Também houve castrati portugueses
Não foram estrelas como Farinelli ou Caffarelli, mas tiveram respeitáveis cargos na vida musical. São vários os indícios de que a castração em nome da arte do canto também se praticou em Portugal no século XVIII
Durante o período barroco, os castrati dominaram os principais palcos europeus, levando as audiências ao delírio com as suas acrobacias vocais nos teatros, nas cortes e nas igrejas. Farinelli, Caffarelli ou Senesino gozaram de uma fama semelhante à que hoje têm as estrelas da pop e a sua memória continua a despertar o fascínio do público e dos intérpretes, que optam frequentemente por gravar colectâneas de repertório de determinado castrato ou propõem projectos de maior envergadura como o famoso álbum Sacrificium de Cecilia Bartoli. Em Portugal, a presença de um considerável número de castrati italianos ao serviço dos teatros e da Capela Real e Patriarcal no século XVIII encontra-se documentada por diversos estudos. Menos conhecido é o facto de também terem existido castrati portugueses e de que essa prática desumana em prol da arte do canto e do eventual êxito de uma carreira futura também ocorreu entre nós.
Numa sociedade onde a arte era também artifício e na qual o homem pretendia dominar a natureza, o culto da beleza vocal sobrepunha-se à crueldade da operação a que os jovens cantores do sexo masculino eram submetidos antes da puberdade no intuito de preservar o registo vocal agudo de criança durante a vida adulta. Impedia-se assim o desenvolvimento da laringe e das cordas vocais, mas não o crescimento do resto do corpo e da caixa torácica, o que permitia sustentar notas longas por muito tempo. A agilidade e uma ampla tessitura vocal eram outras características que contribuíam para o extremo virtuosismo atingido por alguns desses cantores. A visibilidade dos castrati como superestrelas da ópera faz por vezes esquecer que as suas primeiras funções se encontram ligadas à música sacra. A Capela Sistina empregava-os pelo menos desde meados do século XVI, o mesmo acontecendo com algumas catedrais espanholas ou com a capela da corte de Munique no tempo de Orlando di Lassus. Mesmo num país como a França, cuja tradição operática era alheia a esta prática, eram contratados castrati para a Capela Real de Versalhes nos séculos XVII e XVIII.
Em Portugal o uso de castrati na música religiosa e na ópera encontra-se documentado a partir do reinado de D. João V, na sequência do processo de italianização da vida musical portuguesa e da promoção da Capela Real ao estatuto de Patriarcal em 1716. Os primeiros castrati, vários deles oriundos da Capela da Basílica de São Pedro de Roma, chegaram a Lisboa em Setembro de 1719, cerca de dois meses antes da vinda do ilustre compositor Domencio Scarlatti, também contratado pelo Rei Magnânimo. Despertaram curiosidade, admiração, preconceitos e rivalidades. Na sua correspondência para Roma, o Núncio Apostólico escreve que "o anúncio da chegada de pessoas castradas" fez com que muita gente nos primeiros dias se deslocasse à sua casa "para os ouvir como por maravilha", mas também provocou "o desprezo dos músicos nacionais" que se aproximavam de noite "notificando por quanto se vendia a carne de castrato". Tendo o sucedido chegado ao conhecimento do rei, este fez saber que "puniria com rigor quem ouvisse falar com escárnio" dos castrati. Décadas mais tarde, a filha de D. João V e discípula dilecta de Scarlatti, D. Maria Bárbara de Bragança (infanta de Portugal e rainha de Espanha), viria a deixar em testamento a sua preciosa biblioteca musical a Farinelli, o mais famoso dos castrati, com quem estabeleceu uma relação estreita na corte de Madrid.
A importação regular de cantores italianos (cerca de 140 entre 1750 e 1807), dos quais várias dezenas eram castrati, prosseguiu nos reinados de D. José e D. Maria I e durante a regência de D. João VI. Para a lendária Ópera do Tejo, destruída pelo Terramoto de 1755, foram contratados castrati tão célebres como Giziello, Caffarelli, Gaetano Guadagni e Carlo Reina. Este último ficou ao serviço da corte até aos finais de setecentos e foi o destinatário de obras de compositores portugueses e dos italianos David Perez e Jommelli. Após a inauguração do Teatro de São Carlos, em 1793, ficou célebre a rivalidade entre o castrato Crescentini e a soprano Angelica Catalani, e quando a corte se transferiu para o Brasil em 1807, na sequência das invasões francesas, o Príncipe Regente continuou a contar com castrati na Capela Real do Rio de Janeiro. Alguns encontravam-se já ao seu serviço em Lisboa, outros viajaram directamente de Itália para o Brasil.
Mas o panorama dos castrati em Portugal não viveu apenas de cantores italianos, estendendo-se também aos músicos locais. Os estatutos do Real Seminário de Música da Patriarcal (1764), a principal escola de música em Lisboa antes da criação do conservatório em 1835, mencionam que a idade de admissão dos alunos deveria ser de oito anos, podendo ingressar posteriormente no caso de já saberem música ou se fossem "castrados, com voz de soprano ou alto". Entre os nove alunos com a indicação de serem castrados no Livro de Admissões (todos com entrada antes de 1760, inclusive), encontram-se três naturais de Lisboa (José Rodrigues, Joaquim de Oliveira e Camilo Cabral); dois do Bispado de Miranda (João Pires Neves e Domingos Martins); dois de Setúbal (Manuel Alves [Mosca] e José Soares Alves [Mosca]); um de Travassos, perto de Viseu (José de Almeida); e outro da zona de Tavira (José Mattias).
Ordem régia
Apesar de a amostra ser pequena - é possível que houvesse mais, mas o registo das matrículas não fornece essa indicação -, a presença de seminaristas castrados oriundos de várias localidades leva a crer que também em Portugal existiram agentes recrutadores, como sucedia em Itália, que percorriam várias povoações à procura de jovens castrati que pudessem ingressar nos conservatórios ou noutras instituições. Por exemplo em França, os submestres da Capela Real estavam autorizados a recrutar autoritariamente meninos cantores em todas as paróquias do reino - antes de 1789 existiam em França cerca de 500 escolas corais associadas a catedrais e colégios religiosos - mas não se sabe até que ponto a corte portuguesa teria um procedimento semelhante. Sabe-se porém que os dois colegiais de Miranda vieram para o seminário por ordem régia, como consta de um Aviso de 3 de Setembro de 1759, que se guarda na Torre do Tombo: "Sua Majestade foi servido mandar vir do Bispado de Miranda dois mossos castrados, João Pires e Domingos Martins, para no Seminário da Santa Igreja de Lisboa aprenderem como seminaristas." João Pires Neves foi o aluno com mais idade a ingressar na instituição, uma vez que entrou com 26 anos. O registo de matrícula diz que era "Clerigo in minoribus" e que foi admitido "por ser "castrado" e por isso em sabendo música iria logo para músico da Patriarcal e se lhe faria um ordenado, conforme o seu merecimento".
A menção à castração no livro de matrículas apresenta algumas nuances significativas. A anotação "por ser castrado" surge junto a alguns registos, mas no caso de Camilo Cabral a referência é mais específica: "Por dizerem os cirurgiões ser castrado." No entanto, Joaquim de Oliveira entrou "por dizerem ser castrado" e Manuel Alves (ou Álvares) Mosca "por parecer castrado", tal como José Mattias. Neste caso é possível que o argumento de uma suposta castração tenha sido usado para tentar facilitar o ingresso. Com efeito, Joaquim de Oliveira e Manuel Alves Mosca tornaram-se tenores na idade adulta. Sucede que a condição de castrado podia assegurar o acesso a alguns benefícios. José de Almeida, Joaquim de Oliveira e Camilo Cabral foram selecionados em 1760 para prosseguir a sua formação em Nápoles no Conservatório de Sant"Onofrio a Capuana, juntamente com os futuros compositores João de Sousa Carvalho, Jerónimo Francisco de Lima e Brás Francisco de Lima.
Em relação a José de Almeida guarda-se na Torre do Tombo um processo relativo às ajudas de custo pagas à sua família que vivia com dificuldades na região de Viseu, em que se diz que "Sua Magestade aceitara o suplicante para seminarista com obrigação de anualmente se lhe dar nove mil e seiscentos reis em rezão de ser castrado". Este apoio financeiro é mencionado ao longo de vários anos nos livros de despesas da Patriarcal, ainda que tenha sido objecto de vários atrasos. Outros bolseiros em Nápoles recebiam dinheiro para as suas famílias. Por exemplo, a mãe de Joaquim de Oliveira tinha uma tença de 120 reis por dia, montante que o próprio continuou a receber depois da morte desta.
Ao contrário dos seus colegas italianos, nenhum dos alunos do Seminário da Patriarcal identificados como castrati fez carreira operática, mas tiveram cargos profissionais respeitáveis no âmbito da música sacra ou do ensino. Camilo Cabral, que também foi compositor, tornou-se num dos mestres do próprio seminário; Joaquim de Oliveira, José de Almeida e João Pires Neves foram cantores na Patriarcal (tendo Oliveira chegado a ser Mestre de Capela); e José Rodrigues foi cantor na Capela Real da Ajuda. Mas alguns, como Domingos Martins, tiveram de se contentar com o lugar de moço de sacristia. À margem do Livro de Admissões foi anotado que "saiu para a sacristia, soube música e acompanhamento", mas não deveria participar nas "cantorias por ser desafinado".
Castrados ou falsetistas?
No final dos estudos cabia ao rei, aconselhado pelos mestres, mas também a partir da sua própria apreciação, determinar oficialmente cargos profissionais. Num Aviso de 1762 pode ler-se: "Exmos. Revs. Senhores, El Rey meu Senhor foy servido dispor dos Seminaristas que tem acabado o tempo do estudo no Seminário da forma seguinte: José Rodrigues de Oliveira, com voz de contralto, para o Coro da Muzica com o ordenado de cento e vinte mil reis cada anno, e se lhe mandará dar capa de seda, e loba roxa de seda como se costuma aos mais Muzicos; Maximo Joaquim Rufino com voz de barítono, para o Coro da Muzica com o ordenado e propinas da Sacristia (...)." Embora os ordenados fossem depois aumentados ao longo da carreira, os portugueses raramente atingiam os avultados vencimentos que a corte pagava aos cantores italianos. Na segunda metade do século XVIII, vários castrati recebiam 60.000 reis por mês, o que equivale a 720.000 por ano, além de múltiplas outras regalias e ajudas de custo.
A menção explícita a castrati portugueses é muito reduzida face ao avultado número de cantores da Capela Real e da Patriarcal, mas permanece por esclarecer se os diversos nomes portugueses que aparecem entre os naipes de soprano e contralto nos coros da Patriarcal eram castrados ou falsetistas. As referências a castrati são frequentes nos relatos dos viajantes estrangeiros mas dificilmente esclarecem essa questão. Após ter assistido à cerimónia da sagração da primeira pedra da Igreja da Memória em 1760 (celebrada pelo patriarca na presença da família real e do Marquês de Pombal), o italiano Giuseppe Baretti escreve ironicamente: "Terminou a missa e terminaram a fefautada e a rabecada de um bom número de castrados e de instrumentistas, dos quais se mantém na corte um número muito superior ao dos professores de Letras de Coimbra." Também Richard Twiss se refere a "dez castrados da Capela Real" na galeria do órgão da Igreja de São Roque na Festa de Santa Cecília de 1772 e assiste à representação da ópera Ezio de Jommelli no Teatro Real da Ajuda, escrevendo que "a orquestra era composta de executantes muito precisos" e que "em vez de mulheres têm castrados vestidos exactamente como elas, de tal forma que, vistos no palco, parecem na realidade ser aquilo que representam". Neste caso referia-se a cantores italianos mas mais à frente diz que "aqui, muitos dos sacerdotes são castrados", reforçando a suspeita de que o número de portugueses nessa condição seria maior do que se pensa.
Cristina Fernandes, musicóloga e crítica de música do PÚBLICO, é autora da tese de doutoramento O Sistema Produtivo da Música Sacra em Portugal nos Finais do Antigo Regime: a Capela Real e a Patriarcal entre 1750 e 1807