade: ser ao mesmo tempo esposa, mãe e mulher de negócios, tão à vontade a fazer pequenos mimos para receber o marido como a discutir na lota o preço do linguado ou a fazer contas aos ganhos da semana. Anabela Moreira é, em todo este processo, o "pauzinho na engrenagem" essencial para que o universo se abra ao espectador; simultaneamente intrusa e amiga, investigadora que procura perceber e iniciada que descobre os segredos desta camaradagem feminina, é através dela que vemos as Caxinas por dentro e encontramos a humanidade que os olhares apressados e os lugares-comuns muitas vezes não deixam ver.
E esse frémito da vida real, potenciado pela imersão dos longos planos e da unidade de tempo (o filme passa-se no interregno entre a chegada de uma faina e a partida para outra), passou intacto para a sala, com os risos e as "bocas" dos espectadores como expressão máxima do reconhecimento. Obrigação pode ainda não estar acabado (e sente-se essa dimensão de "excerto" de que Canijo fala), mas já é um filme completo.