Todos os dias dez portugueses registam-se nalguma comuna do Luxemburgo
Continuam a chegar a grande ritmo. Já não encontram logo lugar nas obras ou nas limpezas, como antes. O Luxemburgo já tem trabalhadores indiferenciados de sobra
É um homem baixo, de cabelo ralo, casaco demasiado grande para o seu corpo, retraído numa cadeira do Café Académico, refúgio de portugueses de Luxemburgo-cidade. "O difícil é a língua. Só falo português. Graças a Deus, cá me vou desenrascando. Conhecia duas pessoas. Quando cheguei, disseram-me: "Desenrasca-te." Estou a desenrascar-me! Estou a procurar a minha vida. O que me custa é não ter quarto."
Os portugueses começaram a desembarcar na década de 1960. Primeiro, muito rurais. Depois, mais urbanos. Encontraram lugar na construção civil, nos serviços domésticos, na hotelaria, na restauração. Com a adesão à União Europeia, desembarcaram diplomatas e "funcionários". Esse movimento não estancou o outro. Nem nos eufóricos anos 1990, os portugueses deixaram de desembarcar no grão-ducado. Nos últimos dois anos, registaram-se uns dez por dia. Ecoa a sensação de que este ano são mais, muitos mais.
Há sempre quem não se registe. Augusto ainda não se registara. Para fazer o devido registo precisava de uma morada, de um meio de subsistência. "Vim a 22 de Março. Já me encontrei em situação de ter de pedir para comer." Dizia isto em voz baixa, quase em surdina, embora isso não fosse segredo para os homens que estavam sentados ao balcão.
Antes, todos os braços pareciam poucos. Só que a economia do Luxemburgo, que tira partido da geografia, da natureza plurilingue, do sigilo bancário, não escapou à crise. O desemprego já ultrapassou os 6 %. O ministro do Trabalho e da Imigração, Nicolas Schmit, já mandou o recado ao primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho: "A emigração, como acto de desespero, não deve ser incentivada." O país já só deseja mão-de-obra qualificada e capaz de se expressar nas línguas oficiais.
A agressividade molda a voz de Augusto. Não pensava vir para o Luxemburgo dormir numa carrinha, por piedade, comer de vez em quando num café, por piedade. "Vim em Setembro. Estive até Dezembro." O contrato com a empresa de pneus, em Frisange, terminou. "Fui para baixo. Em Março, regressei. Vim ver como isto estava. Não sei o que vou fazer à minha vida. Estou à espera que apareça um trabalho para me valer. Tenho de ter o meu quarto e o meu trabalho!"
Com tanto Portugal em Luxemburgo-cidade, o mecânico, de 45 anos, não tardou a encontrar algumas das portas a que pode bater quem está aflito. Bateu à porta do Centro de Apoio Social e Associativo, um velho edifício em Monté de Clausen, numa daquelas tardes animadas pelas reformadas que ali aprendem artes plásticas. A psicóloga Marlene Rodrigues ajudou-o a fazer o currículo em francês. Ainda lhe perguntou se queria ajuda para regressar a Portugal - a associação consegue bilhetes de camioneta mais baratos para quem se vê forçado a fazê-lo. Não quis. Que ia dizer à ex-mulher e à filha? "Gosto muito da minha filha! Tem 17 anos. É muito jovem. Anda a estudar na universidade e precisa da ajuda do pai."
No gabinete de Marlene Rodrigues entra "cada vez mais gente que veio por aí acima sem qualquer ponto de referência" - pessoas com menos de 30 anos, que não conseguem entrar no mercado de trabalho, e pessoas com mais de 45, que não conseguem reentrar. Já se deparou com situações "alarmantes". Nenhuma tão alarmante como a de um casal que viera com as filhas. Ainda agora Marlene se pergunta: como é que se fizeram à estrada sem plano, com uma criança de quatro anos e outra de seis? "Vi o carro. Parecia uma tenda de ciganos. Via-se umas bacias de plástico. Era com elas que se lavavam. Levámo-los para a pousada da juventude para tomarem banho, ter refeições quentes, dormir. Ficaram lá duas ou três noites. Depois, demos-lhes dinheiro para comprarem combustível e alimentação e regressarem a Portugal."
Sobram indiferenciados
Na Cáritas Diocesana também desagua o que o conselheiro das comunidades portuguesas Eduardo Dias chama "emigração parva". "As pessoas arriscam, arriscam demasiado", nota o assistente social Amílcar Monteiro. "Desconhecem os requisitos. Há três línguas oficiais - francês, alemão e luxemburguês. Têm de falar pelo menos francês. Tenho uma senhora que quer fazer limpezas e não consegue, porque o francês já é exigido. Às vezes, exigem carta de condução. Às vezes, até exigem carro próprio. Já não estamos sozinhos nesta imigração. As coisas complicaram-se. Ter vontade de trabalhar por si só já não chega."
Sobram trabalhadores indiferenciados, de baixo custo, como Augusto. Os portugueses formam a maior comunidade estrangeira - contando com os irregulares, estima-se que já ultrapassasse os 100 mil numa população de pouco mais de meio milhão. Representam 21% da massa salarial, 35% dos inscritos na Administração do Emprego, 75% não- qualificados.
Augusto não queria voltar "lá para baixo" de mãos a abanar. Ia tentar enquanto pudesse. "Quem sabe quando é que isto vira?" Tenta andar sempre limpo, apesar de tudo. Toma duche nas piscinas públicas, por dois euros. Há uma portuguesa que lhe mete a roupa, primeiro, na máquina de lavar e, depois, na máquina de secar. E aquele dia até prometia acabar numa cama. "Encontrei um senhor e vou ficar com ele esta noite. Vou ganhar umas coroas para a sopa. Há três semanas que não peço nada. Não peço nada por ser um trabalhador. Tenho mãozinhas para trabalhar. Vou fazendo uns bricolos com esse senhor. Dá para comer."
Ainda não se encaixara na comunidade, mas já apanhara o falar de quem viera há muito, "um falar híbrido, despachado" que, como escreveu o investigador António de Vasconcelos Nogueira, "escamoteia a experiência traumática da adaptação". Já não faz biscates, faz bricolos, vai "bricolar" (do francês bricoler). E já se refere a Portugal como "lá em baixo" (là-bas). A mudança parece rápida. Patrícia, a rapariga que lhe serve o café, chegou há um mês e, em vez de mercearia, já diz "especiaria" (épicerie" e, em vez de balde do lixo, "pubela" (poubelle).
A rapariga miudinha, de rosto rosado, trabalha toda a manhã. E quem a vê, de mesa em mesa, diz que sai com o mesmo sorriso com que entra. Tem 24 anos. Casou-se há pouco. Largou o trabalho na fábrica, em Barcelos, para ficar mais perto do marido, que andava nas obras, em França. Agora, fazem vida de casados ali mesmo, no estúdio, por cima do café, propriedade de uma cunhada. Ela veio com "o destino" de servir quem se senta aqui. E ele arranjou trabalho uma semana depois, "através de pessoas conhecidas".
Sempre houve gente a trazer familiares, amigos, vizinhos "lá de baixo". Até há um dito local: "Um português vai de férias a Portugal e traz alguém na bagagem." Algumas marcas fazem promoções especiais para as férias de Verão, que podem incluir 500 euros de despesas de viagem e três meses de seguro. E esses carros de grande cilindrada também ajudam a criar a ideia de que, no grão-ducado, é fácil ficar bem de vida.
Para criar vontade de partir, pode bastar mencionar o valor do salário mínimo de trabalhadores não-qualificados: 1801,49 euros ilíquidos, 1500 a 1600 líquidos, conforme a carga fiscal. Só que com esse rendimento, se viver sozinha, uma pessoa fica abaixo do limiar da pobreza. "É no Luxemburgo que se faz menos com um salário mínimo", diz Amílcar Monteiro. "Ganha 1600 euros, paga mil de renda de casa. As pessoas vivem juntas, senão não conseguem."
Necessidade e urgência
Esta mensagem parece não chegar "lá em baixo". Já falta espaço para acomodar tanto recém-chegado. Henrique, de 49 anos, "a cair nos 50", partilhava um quarto desde que chegara, esperançado, havia quatro meses. "Nem um estúdio, nem nada. A única coisa que se consegue ter aqui sem contrato é dormida num café ou num familiar, mas o familiar também é difícil, porque os senhorios estão atentos."
Há uns dois anos, as autoridades passaram a pente fino dezenas de cafés portugueses que alugam quartos por 350 a 650 euros. Encontraram um cabeleireiro convertido em dormitório pelo dono do café ao lado: um corredor de 12 metros com tabiques a cada dois; os "quartos", sem janelas, duplicavam a capacidade através de beliches, a 350 euros por cama. Entre dois tabiques, dormia uma grávida de oito meses com o companheiro.
Henrique não se queixava, nem parece ser homem para se queixar, apesar da saudade da família lhe toldar a fala: "Graças a Deus, caí num sítio em condições." Pagava 650 euros por mês para partilhar um quarto com um compatriota, com comida, roupa lavada, faxina. Fazia como os outros, que saem de manhã para o trabalho com a marmita e regressam ao final do dia, ansiosos por um banho e um jantar. "Eu nunca saí de casa que não trouxesse uma mudazinha de roupa para trabalhar. Dava uma voltinha, procurava. Às vezes até aparecia. "Olha, queres fazer duas horas aqui?" A roupazinha e o almocinho iam sempre comigo."
Atrás de cada um há uma necessidade, por vezes uma urgência. A de Henrique chama-se Inês. Veio por causa dela, da filha que nasceu com uma paralisia cerebral de 98%. Naquele dia, estava a despedir-se de tudo, de todos, convencido de que, de alguma forma, ela o chamava. Um empresário enternecera-se, aqui, ao ouvi-lo falar nela e arranjara-lhe um trabalho num dos seus estabelecimentos, "lá em baixo". E ele regressava, certo de que todo o cuidado de quem vier será pouco. "Não vale a pena vir sem um fundo de maneio ou sem segurança. Mesmo a segurança... Eu vim com trabalho e olhe o que me aconteceu."