Olivier Assayas não quer o conforto do cinema

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O próximo filme de Olivier Assayas, Après Mai, é “abertamente autobiográfico”, diz o cineasta: “Fiz parte de uma geração que teve de se reinventar depois da derrota”

É uma das grandes mais-valias de um festival como o Curtas, que decorre até domingo em Vila do Conde: podermos sentar-nos a conversar calmamente com um cineasta que, em Cannes ou Veneza ou Berlim, estaria inacessível por trás de uma espessa cortina de assessores de imprensa. O francês Olivier Assayas veio passar o fim-de-semana a Vila do Conde para mostrar alguns dos seus primeiros filmes (Désordre, de 1986, e Paris Desperta, de 1991) e dos seus trabalhos sobre música (como o documentário sobre os Sonic Youth, Noise, de 2006) e para falar com o público do Curtas. Algo de quase impensável para qualquer outro cineasta francês ou americano, e sobretudo para alguém como Assayas, cujo último filme, Carlos (2010), a história do terrorista Carlos, o Chacal, começou como série televisiva e acabou por tornar-se um acontecimento à escala global. Foi precisamente por aí que começou a conversa com o realizador e argumentista parisiense de 57 anos, antigo crítico de cinema, autor versátil de filmes tão clássicos como Os Destinos Sentimentais (2000) e Tempos de Verão (2008) e de objectos tão pós-modernos como Irma Vep (1996) ou Porta de Embarque (2007).

Não é muito normal que um cineasta com a sua carreira aceite o convite de um pequeno festival para apresentar os seus filmes mais antigos ou menos conhecidos.

Tenho sempre a sensação de que o cinema, como o mundo, se transforma constantemente, e não tenho vontade de me separar daquilo que acontece e se inventa no cinema. Gosto muito de mostrar os meus filmes a jovens cinéfilos, em primeiro lugar porque nada é menos elogioso do que mostrar os filmes que se fizeram há 20 anos! (sorriso) Mas além disso continua a interessar-me ouvir falar de cinema. Tenho curiosidade em ver o modo como as pessoas olham, nos festivais, e sobretudo em pequenos festivais de curtas-metragens ou de cinema experimental, sítios onde o cinema de amanhã se inventa. Há sempre qualquer coisa a descobrir numa altura em que a ideia e a percepção do cinema se transformam. Estamos num período simultaneamente apaixonante e ainda um pouco enigmático ao nível da transformação dos modos de ver o cinema, dos novos caminhos da cinefilia, da relação com o cinema do passado...

Curiosamente, os seus filmes mais clássicos são feitos precisamente em momentos de transformação - Os Destinos Sentimentais, Tempos de Verão, Carlos...

É verdade. Sempre gostei de uma forma de claridade, digamos, figurativa do cinema, e quando tenho a sensação de que as questões elementares do cinema se diluem, se tornam difusas, tenho vontade de me recentrar no meu desejo de cinema. Mas sempre num processo dialéctico. Nunca pensei nos meus filmes como feitos unicamente para alimentar a minha obra, são sempre feitos de maneira mais ou menos visível para dialogar com o presente do cinema.

Mas esse diálogo existe também com a sua própria carreira. É impossível ver Carlos ou Tempos de Verão sem sentir o seu contraste com Clean (2004) ou Porta de Embarque...

Absolutamente. Sempre tive a impressão - sem querer parecer pedante - de fazer uma obra, no sentido de um conjunto de filmes que dialogam entre si. Sempre considerei que o meu tema é o mundo, mas no fundo é mais a percepção do mundo, determinado pela convicção de que a realidade muda de forma segundo o ângulo em que nos colocamos.

Os seus filmes falam também do poder, da percepção como qualquer coisa dependente do poder que se tem ou que se deseja.

Sim, é verdade. Carlos permitiu-me abordar essa questão da maneira mais realista e pragmática, do ponto de vista da geopolítica. Isso tem muito a ver com a sua duração [5h30 na versão televisiva, 2h40 na versão de cinema], porque me permitia falar dos fluxos que estruturam a política do mundo contemporâneo, da política enquanto mecanismo, enquanto linguagem secreta de uma época. E uma personagem como Carlos vem de uma forma de idealismo cujo percurso revela o laço entre a geopolítica, as formas mais extremas do esquerdismo e o idealismo de uma época, num tabuleiro de xadrez que é o da Guerra Fria. Creio que através disso consegui dar uma forma romanesca, concreta, a coisas que já havia tratado de modo mais abstracto e que têm a ver com as relações de poder.

Fala de idealismo e isso é igualmente algo muito presente no seu cinema.

Vai aliás ser o tema do meu próximo filme, que é abertamente autobiográfico, onde se fala do idealismo dos anos 1970 [Après Mai, em fase de finalização]. Cresci e fui adolescente nos anos 1970, em que tínhamos fé numa revolução que viria, e a convicção de que essa revolução chegaria e faríamos parte dela. Fui constituído pela ideia de que o indivíduo tinha uma possibilidade de mudar o mundo, e de que a nossa geração tinha a possibilidade de mudar o mundo sem trair os seus ideais nem trair a relação com a poesia. Na França, a relação com a revolução está profundamente ligada à relação com a poesia. E isso é qualquer coisa que se perdeu, já não existe hoje. Para mim, numa idade em que fazemos escolhas que vão determinar a nossa vida, havia a sensação de que essas escolhas eram determinadas forçosamente pelo idealismo.

Mas os seus filmes não falam também do modo como esse idealismo foi traído, ou como mudou?

Digamos que o real é incontornável (sorriso), não lhe podemos escapar. A questão é antes como vamos fazer o nosso caminho pelo meio das aberturas fascinantes e perigosas da utopia. Talvez isso venha no fundo de eu ter vivido a desilusão dos sonhos esquerdistas e de ter feito parte de uma geração que teve relativamente tarde de se reinventar depois da derrota, do afundamento da fé na revolução, nos valores do esquerdismo. Vivi isso e talvez seja algo que reproduzo nos meus filmes. Tenho a consciência de que há algo de precioso que se define na juventude e com o qual, mesmo quando se cresce, quando se amadurece, não temos o direito de cortar. Por isso, acredito que, à minha maneira, através dos meus filmes, consegui escapar a essa maldição da idade adulta de renunciar à fé nos ideais da juventude.

É um cineasta extremamente cosmopolita: rodou regularmente em Hong Kong, no Japão, nos EUA... É muito raro para um cineasta europeu.

Aprendi com os meus filmes a rodar no estrangeiro, a fazer filmes que parecem muito mais caros do que realmente são, a trabalhar com uma equipa que é sempre a mesma e que já adquiriu esses reflexos. Mas aprendi igualmente a interacção com outra cultura, o modo como o que essa cultura, que é cinematográfica mas também técnica e prática, me pode trazer algo. Quando rodo em Hong Kong ou no Japão, há o meu olhar sobre a sociedade asiática e o que a minha experiência de viajante me dá sobre o mundo contemporâneo, mas há também uma lição que retenho no modo de praticar o cinema. Por exemplo, quando abordo a produção de Carlos, sei que há uma batalha essencial que vou ter de ganhar na minha relação com os produtores do filme: não rodar onde qualquer outro cineasta teria ido rodar, a Marrocos. Aí existem infraestruturas, é mais confortável, é menos perigoso, mas há tudo à excepção da verdade do Médio Oriente. Não gosto do conforto do cinema, não gosto de rodagens com caravanas para os actores ou realizadores. Não gosto que haja demasiado dinheiro para fazer os filmes. Nunca estou tanto à vontade como quando estou encostado à parede com pouco dinheiro. É por isso que gosto da série B, que é inteiramente construída sobre a necessidade de ultrapassar pela invenção, pela reinvenção, as limitações económicas. Quando rodamos no conforto caímos no cinema burguês.

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