Neneh Cherry, livre e crua

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Passaram 16 anos desde que ouvimos Neneh Cherry cantar num disco de fio a pavio. Juntando-se ao trio de free jazz escandinavo The Thing, dá-nos um delicioso disco em que as canções têm de saber levar pancada

Foram praticamente três acontecimentos num só. Primeiro, em Outubro de 1995, uma morte - a de Don Cherry, cornetista/trompetista norte-americano, nome cimeiro do jazz, companheiro habitual de Ornette Coleman, padrasto de Neneh Cherry. Ela chamou-lhe sempre pai, que o biológico foi uma espécie de cameo na sua vida. Depois, um disco para superar o desaparecimento de Don, chamado Man, lançado em 1996; por último, ainda no mesmo ano, um nascimento - o da filha Mable, a terceira saída de si. Os três acontecimentos juntos levaram a cantora - a quem chegaram a chamar "Madonna negra", augurando-lhe um triunfal percurso ascendente na cena pop mundial - a afastar-se dos estúdios e dos palcos durante vários anos. "Vou apenas olhar para os planetas de uma outra dimensão por um bocado", pensou então. Man, por mais belo que fosse, era já uma reacção epidérmica à morte de Don e consequência de uma exasperação irreprimível com a evolução da música pop. Neneh Cherry não queria fazer parte do circo.

Acedeu, no entanto, a fazer parte dos cirKus, projecto discreto impulsionado pelo marido, Cameron "Booga Bear" McVey - e em que participou também a filha mais velha, Tyson -, coisa simples capaz de ser operada a partir de Malmö, na Suécia, onde o casal decidira instalar-se para cuidar da prole, sem ter de embarcar nem em grandes digressões nem em grandes explicações. Nos entretantos, Neneh ia espalhando a sua voz em discos de Pulp, Trilok Gurtu, Groove Armada, 1 Giant Leap e Gorillaz - quaisquer álbuns dos quais pudesse desligar-se assim que a participação ficasse registada. Até que a agitação começou a apoderar-se de novo da mulher que fugira aos 14 anos da sua casa em Nova Iorque para se juntar ao grupo punk londrino The Cherries. Hoje, Neneh Cherry está de novo em Londres. Mas desta vez a cumprir uma estada de duas semanas, com o objectivo auto-imposto de gravar uma música por dia para aquele que será o álbum do regresso da sua carreira a solo, já sem o peso inibidor da expectativa.

The Cherry Thing encarrega-se de afastar esse peso do caminho ao juntar Neneh Cherry ao trio de free jazz escandinavo The Thing. E, assim, a cantora que a memória colectiva regista sobretudo como voz de 7 Seconds (com Youssou N"Dour) ou de Woman pode finalmente aproximar-se da sua referência primordial - a do pai Don Cherry. Recuemos para se perceber como se chega aqui. Quando, no início da década de 70, Don se mudou para a Suécia com a mãe de Neneh, a pintora Monika Karlsson (mais conhecida como Moki Cherry), dedicou-se a desenvolver estudos em músicas tradicionais africanas e indianas, ao mesmo tempo que participava em concertos locais. A sua presença, a de um dos maiores do jazz americano, geraria toda uma embevecida escola de praticantes nórdicos de free jazz. Por isso, quando Mats Gustáfsson, Ingebrigt Haker Flaten e Paal Nilssen-Love formaram o seu trio em 2000, fizeram-no em homenagem a Cherry. O nome The Thing, de resto, é o título de um dos temas do seu álbum de 1967, Where Is Brooklyn?

"Quando olho bem para isto é como se tivesse estado suspenso no universo à espera de acontecer". Claro que isto é The Cherry Thing, o quarteto de Neneh com os The Thing, interpretando temas de Stooges, MF Doom, Suicide, Martina Topley-Bird, Ornette Coleman e, claro, Don Cherry. Além de uns quantos originais. "Assim que nos juntámos senti instantaneamente aquele som perdido como parte da minha família". Mas poderia bem não ter acontecido. A abordagem típica em gente como os The Thing implicava um tudo ou nada imediato. A música tinha de acontecer no momento, resultar quando atirada para a frente, sem rede. E o método, menos frequente na vida de Neneh Cherry, poderia criar um embaraço instantâneo. Felizmente, tal não se verificou.

Dor de cabeça

Foi à mesa que surgiu a ideia de a cantora se juntar ao trio, em 2010. "Estava a trabalhar num disco a solo, a escrever canções, a gravar pequenas ideias, a preparar-me para voltar", conta. Até que se afastou uma cadeira para se sentar Conny Lindström, amigo sueco, proprietário de um clube de jazz e que apresentara a música dos The Thing a Cherry logo no início. Começaram a trocar ideias sobre os vários futuros possíveis para Neneh nos anos seguintes. E bateram, emperraram naquela tecla, provavelmente a mais insólita, possivelmente a mais excitante para a cantora. Neneh, a passear por Portobello Road de telefone na mão, recorda: "Eles também estavam interessados e nenhum de nós sabia o que ia acontecer. Para eles era uma direcção completamente diferente porque não me parece que tenham tocado com muitas cantoras anteriormente".

Portanto, sem saberem o que iria acontecer, marcaram "um estúdio minúsculo" em Londres, em Novembro de 2010, depois de uma dificuldade extrema em conciliar as agendas - cada um dos The Thing está envolvido num número de projectos impossível de acompanhar. Puxaram das listas de canções que gostariam de tocar, gravaram três ao primeiro take e o processo estava em marcha. "Começámos simplesmente a tocar e lembro-me de ter pensado: conheço esta gente, conheço este ambiente, estou em casa", resume Neneh. "Foi muito forte. Sinto que grande parte de mim estava à espera de fazer algo como isto, trabalhar com música mais livre. E depois há obviamente a herança familiar e o facto de eles terem sido influenciados pela música do meu pai. É interessante fechar esse círculo, chegar a um sítio onde pudesse celebrar a minha história".

The Cherry Thing contraria, no entender de Cherry, a tendência demasiado humana de manipular a criação em demasia, roubando-lhe a resposta espontânea. "O que é tão sedutor neste grupo é que existe simplesmente. É uma forma bruta de energia. E a minha voz assenta bem em situações mais cruas. Às vezes sentia-me frustrada por não ter uma voz mais soul, mas agora estou a descobri-la cada vez mais". A descarga sonora do trio é, no entanto, de tal forma pungente na sua crueza que, na primeira sessão, depois de registada a versão do tema do rapper MF Doom, Neneh precisou de parar: "Foi tão hardcore que fiquei com uma valente dor de cabeça quando terminámos".

Mas mais intensa ainda do que a reacção física à prestação musical dos The Thing, Neneh Cherry viu-se visitada por uma sensação antiga e esquecida. "Quando comecei a cantar a primeira faixa", lembra, "tive um sério déjà-vu de como me senti ao cantar a minha primeira canção nos Rip Rig + Panic. É o mesmo sentimento, de que algo está a acontecer".

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