Imaginem só: Sharon Van Etten é fã de Chaplin e gosta de rir
Tramp é uma elegia da perda e da solidão. Como toda a gente que faz discos assim, Sharon Van Etten acredita que a arte é terapêutica. Mas só se não for excessivamente pessoal
Uma busca por Sharon Van Etten no Google produz 363 mil resultados em 0,20 segundos, um valor de respeito, certamente maior se a mesmo busca tivesse sido realizada no início do ano. Nessa altura Sharon era uma quase desconhecida, um daqueles nomes que os fãs dizem ao ouvido dos amigos para evitar que gente indesejada se aproprie da jóia. Quando 2012 chegar ao fim e se dedicar ao seu balanço e contas (partindo do princípio que 2012 é uma entidade consciente), chegará à conclusão que Etten é uma das suas princesas, um dos mais altos acontecimentos da música enquanto encenação do processo visceral de existir.
O sucesso actual de Etten é o sucesso de Tramp, o seu último disco. É um disco negro ou, pelo menos, tremendamemte melancólico - um daqueles objectos em que cada canção parece uma confissão ou atribuição de culpas, um ajuste de contas, uma purga emocional. Musicalmente, assenta em guitarras acústicas e na voz da senhora, criando uma simbiose entre folk e crooning. A voz é um espanto, não pela imensidade de notas que dê mas pela tensão entre reter a emoção e explodir.
Etten não estava à espera de uma recepção assim. "Com cada disco as coisas têm crescido, passo a passo e lentamente, mas a resposta a este disco tem sido extraordinária, sim", diz-nos. Ia numa carrinha, com a banda, a caminho de um concerto em Filadélfia, e confessava que demorou a notar que Tramp a estava a transportar para outros patamares de exposição: "Passamos tanto tempo a viajar de um lado para o outro que nem notamos o que se passa à volta. E a certa altura reparamos que as entrevistas e os concertos não páram e que algo mudou".
Discurso Clássico Sobre Canções Tristes
Para quem fez um disco - ou três, se contarmos com Because I Was In Love, de 2009, e Epic, de 2010 - tão negro, Etten é tudo menos sorumbática. Ri-se a cada duas frases, faz perguntas, fala pelos cotovelos. Quando não sabe ou não consegue responder da forma que acha adequada desdobra-se em pedidos de desculpa.Como outros que passaram pelo que agora lhe está a acontecer, não encontra uma razão específica para o facto de Tramp ter tido muito mais impacto que os discos lançados entre 2009 e 2010. Acredita que "apesar das canções serem negras, há algo de redentor nelas e talvez as pessoas se tenham identificado com isso".
A "identificação" do ouvinte com a canção é um tema que lhe parece caro. Diz ter um processo de triagem: "Nunca partilho as canções que são exclusivamente sobre mim. Essas guardo-as. As que partilho são as que são universalizáveis, as que podem ter um efeito sobre as pessoas. Fazemos música para partilhar uma experiência, não para falarmos de nós à frente de milhares de pessoas". Ocorre-nos que isto se assemelha a um imperativo ético. Ela não concorda. "Não sei se é uma ética. Parece-me que é lógico querer que as pessoas se relacionem com as canções".
Ouvindo-a contar o processo de feitura de Tramp percebe-se que mesmo excluindo as canções que se centram exclusivamente no "Eu" ainda há Eu que baste no que foi gravado. "Não tenho muito domínio sobre o que escrevo porque escrevo sempre o que sinto no momento. Admito que estava a sentir-me mal na altura - entre outras coisas. estava a passar por uma separação. E queria partilhar o que sentia. Só não queria partilhar tudo. E tinha a esperança que as canções, apesar de sombrias, ajudassem a que as pessoas se sentissem menos mal". Faz um parêntesis para assinalar que "o facto de estar mais criativa em más alturas não quer dizer que tenha de estar infeliz para escrever" e depois estamos em território clássico: o da escrita enquanto "cura".
"Há algo de curativo em escrever, sim", diz. (Isto é a Introdução ao Discurso Clássico Sobre Canções Tristes, um tipo de discurso que postula que o autor de um disco sofrido sofreu para o compor; resumidamente, é uma degeneração dos ideais românticos.) "Escrever, para mim, começa sempre com algo intenso. Nas más alturas nunca fui capaz de comunicar pessoalmente, pelo que sempre que tinha dificuldades pessoais escrevia. Quando não consegui escrever acabei a fazer terapia. Mais tarde a escrita de canções tomou lugar da terapia". (Isto é a segunda parte do Discurso Clássico Sobre Canções Tristes: até serve ao autor como forma de catarse; daqui decorre que a arte salva, e ainda por cima não faz pedagogia - pelo que é moralmente superior.)
Etten recorda como começou a levar as cantigas a sério: "Ao início não percebia como isso me afectava, mas cada vez mais as pessoas pediam para eu cantar. Ao re-ouvir o que cantava percebia que era o meu subconsciente a falar. Comecei a ser capaz de interpretar o que estava a dizer. Escrevia as palavras que tinha cantado, relia-as e percebi que de certa forma aquilo era uma auto-análise". (O corolário do Discurso Clássico Sobre Canções Tristes é este, que sai da boca de Etten como se estivesse a ser inventado naquele exacto instante: "Escrever, para mim, é uma forma de entender aquilo por que passo")
Mais interessante que o atrás escrito é isto: é ainda mais curioso ouvir Etten sobre a relação entre compor e sentir: "Não sinto que tenha de recriar emoções para escrever uma canção. Por norma quando componho estou a senti-las outra vez. É mais difícil quando vou para estúdio porque aí sei que estou a trabalhar. Apercebo-me de que está em causa uma canção. Mas quando canto, a emoção original volta. Seja lá o que for que se canta, o que está na origem volta na canção. É um processo estranho".
E ainda mais interessante é ouvi-la posteriormente dizer que "o mais importante é o trabalho: a melodia tem de lá estar, as palavras têm de ser as certas". Melodia, palavras certas, tudo isto bate qualquer dor de coração - se assim não fosse o mundo estaria cheio de raparigas adolescentes de coração quebrado que se tornavam estrelas.
O trabalho foi, no caso de Tramp, partilhado com Aaron Dessner, um dos gémeos das guitarras dos National e produtor do disco. É uma parte importante do sucesso de Etten. No momento em que tocou Love more, de Etten, ao vivo com Bon Iver, a cotação da moça subiu em flecha. "Conheci o Aaron por causa da versão. É uma óptima pessoa. Fazer uma versão de um contemporâneo é raro e foi generoso da parte dele". A versão não teve apenas o condão de apontar as luzes da ribalta para Etten, fê-la também "sentir que era parte de alguma coisa, que podia fazer amigos neste meio muito duro."
O final é feliz: Tramp é um tremendo disco, Etten tornou-se uma compositora respeitada e vive hoje em Brooklyn, onde é vizinha dos National. Dia 26 de Setembro podem vê-la no Lux, em Lisboa. Mas por amor de Deus: se a virem tocar uma canção triste não partam do princípio que ela está a sofrer imenso, porque nem tudo é o que parece. Imaginem só: Etten é fã de Chaplin e gosta de rir.