"O Ernesto de Sousa estava sempre no futuro"

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PAULO PIMENTA

Isabel Alves A viúva do artista e autor das iniciativas agora recordadas na Casa de Serralves evoca a sua relação com Ernesto de Sousa e a "noite especial e fantástica" vivida no final dos anos 1960, em Lisboa

Não se lembra já da data da sessão Nós não estamos algures. Sabe que foi no início de Dezembro de 1969, "porque logo a seguir saímos para Inglaterra, por causa dos meus estudos". Mas retém bem na memória essa "noite especial e fantástica" que teve ao centro Almada Negreiros, convocado por Ernesto de Sousa, o seu professor e, depois, companheiro de vida. Após a morte deste, em 1988, Isabel Alves (n. Lisboa, 1944) decidiu perpetuar a sua obra através de acções como o depósito de partes do espólio em instituições nacionais, a constituição de uma bolsa de criação em Nova Iorque e o lançamento de um Centro de Estudos Multidisciplinares Ernesto de Sousa (CEMES).

Como está a viver esta reconstituição da sessão de 1969 em que também participou?

Tem sido a oportunidade de recuperar e duplicar os materiais, muitos dos quais em risco. Tenho-os todos em minha casa. Não consegui ainda que nenhuma instituição se interessasse pelo espólio do Ernesto e o guardasse, o salvasse. E imenso, com fotografias, filmes, cartazes...

É possível quantificá-lo?

São milhares de peças... Só cartazes, tenho cerca de mil. E outras tantas fotografias, negativos e diapositivos. Tenho uma boa parte depositada na Biblioteca Nacional, em óptimas condições. Os filmes estão na Cinemateca. Muitas fotografias estão no Arquivo Nacional de Fotografia. E acabei de fazer uma doação de 17 esculturas da arte popular de Franklin [Vilas Boas, 1919-1968] ao Museu de Etnologia, que vão ficar em exposição permanente. Mas estou com muita expectativa quanto ao resultado desta recriação em Serralves. Há uns jovens que estão a reinterpretar os textos e a refazer a encenação...

Que memória guarda dessa noite em Algés?

Foi muito especial. Todo o trabalho foi feito em conjunto: as soluções que encontrávamos para fazer os cartazes, para os dependurar no tecto, com as letras pintadas por nós... Todo este trabalho desenvolvido por um grupo de amadores. Foi uma experiência muito intensa, que começou muitos meses antes, na companhia dos alunos do Ernesto na Sociedade Nacional de Belas Artes [SNBA]. Conhecíamos muitas pessoas, algumas da companhia de teatro 1.º Acto.

Essa noite foi fantástica... A exposição [de Serralves] vai ter um catálogo, e nele vão estar reproduzidas opiniões de pessoas que estavam lá, como o Óscar Lopes, o Jorge Peixinho e outros, com os depoimentos recolhidos à saída. Foi uma grande euforia, que acabou num jantar. Era sempre assim que acabavam as nossas acções e discussões teóricas. A festa fazia sempre parte do acontecimento, e da criação. Vivíamos sempre muito em conjunto, e muito intensamente.

Almada Negreiros gostou do espectáculo?

Sim. Mostrou-se satisfeito. Há uma gravação em que a Leonor Pestana, a rapariga que dizia as poesias dele, lhe perguntava, e ele responde: "Você viu eu estar a acenar com a boina?!" Era o sinal de que achava que ela tinha estado muito bem.

Ernesto de Sousa foi preso várias vezes pela PIDE. Mas, dessa noite, não há registo de problemas.

Não que eu saiba. Ao contrário do que aconteceu com o Dom Roberto, em que foi preso por causa de uma entrevista sobre o filme. Na exposição que está em Guimarães [Documentando Dom Roberto, Centro para os Assuntos de Arte e Arquitectura, até 11 de Julho], há um relatório de um "pide" acerca de uma sessão nos Fenianos, no Porto, em que escreve que estavam umas 150 pessoas, estava o Óscar Lopes, mas não estava a Ilse Losa e o marido. Eles sabiam quem ia ou não. O "pide" descreve em oito páginas tudo o que se passou: as perguntas e as respostas.

Como é que conheceu Ernesto de Sousa?

Fui aluna dele na SNBA, e pronto: embarquei nessa aventura com ele, que era a criação permanente. Ele tinha um espírito Fluxus: estar em criação permanente, nas várias disciplinas. E tinha contactos internacionais com pessoas desses movimentos, como o Robert Filliou. Em 1972 ou 73, fomos de automóvel à Jugoslávia, passámos por Nice, estivemos com o Ben Vautier, e também com um dos maiores elementos do Fluxus, o americano George Brecht, que estava em casa do Filliou. Almoçámos juntos. Houve logo troca de livros, de informação.

Como era Ernesto, como pessoa?

Um frenesim permanente. Tivemos algumas colisões. Ele nunca estava no presente, estava sempre no futuro. Porque o presente já não lhe interessava, estava feito. E era eu que fazia o presente [risos]. Por exemplo, quando eu tinha dúvidas, perguntava-lhe para que parede eram aqueles slides, como se ia fazer, com que excerto de música, mas ele já estava era a falar do projecto que vinha a seguir.

O autofinanciamento era um dos princípios de acção.

Sim. Nunca tivemos dinheiro. Mas nunca nos faltou dinheiro para viajar, para comprar livros. Mas, por exemplo, para o [filme sobre] Almada, já foi complicado. Esteve parado muito tempo, só foi fechado em 1983. Ele fazia todos os anos o relatório do que faltava fazer. O que será também interessante, nesta exposição, será ouvir a entrevista que o Vítor Silva Tavares fez ao Almada para o filme. O Ernesto convidou-o e ao Mário Castrim para as entrevistas. O Almada diz coisas fabulosas. Era um conversador fabuloso.

As filmagens registam também a passagem de Almada pelo Zip-Zip.

Sim. O Ernesto cortou essa e outras passagens na versão final, mas nós vamos mostrar essas partes. Ele cortou [também] todas as partes em que aparece. Teremos uma parede só para esse material rejeitado.

Não pensou na possibilidade de uma reedição de Almada, Um Nome de Guerra integrando essas partes? Fazer uma versão aumentada do filme? Tem os direitos, poderia fazer isso...

Tenho os direitos. Mas, eticamente, sinto que não devo fazer uma montagem diferente da do Ernesto. Ele quis o filme assim.

A sessão no teatro 1.º Acto foi designada como uma acção de mixed-media, que é a expressão mantida agora no programa de Serralves...

Há quem lhe queira chamar agora uma acção multimédia. Mas isso está muito conotado com as lojas de computadores e coisas assim. As palavras evoluem, e o "multimédia" passou a ter um sentido não criativo. Por isso se manteve mixed-media. Também se poderia dizer intermédia. Após a morte do Ernesto, criei uma bolsa, a Experimental Intermedia Foundation [com apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e da Gulbenkian], que todos os anos permite ao vencedor ir três meses para os Estados Unidos. Os membros do júri defendem que o termo correcto é intermédia. Mas aqui preferiram manter o termo original, mixed-media.

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