Ditadores argentinos condenados por roubo sistemático de bebés
Os ex-Presidentes foram responsabilizados criminalmente pela “prática sistemática e generalizada de subtracção, retenção e ocultação de menores de idade”: mais de 400 crianças que, durante os anos da ditadura, nasceram na prisão e foram retiradas às mães, prisioneiras políticas do regime.
A sentença será acrescentada à pena perpétua que ambos estão a cumprir, por crimes contra a humanidade praticados durante os seus governos.
Com este veredicto, o Tribunal Oral Federal de Buenos Aires põe fim a um mega-processo sobre um dos crimes mais silenciosos da ditadura, que mais feridas abriu na sociedade argentina, e que demorou mais de 15 anos a ser julgado.
O tribunal deu como provada a denúncia apresentada pela organização das Avós da Praça de Maio no final de 1996, estabelecendo que o rapto de crianças para serem educadas por “boas famílias” militares, se tratou de uma política deliberada – um capítulo do “plano geral de aniquilação lançado sobre parte da população com o argumento de combater a subversão”, diz a sentença.
À porta do tribunal, centenas de pessoas que assistiam à transmissão em directo da sessão num ecrã gigante, reagiram com aplausos, lágrimas, gritos e cânticos às palavras da presidente do colectivo, María del Carmen Roqueta.
Entre elas, Macarena Gelman, criada por um agente da polícia no Uruguai, classificava a decisão como “histórica, um sinal da justiça e do progresso da Argentina”. Os seus pais foram detidos em 1976: a mãe levada para uma prisão clandestina no Uruguai e desaparecida desde então, o cadáver do pai encontrado num rio.
Os juízes ouviram mais de 200 depoimentos dando conta de histórias semelhantes. Um dos que mais impressionou foi o da filha de Cecília Viñas, desaparecida em 1977, quando estava grávida de cinco meses. Em 1983, a mãe começou a receber telefonemas da filha, também chamada Cecília – conversas muito breves, que provavam que a filha ainda estava viva e que por isso começou a gravar. Numa das oito chamadas, Cecília perguntava pelo paradeiro do seu filho: a fita, reproduzida no tribunal, é reveladora da surpresa e o choque de mãe e filha, ao perceberem que nem uma nem outra sabiam nada da criança. “É a única coisa que me resta dela, um fio de voz numa gravação, a perguntar pelo menino, se era eu que o tinha...”, resumiu a avó.
Jorge Videla, que contestou a autoridade do tribunal e assistiu impassível à leitura da sentença, recusou qualquer responsabilidade no alegado plano de apropriação de crianças e classificou os bebés roubados como “danos colaterais” da guerra da ditadura contra os dissidentes de esquerda que apelidou de terroristas.
“O que é certo é que todas as parturientes aludidas pelo processo eram militantes activas da máquina do terror, e muitas delas utilizaram os seus filhos embrionários como escudos humanos no momento de operar como combatentes”, declarou.
Os antigos generais e chefes do governo militar eram os nomes mais sonantes de uma lista de arguidos também ligados ao antigo regime. Um deles, Jorge Eduardo Acosta, conhecido pela alcunha “El Tigre”, dirigia o centro o centro clandestino de detenção e tortura de Buenos Aires, instalado na Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), de onde normalmente só se saía para a morgue – supõe-se que mais de 5000 pessoas tenham passado por ali antes de “desaparecer”. Foi condenado a 30 anos de prisão. Dois dos seus funcionários, Juan Antonio Azic, agente dos serviços secretos, e o obstetra Jorge Magnacco, receberam penas de 14 e 10 anos, respectivamente.
Santiago Riveros, director do hospital militar Campo de Mayo, cumprirá 20 anos de prisão, e Antonio Vañek, vice-almirante destacado em Washington, foi condenado a 40 anos.
Finalmente, Susana Inés Colombo, ex-mulher do poderoso capitão Victor Gallo, foi punida com uma pena de cinco anos. Os juízes consideraram que a mulher sabia que um rapaz que o marido trouxe para casa, dizendo que tinha sido abandonado no hospital militar de Campo de Mayo, era na realidade filho de desaparecidos.
O menino, Francisco Madariaga, agora com 34 anos, foi um dos queixosos do processo: conseguiu encontrar o seu pai e recuperar a sua identidade há dois anos, através da realização de testes genéticos.Desde que as Avós da Praça de Maio começaram a investigar os desaparecimentos dos seus filhos e o roubo dos seus netos, já foram “resgatadas” 105 crianças – dessas, só cinco ainda puderam conhecer os seus pais biológicos.
Mais de 300 famílias depositaram amostras de ADN no Banco Nacional de Dados Genéticos na esperança de reencontrar os seus entes queridos.
O general Jorge Rafael Videla é muitas vezes descrito como “o ditador mais cruel da América Latina”. Chegou ao poder em 1976, na sequência de um golpe de Estado, e o seu revolucionário “processo de reorganização” do país ficou marcado pela violenta repressão dos opositores políticos – detenções ilegais, tortura e assassínios. Mais de 30 mil pessoas desapareceram durante o seu governo, estimam organizações de defesa dos direitos humanos.
Julgado por terrorismo de Estado e condenado a prisão perpétua, em 1985, foi indultado cinco anos mais tarde. Em 2010, a declaração de inconstitucionalidade das leis de perdão e indulto pelo Supremo da Argentina abriu a porta a uma nova acusação, pelos crimes contra a humanidade da ditadura argentina. Foi condenado a prisão perpétua, tal como Reynaldo Bignone, o homem que assumiu o governo depois do seu afastamento, em 1982, e que representa já o estertor do regime, depois da derrota contra o Reino Unido na guerra das Malvinas/Falkland. Antes de dissolver a junta militar e convocar eleições, em Outubro de 1983, Bignone mandou destruir todos os arquivos relativos às detenções, torturas e outros crimes da chamada “guerra suja” de Videla.
Notícia substituída às 18h30. O novo texto acrescenta informação mais completa.