Não há estacionamentos grátis

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Devemos sempre chegar aos compromissos com alguns minutos de avanço. Não tanto porque, dessa forma, seremos pontuais - uma qualidade que os tempos modernos converteram em defeito merecedor de punição imediata, sob a forma de minutos de tédio à espera de toda a gente. Por aí, já não vale a pena. Mas chegar uns minutos mais cedo, presumindo que chegamos ao volante, permite sempre passar pela porta, para ver se descobrimos aquele lugar de estacionamento que vai deixar todos os outros verdes de inveja.

É um desporto cada vez mais exigente, este de procurar lugar à porta. Mas ainda tem os seus momentos. E é justo que assim seja. Não é coisa para meninos: exige visão periférica apuradíssima, reflexos rápidos, nervos de aço - passar por um espaço vazio a 50 metros do objectivo e resistir à tentação de nos atirarmos para lá como se a nossa vida dependesse disso exige um autocontrolo digno de mestre de artes marciais. Mas por aqui não haveria grande diferença para outras modalidades, muitas delas até com estatuto olímpico.

Não. O que faz aqui a diferença é a inclusão obrigatória neste cocktail de virtudes de uma vertente intelectual. Como se a um tenista fossem exigidos conhecimentos de xadrez, ou um pugilista tivesse de ir respondendo a perguntas de Trivial Pursuit enquanto desferia e esquivava golpes no ringue. Oh, sim, um estacionador de nível internacional tem de ser fisicamente brilhante, psicologicamente indestrutível e intelectualmente competente. Ou, pelo menos, informado.

E devemos sempre desconfiar. Eu, pelo menos, devia ter desconfiado. Chegar a uma cidade estrangeira e encontrar um lugar mesmo junto à porta do local onde vamos passar a noite deveria deixar-nos a pulga atrás da orelha. O veterano estacionador nunca deve deixar-se deslumbrar pelas suas glórias passadas - esse embotamento paga-se caro em qualquer modalidade de alto risco e a expressão "pagar caro" raramente foi tão bem empregue como aqui.

Ao chegar a San Sebastian não desconfiei. E paguei caro. É claro que tenho atenuantes. Estava em modo de férias, logo com o instinto competitivo algo adormecido. E a tabuleta que consegui ler antes de enfiar o carro naquele belo ninho para passar a noite estava escrita em basco.

Para os menos familiarizados, chegou a altura de uma breve lição de linguística. O basco está classificado pelos especialistas como uma língua isolada; ou seja, citando a Wikipedia: "Um idioma natural sem comprovado parentesco com outra língua registada, não pertencendo a nenhuma família ou tronco linguístico." Outros exemplos de línguas isoladas são o burushaski, o etrusco, o pirarrã, o sumério e o hatti. Será mais fácil tagarelar sobre a meteorologia com um visitante da galáxia de Andrómeda do que ler um sinal de trânsito num destes idiomas.

Com tanta desculpa, já se adivinha o capítulo seguinte. Depois de um lauto jantar, uma breve caminhada pelo passeio marítimo de San Sebastian, a luz da lua reflectindo-se na meia-lua perfeita do areal, as belas fachadas da primeira linha de edifícios vigiando com um sorriso protector os casais de namorados sentados sobre o muro, o suave murmúrio das ondas embalando conversas sussurradas ao ouvido. Beleza, suavidade, harmonia... e um lugar vazio onde deveria estar o nosso carro! Era aqui, era aqui, de repente os frutos do mar às voltas no estômago, onde é que já se viu, ficar sem transporte a meio de um périplo automóvel por Espanha.

E então uma viatura da polícia. Rápido, modo castelhano engatilhado. "Vosotros hábeis visto um coche de matrícula portuguesa?... Un Peugeot 106 rojo..." Milagre, sou entendido. O cívico interpelado mostra-se compreensivo. Pergunta-me se não tinha percebido que aqueles lugares estavam reservados apenas a residentes. Então era isso que diziam os autocolantes cor-de-laranja em todos os outros carros estacionados na rua... Aponta com o dedo, antecipando o meu alívio. "Acabámos de o levar. Olha, lá vai ele!"

Com efeito, ao fundo da rua.

Acabrunhado, o pequeno 106 lá segue, ao pé coxinho, rebocado a caminho do parque da polícia. Que fica nos baixos do velho estádio de futebol. Pausa para redefinição de estratégia. Atendendo ao horário apertado para o dia seguinte, talvez seja de o ir buscar, para não perder tempo na manhã seguinte.

Erro dois. Afinal, o parque era mesmo ali ao lado e, depois de resgatado a peso de ouro, ainda foi preciso estacionar o carrinho num parque público. E pagar ainda mais, por supuesto. (Sim, se quer ser um grande estacionador, nunca baixe a guarda. E, se for para aqueles lados, procure na Internet um bom tradutor de basco.)

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