A desvalorização salarial e o excecionalismo português

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Perante uma tão profunda desvalorização do trabalho, como explicar a apatia geral?

Está em marcha uma brutal desvalorização salarial, a qual só muito parcialmente pode ser justificada pelas orientações da troika. Por um lado, porque muitos dos cortes salariais não estão vertidos no memorandum e foram recusados pelos partidos que venceram as legislativas de 2011, em sede de campanha eleitoral. Por outro lado, esses partidos foram também signatários, de facto, do dito programa e exultaram com o "resgate". Percebe-se porquê: tal desvalorização tem subjacente um programa ideológico radical que nunca passaria nas urnas se fosse explicitamente assumido. Neste texto passaremos em revista tal desvalorização, analisando algumas das suas consequências, bem como as causas da apatia com que tem sido recebida pelos portugueses, as quais radicam no "excecionalismo português".

A desvalorização salarial ficou bem patente esta semana: o país ficou a saber que, sob pressão do Ministério da Saúde, os enfermeiros "tarefeiros" seriam pagos por um valor horário inferior ao da generalidade das empregadas da limpeza (3,96 euros). Idem para as propostas de aplicação do regime de tarefeiros, mal pagos e sem carreiras, aos médicos (do SNS). Idem em várias universidades e politécnicos onde, sob a pressão financeira do Ministério das Finanças e com o beneplácito do Ministério da Educação, há vários docentes que, apesar de terminarem os seus doutoramentos e agregações, ficam a receber na categoria anterior/inferior. Já para não falar do embuste meritocrático, isto é, sem consequências, da "avaliação de desempenho". Mas tal desvalorização não atinge só as classes médias. O número de pessoas a receber o salário mínimo (485 euros) duplicou entre 2007 e 2012, atingindo 605 mil trabalhadores (10,5% do total). Já para não falar da generalização da precariedade e do enfraquecimento do Estado social (abaixamento das indemnizações por despedimento, facilitação do mesmo raiando a inconstitucionalidade, etc.) para obrigar as pessoas a aceitarem qualquer trabalho, mesmo que muito mal pago e inadequado às suas qualificações.

E que consequências tem a desvalorização? Primeiro, agrava as desigualdades porque a austeridade é profundamente assimétrica. Recordemos que os rendimentos de capital foram isentos do corte de subsídios em 2011-2015, que o corte de subsídios em 2012-2015 só atinge os rendimentos do trabalho no sector público e os pensionistas, ou ainda que, em 2011, "os salários dos presidentes do PSI-20 subiram 5,3%" (PÚBLICO, 14/5/12). Segundo, porque destrói toda a espécie de incentivos meritocráticos (forte seleção à entrada e na progressão), que têm sido o esteio da qualidade dos serviços públicos face aos seus correspondentes privados, logo irá erodir a qualidade dos serviços prestados à população. Terceiro, dirige-nos para uma economia de baixos salários e pobremente qualificada que dificilmente terá futuro.

Perante uma tão profunda desvalorização do trabalho, com consequências tão graves nas vidas dos portugueses e na qualidade dos serviços, como explicar a apatia geral? Não é fácil, mas eu avanço três hipóteses. Primeiro, deixaram de funcionar os contrapesos no sistema político. Excetuando algumas declarações inconsequentes, sobre "iniquidades nos cortes de subsídios" e sobre a necessidade de apoio ao crescimento, Cavaco tem dado cobertura a tudo sem sequer pedir a devida fiscalização constitucional, mesmo quando ela era evidentemente necessária (cortes de subsídios, novas leis laborais, etc.). E o PS abdicou de ser oposição, preferindo trair os seus eleitores (a quem tinha prometido que não acompanharia derivas radicais além troika) para poder aceitar, com as suas "abstenções violentas", tudo o que vem do governo. Segundo, a atitude da generalidade dos jornalistas e comentadores que, com a sua débil cultura política, se especializaram em alimentar o cinismo político: apesar de muitas das mais graves medidas de desvalorização salarial não estarem no memorandum e contrariarem promessas eleitorais, tudo é aceite com a ideia cínica de que os políticos em campanha dizem uma coisa e depois fazem outra. Mas há países que levam a democracia a sério: veja-se o abaixamento da idade da reforma, etc., que está a ocorrer em França, conforme as promessas eleitorais e a contrário das previsões de jornalistas e comentadores portugueses... Por último, temos a falta de entendimentos entre as esquerdas portuguesas, incapazes de gerarem uma alternativa credível e minimamente consistente ao statu quo. Perante tal falta de sentido de alternativas, resulta quase compreensível a alienação dos portugueses: incapazes de se erguerem para defender os direitos fundamentais, preferem concentrar as energias na alienação futebolística, num estado de quase "morte cerebral" (Pacheco Pereira).

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