A ditadura perfeita passou à história
Ao fim de 71 anos no poder, o PRI foi apeado. Regressa agora com a eleição presidencial. O grande risco do México já não é uma "restauração autoritária" mas a escalada da violência. Este é, sim, o fantasma que assombra a sua história
O Partido Revo-lucionário Ins-titucional (PRI), que dominou a vida política do México durante 71 anos e agora regressa ao poder com a eleição de Enrique Peña Nieto para Presidente, foi um fascinante objecto de estudo nas universidades e tema de intermináveis controvérsias. Em Setembro de 1990, num debate no México, o escritor Mario Vargas Llosa definiu o sistema político do PRI como "a ditadura perfeita". Era uma "ditadura camuflada", mais eficaz e duradoura do que todas as ditaduras militares latino-americanas.
"Tem todas as características da ditadura: a permanência não de um homem, mas de um partido. E de um partido que é inamovível", resumiu. Anos depois, reconheceu que se enganara: a ditadura do PRI não era "tão perfeita quanto isso", pois acabou por se dissolver numa alternância democrática - a vitória do conservador Vicente Fox, do Partido de Acção Nacional, em 2000.
Na audiência estava o poeta Octavio Paz, que rompera com o PRI anos antes - com um artigo em que o denominou "ogre filantrópico". Paz corrigiu Llosa: "Primeiro, [o regime do] México não é uma ditadura, é um sistema hegemónico de dominação [num país] onde nunca existiram ditaduras militares. Sofremos a dominação hegemónica de um partido. O governo não suprimiu a liberdade, manipula-a. É uma distinção fundamental e essencial." Em segundo lugar - explicou noutro momento -, "o PRI foi criado pelo governo como instrumento face ao perigo dos césares revolucionários, que podem, por exemplo, chamar-se Fidel Castro. (...) Na sua época foi útil, mas agora paralisa o país."
O sistema PRI
Não se percebe o PRI fora da história do México, da violência inata na sociedade e dos efeitos da primeira revolução social do século XX - que foi a revolução mexicana de 1911 e não a russa de 1917. Comecemos por descrevê-lo.
O Partido Revolucionário Nacional - rebaptizado PRI em 1946 - foi criado em 1929 pelo Presidente Plutarco Calles para estabilizar a sociedade e controlar as tentações "extremistas" e, sobretudo, as de poder pessoal. Não foi concebido como um partido revolucionário, mas como um instrumento de mediação entre o regime político e a sociedade, e também como meio de unificar as diversas facções revolucionárias. Lázaro Cárdenas, presidente entre 1934 e 1940, consolidará as conquistas sociais e nacionais da revolução - como a nacionalização do petróleo - e, simultaneamente, o papel do PRI.
A trave mestra do sistema é uma regra simples: o "dedazo". Cada Presidente só pode exercer um mandato de seis anos. Mas era o seu "dedo" que designava o candidato do PRI à eleição seguinte. Não era um poder arbitrário, pois deveria ter em conta o equilíbrio entre as várias "sensibilidades". Mas o poder de designar o sucessor conferia-lhe a máxima autoridade e estabilizava o sistema.
De seis em seis anos, no 1.º de Dezembro, tomava posse um novo presidente mexicano. "Entre os muitos defeitos do velho sistema político mexicano não havia o do caudilhismo, era um sistema institucional", observa o historiador mexicano Enrique Krauze.
O PRI não era a força dirigente, como os partidos comunistas. Era "a agência eleitoral altamente centralizada de um regime autoritário, encarregada de captar o apoio da população por meios corporativos", resume o antropólogo mexicano Roger Bartra. Por outro lado, era o "canal entre o Presidente e os grupos políticos poderosos para repartir lugares de deputados, senadores e governadores".
Em 1987, uma jovem estrela do PRI, Cuauhtémoc Cárdenas, ex-governador do estado de Michoacán e filho de Lázaro Cárdenas, anunciou que desafiaria o candidato oficial, Carlos Salinas de Gortari, nas presidenciais do ano seguinte. Cárdenas reivindicou o triunfo mas, após um misterioso "apagão informático" na noite eleitoral, a vitória foi concedida a Salinas. Começava a desintegração do PRI.
A crise da legitimidade remonta a 1968. Na véspera dos Jogos Olímpicos do México, o governo de Díaz Ordaz mandou disparar sobre os estudantes reunidos em massa na Praça das Três Culturas: 250 mortos. Perante a contestação política e ameaças de guerrilha, Ordaz e o seu sucessor, Luis Echeverria, governaram com tropas na rua. Começa aqui a deslegitimação do PRI: a limitação das liberdades era justificada não apenas pela prestação de serviços ao povo, mas pela recusa da violência, um fantasma da história mexicana.
O cheiro do sangue
A partir da militarização da guerra ao narcotráfico pelo Presidente Felipe Calderón, em 2006, a violência, que estava a decrescer desde meados dos anos 1990, subiu em espiral: 55 mil homicídios em cinco anos, na maior parte decorrentes do narcotráfico - do confronto entre militares e traficantes ou de macabros ajustes de contas entre os gangs. O que mais impressiona não são os números; é a crueldade, a encenação de corpos despedaçados e despejados na rua, os cadáveres mutilados encontrados em valas comuns, a série de assassínios de mulheres em Ciudad Juárez.
"No México, o Estado deixou de assegurar o monopólio legítimo da violência", declara o escritor Sergio González Rodriguez, que investigou os crimes de Ciudad Juárez. "Os narcos estão presentes em 70% do território. A impunidade cobre 98% dos crimes e delitos. Ora, a impunidade é um afrodisíaco para os criminosos. O México é um simulacro de Estado de direito: as fronteiras entre o crime organizado e as instituições estão diluídas. O Estado foi infiltrado e contaminado."
Em 2000, a chegada ao poder do Presidente Vicente Fox "trouxe uma perda do controlo do Estado sobre as regiões", diz o politólogo Ernesto López Portillo. "No regime do PRI, a política prevalecia sobre o narcotráfico. Hoje, os cartéis tendem a controlar as autoridades locais." A corrupção é galopante.
Igualmente inquietante é o facto de um número crescente de homicídios não estar ligado ao narcotráfico, mas ser resultado de conflitos locais, vinganças e ajustes de contas perante o vazio da polícia ou da justiça, frisa Roger Bartra.
A paisagem do México "cheira a sangue" desde a guerra da independência, para não falar na conquista espanhola, escreve Enrique Krauze. A revolução agrária - de que Emiliano Zapata se tornou um ícone mundial através do cinema - foi particularmente sangrenta, de parte a parte. Especialmente cruel foi a repressão dos Cristeros, camponeses que se sublevaram contra as leis anticlericais impostas em 1927 por Plutarco Calles, com medidas como o encerramento sistemático de igrejas ou a proibição do celibato dos padres. Os revolucionários de 1911 fuzilavam mas não degolavam os inimigos, frisa Krauze. Já os Cristeros eram enforcados ao longo dos caminhos-de-ferro, com as orelhas cortadas.
A violência moderna não exclui a tradição, anota o psicanalista Benjamin Mayer. "Há, contudo, uma nova retórica da violência, como a dissolução dos cadáveres em ácido. Os criminosos jogam com os media. Lançaram-se numa guerra simbólica e o espectáculo homicida não remete para uma suposta crueldade da alma mexicana, mas para uma estratégia militar que visa aterrorizar os inimigos."
As televisões mexicanas estão envolvidas num interminável debate sobre a filtragem das imagens do crime.
E Peña Nieto?
Jorge Castañeda, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros no governo Fox, explicou que a eleição de Peña não envolve em si mesma um risco de "restauração autoritária" (ver Project Syndicate, PÚBLICO online). Mudou a sociedade, mudou a economia, mudou o lugar geopolítico do México e Peña terá de chegar a compromissos com a oposição no Parlamento. Os quadros do PRI estão, naturalmente, empolgados com o regresso ao poder: "Doze anos sem poder foi muito duro", disse um deles a um jornal.
A pergunta é outra: saberá o PRI governar num contexto democrático? O PRI conseguiu difundir a mensagem de que a chegada da democracia arrastou consigo a violência e a extensão do narcotráfico. Tem agora "a bomba" nas mãos. O primeiro desafio é, naturalmente, a reabilitação das instituições e a aplicação da lei.
O México é imenso e não é homogéneo. Se em Ciudad Juárez se mata por mil pesos (60 euros), escreve o enviado do El País, "a Cidade do México é hoje uma ilha de segurança e um farol de democracia, vitalidade cultural e consumismo. (...) É aqui que se fez notar a mobilização juvenil dos últimos meses contra o governador" - chamado Enrique Peña Nieto.