Herdeiro literário do seu compatriota Halldór Laxness (Prémio Nobel de Literatura em 1955) e de toda uma tradição que remonta às rímur (elemento essencial da poesia popular de tradição oral, cujos autores são camponeses) e às célebres sagas medievais - de que não estão excluídas as influências das grandes obras da literatura mundial -, Thor Vilhjálmsson (1925-2011) foi o grande inovador da moderna literatura islandesa. Ao longo de uma obra extensa que ultrapassa os 30 volumes (romances, poesia e teatro), conseguiu cristalizar a longa tradição nórdica ao mesmo tempo que lhe inventava novas roupagens, fundindo, para isso, elementos da mitologia nórdica com outros de carácter contemporâneo. Considerado por muitos como o mais importante escritor islandês depois de Laxness, os seus romances ambientam-se naquela singular atmosfera de elementos naturais ferozes e opressivos, uma Natureza não subjugada pelo Homem (de fogo e de vento, de gelo e de rios indomáveis), e tão característica da Islândia e de um tempo que, apesar de actual, nos remete sempre para a memória lírica do mito e para um universo dominado por uma sombria e avassaladora solidão.
Arde o Musgo Cinzento, um dos seus romances mais traduzidos - vencedor em 1988 do Nordic Council Literature Prize e do Swedish Academy Nordic Prize -, é já considerado um clássico contemporâneo, não apenas da literatura islandesa mas das letras nórdicas. Ambientado no século XIX (era então a Islândia uma província da Dinamarca), conta-nos a história de um jovem juiz, Ásmundur, que terá de decidir se dois meios-irmãos são culpados do crime de incesto. Vivem numa aldeia submersa na miséria, na fome, nas doenças, nas duríssimas condições climáticas - um lugar onde tudo lhes parece ter sido negado, menos o amargo sofrimento. São dois seres ingénuos, sem uma aparente noção de culpa, e que os vizinhos se apressam a denunciar da prática de incesto depois de alguém ter feito espalhar o rumor de que vira o rapaz entrar na cama da sua meia-irmã.
Vilhjálmsson usa um discurso elíptico (e com analepses) para nos narrar a história - que tem de ser ordenada pelo leitor, pois vai-lhe chegando por fragmentos. O significado vai-se assim construindo aos poucos. Este não é um livro “fácil”, pois requer uma leitura sossegada e atenta, dada a sua complexidade estrutural, para que a magistral narração seja fruída. Paralelamente à história, o autor vai fazendo lentas e minuciosas descrições da paisagem, com imagens que por vezes são de uma quase atroz intensidade. “E o homem regressa à sua cabana. A tua aldeia, a tua gente. Século após século. A tua estirpe sepultada na terra, recolhida ali durante os grandes nevões invernais, procurando abrigo no seu subterrâneo refúgio. Com as montanhas na sua recordação, enquanto a escuridão e as tempestades de neve bloqueiam a guarida de homens e de animais, que ali convivem. Mas os longínquos telheiros do gado chamam todos os dias a desafiar os nevões para que a vida possa ser preservada. Entretanto, os espectros vagueiam livres e a Primavera espera lá longe, ninguém sabe quão longe, tão longe.”
À medida que a investigação do caso prossegue, as convicções do jovem juiz vão-se também transformando. (Vilhjálmsson escreveu este romance a partir de material encontrado em arquivos e baseado numa história real. Também a figura do juiz foi inspirada em Einar Benediktsson, poeta islandês e um dos grandes reformadores progressistas da Islândia do século XIX.) Os testemunhos de várias personagens vão-se alternando, e com eles as diferentes perspectivas quanto à culpabilidade. Mas o juiz vai ter de decidir entre as razões invocadas pelos crentes mais fervorosos e a lei que defende a “ordem pública”, ou por uma decisão que inclua a ideia pós-romântica de um amor contrário às convenções sociais.
No meio de paisagens desoladas de prados queimados pelo gelo e pelo vento, habitadas por seres míticos (dragões, serpentes, trolls e elfos) e por bravos heróis das sagas, o leitor acompanha os diferentes estados de alma do jovem juiz. “E vejo aparecer entre os penhascos uma ogra, feliz com um filho entre as pernas, e um sábio de escasso tamanho sobre um rochedo que se destacava um pouco acima das pedras à volta; um nobre antiquíssimo de rosto comprido e longa barba, com matos de musgo aqui e acolá e o cabelo verde a cair-lhe sobre os ombros.”
Vilhjámsson, um escultor de palavras (deixe-se aqui uma nota de apreço à cuidada tradução), vai-nos levando através de diferentes registos narrativos, sempre amparado por vozes fantasmagóricas, por uma história de opressão em que a sociedade reprime aqueles que ela presume terem violado as suas regras. O poeta inglês Ted Hughes, disse um dia que “a obra de Thor [Vilhjálmsson] é um veleiro que se move entre as costas do mito.” E nada é mais certo.