Antigo "reformatório" de Vila do Conde é um monumento enjeitado
O mais imponente monumento classificado da cidade foi literalmente deixado ao abandono pelo Estado, em 2010. Santa Clara deu o nome a vários conventos no país: este é o de "Santa Clara-a-Abandonada"
Monumento é palavra que lhe assenta bem, tal o seu tamanho. Não há ninguém que, tendo passado por Vila do Conde, não tenha reparado no enorme edifício, sobranceiro à cidade, cujas grades nas janelas nos atiram logo para o universo da prisão. Antiga casa de poderosas Clarissas, "reformatório" de menores até 2008, o convento de Santa Clara parece altivo por fora, mas apodrece por dentro, entregue, desde 2010, ao estatuto de imóvel "devoluto". O Estado tarda em dar destino a este edifício classificado. Na cidade, câmara e quase 2700 vila-condenses, subscritores de uma petição online, desesperam. E têm razões para tal.
Se em Coimbra temos Santa-Clara-a-Nova e Santa Clara-a-Velha, para Vila do Conde sobra hoje uma "Santa-Clara-a-Abandonada". Se dúvidas houvesse, basta entrar e ver. Um portão lateral, destrancado, põe-nos de caras com uma belíssima fonte, semicoberta pela vegetação. As silvas, com os seus picos, até guardariam bem o caminho, não fosse ele estar já pisado por todos os que, ilegalmente, têm utilizado este edifício desde 2010.
Nesse ano, o Tribunal de Vila do Conde, que ocupara um parte do imóvel enquanto se faziam obras na Casa da Justiça local, regressou às suas instalações. E o antigo convento, onde dois anos antes deixara de funcionar o Centro Educativo de Menores em Risco do Instituto de Reinserção Social, viu terminar o ciclo de mais de um século em que esteve nas mãos do Ministério da Justiça. Que, ao PÚBLICO, garante ter passado, em 2011, todo o edificado para o Ministério das Finanças, tendo em vista a sua "cedência" ou "alienação".
Alienar é palavra de múltiplos significados. Perante as duas balizas que nos surgem no caminho, podemos alienar-nos, imaginando miúdos jogando futebol num campo onde, em vez de relva, há pés de funcho a perder de vista que nos dão pelo peito. Alienar é também desviar, renunciar a qualquer coisa, como, por exemplo, a obrigação de cuidar deste local. É esse o sentido que nos vem à ideia, perante a decrepitude das portas e janelas partidas visíveis de qualquer lado do pátio interior a que uma escadaria nos conduz.
Cercados pelas três fachadas da ala norte e por um muro alto, que sustenta o claustro do primitivo convento, nem o facto de se assomarem a gótica igreja - ainda aberta ao culto e ao público - e os arcos finais do famoso aqueduto setecentista diluem sensação de clausura neste espaço exterior. Lá para dentro, entram pombos e não só. São deles alguns cadáveres, o cheiro bafiento e os dejectos que fazem de soalho. Mas não foram eles os autores das pichagens que cobrem as paredes de um corredor do início do século XIX cujo tecto está a descolar. Espalhada pelo chão de todas as divisões, a cablagem da rede eléctrica, ou, melhor, o PVC que a envolvia, denuncia o roubo sistemático de cobre. Tudo foi esbulhado. Há paredes e tectos falsos esventrados atrás de cada porta e sinais de um incêndio que, no ano passado, alarmou a população.
A ala sul foi a única que as Clarissas chegaram a concluir, no início do século XIX, poucos anos antes de o Reino extinguir as ordens religiosas. O resto do imóvel é obra da Direcção-Geral dos Monumentos, com a qual, já nos anos 30 do século passado, o Estado procurou melhorar as condições desta "tutoria" com capacidade para 200 rapazes.
Outra escadaria leva-nos a um cofre, simbolicamente escancarado, entre centenas de encadernações do Diário da República. E na antiga biblioteca jazem as escolhas dos Salesianos, que até 2008, e durante 40 anos, geriram o centro educativo. O vandalismo é democrático: aqui um livro sobre Jacinta de Fátima vale tanto como a visão de um religioso sobre o marxismo. Ou uma aventura dos Cinco, em francês. Les Cinq sont les plus forts, lê-se. Eram. Agora não passam de papel a esboroar-se, carcomido pela humidade que vai deixando marcas nas paredes.
Contactado pelo PÚBLICO, o arquitecto e director do Gabinete Técnico Local de Vila do Conde, Manuel Maia Gomes, que se tem notabilizado pela reabilitação de vários edifícios na cidade, assume o receio de que, no caso do convento, as patologias aumentem o risco de derrocada. Pedras das varandas - onde o ferro enferrujado vai fazendo das suas, avisa - já se soltaram sobre o casario do sopé deste monte onde as freiras, antigas senhoras deste concelho, se instalaram.
A localização em meio urbano, e a sua imponência, trazem mais riscos, e dão mais urgência aos apelos para a conservação do imóvel que, em 2000, parecia estar reservado, por força de um protocolo assinado pelo Estado, um futuro como Pousada Nacional. Dessas que a Enatur, entretanto entregue ao Grupo Pestana, tem espalhadas pelos mais belos sítios do país. Mas nem os 700 anos de história do convento foram suficientes para que o protocolo assinado pela autarquia e pelo Governo se cumprisse, até hoje. Embora o Ministério da Justiça garanta que é esse ainda o propósito da referida "alienação".