João Rosas. Um homem na cidade
Olhar para o modo como se vive hoje a cidade é um dos temas que João Rosas reconhece como seus - a par do universo infantil. Jorge Mourinha
A ironia é inevitável para um cineasta cuja primeira curta-metragem de "fôlego", Entrecampos, foi seleccionada para a competição do Curtas. João Rosas, 31 anos, não se diz grande apreciador do formato curto, explicando preferir-lhe o equivalente na literatura que é o conto. "O cinema tem este lado de tentar olhar a realidade, e por vezes penso que as curtas não conseguem penetrar [tão fundo]", explica. "Gosto de coisas com mais fôlego; tentar olhar a realidade é algo que me interessa muito, e preciso desse tempo nos filmes. As curtas muitas vezes sabem-me a pouco, parecem-me muito fechadas num universo próprio. Na escrita sinto menos essa necessidade, quando escrevo ou leio contos consigo focar-me mais numa coisa específica."
Isso também ajuda a explicar porque é que Entrecampos (5ª, 12, 21h; 6ª. 13, 20h) é relativamente longa para uma curta (32 minutos, cortados de uma primeira montagem de uma hora). "O desafio era o lado de encenação - como se transmite o que se tem na cabeça através do espaço, das personagens em movimento, do ângulo de câmara? Mas foi também através desse processo que aprendi a ser mais conciso." Rosas não faz por menos e invoca os nomes de Éric Rohmer e Jean Renoir. "A minha escola é claramente o realismo e em termos de olhar e filmar as pessoas são eles as grandes influências. Quando era mais novo era mais Godardiano - a preocupação com a forma... - e achava o Rohmer mais conservador. Mas hoje estou muito mais próximo dele, papo filmes do Rohmer que é uma coisa parva", diz rindo.
Habitualmente, a curta-metragem é um "cartão de visita" que apresenta um realizador sem carreira. Mas, no caso de Rosas, Entrecampos é apenas o passo mais recente num percurso iniciado em 1996 com a publicação do seu primeiro livro, Qualquer Pessoa Dá um Homicida Qualquer (1996). De então para aqui, escreveu em jornais, publicou mais dois livros (Deus Morreu e Eu Não Fui ao Funeral e Falar Disto sem Saber o Que Isto É) e já assinou uma longa, Birth of a City (2009), apresentada no IndieLisboa, depois de estudos de cinema em Bolonha e em Londres e de assistência e postos técnicos em rodagens de outros cineastas.
Como a primeira
O percurso, no entanto, foi tudo menos programado, como explica. "Tinha este argumento já escrito antes de ter feito a longa - a primeira versão do argumento é de 2008 - e este é que teria sido o meu projecto de final de curso". Mas a ausência de financiamento acabou por atrasar a rodagem da que é, nominalmente, a quinta curta de Rosas (embora as anteriores tenham sido projectos curriculares de estudante, à excepção de uma encomenda da Fundação Gulbenkian, A Minha Mãe é Pianista, de 2005). Por isso Entrecampos é, de certo modo, como se fosse a primeira.
"Um gajo manda-se um bocado aos leões," ri-se Rosas para definir a experiência. "No Birth of a City estava sozinho, aqui havia luzes, maquinarias, uma equipa de 20 pessoas. Foram uma série de desafios que se me impuseram, fazer uma coisa bastante narrativa, com muitos diálogos e actores". E permitindo-lhe descobrir a "máquina" do cinema: "uma vez em movimento é tipo locomotiva. Não se pára."
À imagem de Birth of the City, uma visão de Londres durante os seus tempos de estudante, Entrecampos, história de uma menina que vem do Alentejo morar para Entrecampos e se trava de amizade com dois miúdos de Carnide, olha para o modo como se vive hoje a cidade. É um dos temas que reconhece como seus, a par do universo infantil, e que se desenha de modo algo autobiográfico - Carnide foi onde nasceu e morou até à adolescência, Entrecampos onde morou ao regressar de Inglaterra (e do qual saiu para a Graça quando começou a rodar o filme). Esse olhar para a cidade é um interesse que vem de miúdo. "Não tinha jeito para desenhar, senão gostava de ter ido para arquitectura ou urbanismo; sempre me interessou a questão de como é que as cidades se constroem e evoluem. Para mim é natural querer fixar e criar a memória dos sítios onde vivo. Porque vou gostar de os ver daqui a 30 anos, mas não numa nostalgia do género "antes é que era bom". É normal que as cidades mudem." O que o preocupa, mais do que isso, é o desaparecimento da vida de bairro de Lisboa. "Mas isso tem a ver com outras coisas, com a crise, com a nossa ausência de espaço público. As pessoas foram expulsas da cidade, Entrecampos é um bairro que não é um bairro, ao fim-de-semana e à noite está tudo vazio, não há um café, um sítio para comprar tabaco. A mudança é saudável, mas faz falta vida de bairro."